Por Elaine Mineiro*
O Quilombo Periférico era uma ideia muito antes de ser mandato.
A ideia de que pessoas negras poderiam, a partir do parlamento, modificar a vida prática do cidadão negro propondo e defendendo direitos e políticas públicas ou que ao menos o debate público fosse tomado pela agenda contruída históricamente pelo movimento negro organizado, que é quem de fato tem conseguido sistematizar o que é viver a experiência de ser negro no Brasil.
E foi essa ideia que produziu as condições materiais para a eleição da terceira vereadora negra na cidade de São Paulo. Junto com Erika Hilton, Luana Alves e todas as co-vereadoras negras eleitas na mesma legislatura.
Mas a experiência de criar um quilombo no legislativo não foi fácil, assim como nenhuma conquista foi fácil para o povo preto brasileiro.
Várias foram as lideranças do movimento negro que pensaram e se organizaram para transformar a vida política desse país, mas eles não se furtaram a denunciar também que, seguindo o rito da história, muitas dessas lideranças – aliás, muitas dessas geniais lideranças -, lutaram o bom combate, mas foram massacrados intelectualmente pelo racismo, presente inclusive nas instituições progressistas.
Lélia Gonzalez, Benedita da Silva e Marielle Franco
Deveria ser impossível para a esquerda brasileira imaginar discutir feminismo, por exemplo, sem levar em consideração o protagonismo de Lélia Gonzalez. Sua produção acadêmica, entre inúmeras contribuições, evidenciou a invisibilização da desigualdade sociorracial no país. Estudos com esse teor pressionaram o IBGE a captar dados sobre cor e raça a partir do Censo de 1980. Lélia se tornou uma constituinte.
Assim como é impensável olhar para o parlamento e perceber que apenas em 2024 foi possível instituir uma Bancada Negra no Congresso Nacional, que em tempo pode honrar, graças à atuação de parlamentares negros, o legado de Benedita da Silva: ativista política do movimento negro, feminista, que iniciou sua vida política nos movimentos de favela, marcando o início de sua atuação legislativa como vereadora em 1982. Sendo também deputada federal, onde atua atualmente, senadora, vice-governadora e governadora do Rio de Janeiro por nove meses em 2002, Ministra da Assistência e Promoção Social e Secretária de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro.
É absurdamente revoltante que haja entre nós pessoas que ousam dizer que “pautas identitárias” estão afastando a esquerda da periferia enquanto Marielle Franco, mulher negra, mãe, LGBTQIAPN+ se forjou na luta popular na Maré. Começou ajudando os pais no trabalho aos 14 anos, conseguiu bolsa para uma das melhores universidades do Rio de Janeiro através de um cursinho popular comunitário e dedicou sua carreira acadêmica e parlamentar à defesa intransigente dos direitos humanos.
A dureza e a nossa existência
Todas essas histórias têm em comum o enfrentamento a uma dureza que cotidianamente é transformada em luta e em trabalho pela classe trabalhadora nas periferias desse país.
O Quilombo é fruto dessa luta e dessa dureza. No final da eleição de 2018, a partir da perda de Douglas Belchior para deputado federal por uma mudança de última hora no coeficiente eleitoral, o grupo que fez a campanha resolveu manter a chama acesa e produzir o que se chamaria de reuniões de análise de conjuntura.
Esse grupo se dedicou a trazer diferentes pensadores, parlamentares e militantes para pensar como seria fazer o enfrentamento ao fascismo naquele momento. Esses debates eram sempre feitos a partir da ótica do movimento negro.
Além da análise de conjuntura, o grupo também discutia a eleição municipal de 2020. E foi dali que saiu a ideia de uma candidatura coletiva, que pudesse honrar em seu formato e atuação a história daqueles militantes até ali, e que também pudesse trazer para política uma cara nova e um jeito novo de fazer trabalho de base nas quebradas.
A partir dessas ideias ficava fácil reconhecer que o protagonismo precisava ser de mulheres, negros e periféricos, com toda sua complexidade diversidade e fincada com os dois pés no território. Foi uma campanha linda, feita em vários territórios da cidade, sem dinheiro mas, com muita disposição, e o Quilombo Periférico estava eleito.
Voltando ao ponto da dureza, ela fez a trajetória do nosso mandato ser o primeiro em muitos espaços legislativos: primeira mulher negra na Comissão de Finanças, primeira mulher negra na presidência da Subcomissão de Cultura, primeira em lugares demais – e ser a primeira muitas vezes significa que você será a única nos espaços.
Então, o Quilombo teve a única parlamentar a quem não serviram água em reuniões, já que a orientação era servir apenas parlamentares. Teve a única parlamentar que já foi impedida de entrar em três secretarias de governo diferentes, porque não parecia ser uma vereadora.
Na primeira semana de mandato, o Quilombo Periférico foi chamado de aberração no Plenário da Câmara, nossa foto como Mandato Coletivo foi retirada e alterada para uma foto única. Nos primeiros meses de mandato, nosso gabinete foi invadido. E deram tiros na frente da casa de uma das co-vereadoras, uma parte de nós nunca mais voltou a morar na mesma casa desde então, a violência política e racista nos atrasou e nos acompanhou durante todo mandato.
O que aprendemos com Lélia, Benedita e Marielle
Mas aprendemos com Lélia, e então incidimos em todas as Leis Orçamentárias Anuais – LOA, Leis de Diretrizes Orçamentárias – LDO e no Plano Plurianual – PPA desta legislatura com apontamentos robustos e alterações importantes, inclusive a que garantiu pela primeira vez recursos no orçamento direto para a formação da Comunidade Escolar sobre a Lei 10.639, que determina o ensino das culturas afro-brasileira e africana nos ensinos fundamental e médio.
Aprendemos com Benedita, e entregamos um trabalho extremamente qualificado em todas as comissões, nas discussões em plenário, nas grandes pautas que surgiam na Câmara como na comissão de estudos sobre a Reforma da Previdência Municipal, sempre trazendo a teoria produzida por pensadores negros brasileiros para a agenda dos debates da casa.
Produzindo, inclusive, o primeiro relatório de admissibilidade que propunha a cassação de um vereador por racismo, que foi aprovado por unanimidade e tornou possível a primeira cassação de um parlamentar por racismo na história desse país.
Aprendemos com Marielle. O Quilombo não ficou preso dentro de um gabinete. Estivemos nas principais lutas nas ruas, seguimos ao lado dos movimentos sociais, fomos o mandato do PSOL que mais investiu tempo, trabalho e recursos na periferia. Com audiências públicas externas, fiscalização de equipamentos públicos, atendendo demandas do funcionalismo público.
O Quilombo andou pelos quatro cantos dessa cidade e a maioria dos nossos projetos de lei foram escritos a muitas mãos, sempre em conjunto com os movimentos sociais. Aliás, um dos nossos primeiros projetos a passar por uma votação na Câmara vinha do compromisso com a Agenda Marielle Franco, que prevê “Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social”.
Não se ganha eleição com “APESARES”
Apesar de tudo isso, ouvi de uma grande amiga e dirigente política que não se ganha eleição com “APESARES”. Em 2024, o Quilombo Periférico entrou numa campanha eleitoral de reeleição para a maior Câmara legislativa com muitos “apesares”.
Não conseguimos estourar a bolha da esquerda nas redes sociais. É mais fácil nosso conteúdo ser visto por quem mora em Higienópolis do que por quem está agora com celular na mão na linha 3756-10 (Barro Branco – Metrô Itaquera).
Além da nossa dificuldade em se comunicar com a quebrada, mesmo entre a bolha progressista do centro expandido, muitas vezes desaparecemos. Nossa principal pauta, a questão racial, parece ter perdido a relevância que teve em 2020.
Apesar da nossa trajetória de luta não existir desde o mandato, é evidente que o Quilombo não conseguiu se proteger totalmente de fragmentações e disputas internas.
Apesar do nosso comprometimento, não se estabeleceu com o volume necessário uma relação que nos garantisse como prioridade dentro do partido.
E vale dizer o que já apontamos em 2020: Apesar de muitas campanhas não conseguirem demonstrar o trabalho de base efetivo e bem feito, esse ano todo mundo era da quebrada.
Assim como toda esquerda, também enfrentamos na periferia um descontentamento com o cenário político nacional e, infelizmente, não parecíamos mais para muita gente a mudança que o mundo precisa.
E não podemos esquecer que organizações de esquerda apoiaram um perdão às multas de partidos que desrespeitaram a distribuição de recursos para candidaturas de negros e de mulheres. Quem está no poder sempre se reorganiza para permanecer no poder.
Se eu estivesse na terapia, lugar onde várias mulheres negras mais velhas provavelmente me aconselhariam a fazer essa reflexão, estaria discutindo se de fato há uma arrogância quase que imperdoável no comportamento dos militantes negros que desafiam práticas e conhecidos acordos políticos.
Se há uma linha intransponível a nós pretos, que nossos erros não vão ser encarados como contradições razoáveis quando se faz uma escolha pela classe trabalhadora. Se devemos ou não ocupar o lugar de destaque em detrimento de quem inicia sua trajetória política no terceirão das escolas mais progressistas deste país, todas da ponte pra lá, passam pelos Diretórios Centrais dos Estudantes – DCEs das melhores universidades, que reinam nas rodas políticas e dançam ao som da opinião dos que votam, financiam e dão visibilidade às campanhas, que os convidam para seus debates, que decidem de fato qual pauta importa mais esse ano e de fato mandam nas instituições.
Mas, daqui da ZL onde eu escrevo, me parece mais razoável me ater ao fato de que o Quilombo Periférico cumpriu o que prometeu. Podemos agora, seguindo um sábio conselho de Sueli Carneiro, ter para onde voltar de cabeça erguida. E que ainda podemos seguir na luta, nas ruas, nas nossas organizações. A política não desaparecerá das nossas vidas.
Sem medo algum de encarar a autocrítica e reajustar a rota, existem vitórias a serem comemoradas e coisas a serem superadas. Aliás, pra nós a meta a ser dobrada seguirá sendo a revolução. A completa libertação de cada ser humano desta terra, de absolutamente todas as formas de opressão. Isso jamais acabaria com o fim de um mandato.
*Elaine Mineiro, é mãe, geógrafa e co-vereadora do Mandato Coletivo Quilombo Periférico, composto ainda por Débora Dias, Júlio Cezar e Alex Barcellos
Colaboração