Por Aline Rodrigues. Edição: Thiago Borges
Há 18 anos, Sueli Carneiro publicou sua tese de doutorado. Desde então, “Dispositivo de Racialidade” teve mais de 30 mil downloads. É uma tese que se mantém viva e se conecta com as ruas, ainda que a autora diga que a academia não tenha aproveitado tão bem as suas ideias até então. Agora, há uma nova oportunidade: a escritora, filósofa e militante do movimento negro resgata a pesquisa no formato de livro.
“Quero ver esse trabalho como uma caixa de ferramentas em que mulheres negras encontrem nela instrumentos para adensar a sua reflexão, seu protagonismo político (…), que professores instrumentalizem as ideias sobre o biopoder para oferecer aos seus alunos mais elementos para o combate das práticas genocidas que nossos corpos estão expostos. (…). É para todos que precisam lutar contra algum poder que tá instituído e que oprime”.
Na segunda-feira passada (13/3), Sueli conversou com jornalistas sobre a publicação, que relaciona teoria e prática. Ela lembra que sempre agregou em suas reflexões e ações as demandas de lutas que se relacionam e que a atravessam diretamente, como o combate ao racismo e o sexismo. E seu compromisso é na mesma medida com as mudanças sociais ainda a serem conquistadas, mas também com saberes já desenvolvidos em outros tempos e que fortalecem os movimentos sociais de hoje.
“Nós feministas, nós ativistas antirracistas desenvolvemos tecnologias sociais que são extremamente poderosas na formação de consciência”, reforça ela que, em 1988 fundou com outras 9 companheiras o Geledés Instituto da Mulher Negra. A organização segue ativa na defesa de mulheres e pessoas negras.
“O que temos que fazer é aperfeiçoar essas tecnologias sociais que nós construímos. As feministas brasileiras fizeram coisas extraordinárias. Isso é um patrimônio que precisa ser atualizado às novas gerações, que têm que conhecer e se apropriar”, completa.
Raça e poder
Era 1984 quando Sueli teve seu primeiro contato com os pensamentos de Michel Foucault, durante uma disciplina ministrada por José Augusto Guilhon Albuquerque sobre a história da sexualidade. Foi um choque. Ao ter contato com cada elemento que Foucault apresentava sobre a sexualidade como um dispositivo de poder, Sueli traduzia para a racialidade.
“Eu identifiquei uma similaridade muito grande ao que Foucault atribuía à sexualidade e tudo aquilo que nós negros vivenciamos: essa experiência dramática, que é estar submetida cotidianamente ao racismo e à discriminação racial. Eu associava imediatamente com o que a racialidade produz em relação a nós”, conta Sueli.
Essa percepção da pesquisadora deu origem à construção de um fluxograma que se tornou seu ponto de partida para a pesquisa, onde ela exemplifica o que ela nomeia de “dispositivo de racialidade”.
No documento, Sueli reúne discursos, instituições, leis e organizações arquitetônicas que provam o fazer orquestrado para se prevalecer uma estrutura que beneficia o sujeito branco e organiza as relações raciais no Brasil.
“O dito e o não dito eram os elementos constitutivos de um dispositivo de poder, e eu fui mostrando nesse fluxograma as articulações que, para mim, eram evidentes entre esses elementos”.
Neste fluxograma também eram apresentados os saberes produzidos sobre a racialidade, os títulos acadêmicos que os saberes sobre o negro promoveram na nossa sociedade.
A prática aperfeiçoa a teoria
Até virar tese de doutorado, foram muitos anos. Após entregar para academia suas reflexões por meio do fluxograma desenvolvido, Sueli Carneiro passou um grande período distante da pesquisa, dedicando-se à prática da luta antirracista. “Mergulhei definitivamente no movimento social, no compromisso com o movimento de mulheres negras, com o feminismo negro”, diz ela.
Mais de uma década depois, em 1998, Sueli foi convencida por uma professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) a organizar a construção de pensamentos que desenvolveu à frente de ações políticas nos últimos tempos.
Apoiada pela teoria do contrato racial do afro-jamaicano Charles W. Mills, resgatando o que já havia desenvolvido a partir dos conceitos de Foucault sobre dispositivo de poder, Sueli desenvolve sua pesquisa nos anos seguintes e conclui e defende sua tese em 2005.
“Não há ação política sem ação reflexiva, sem produção de argumentos, sem aprofundamento dos saberes sobre a nossa condição nessa sociedade. Isso está a serviço da emancipação de todos e se faz na luta política, na organização e no movimento social”.
A então doutora lembra que o candomblé em sua vida foi algo que a fortaleceu em meio aos desafios da vida acadêmica. Trata-se de algo que ela faz questão de reafirmar sempre que é a construção do pensamento afrocentrado. “E não está apenas no candomblé, mas também na literatura de autores negros que eu reivindico como responsáveis pela minha formação. Nós temos um patrimônio emancipatório, um patrimônio libertário”.
Serviço
Nesta terça-feira (21/3), às 19h, Sueli Carneiro lança o livro “Dispositivo de Racialidade” no Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana – R. Pelotas, 141 – zona Sul de São Paulo. O encontro conta a presença da autora em uma conversa com Bianca Santana e Yara Frateschi. Clique aqui para mais informações.
Aline Rodrigues, Thiago Borges