Por Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
“O aumento da representatividade de mulheres negras eleitas desafia as normas e estruturas de poder estabelecidas”, diz a militante Keit Lima. A moradora da Brasilândia (zona Norte de São Paulo) quer ser uma dessas representantes e, antes que o Carnaval terminasse de vez, lá estava ao lado de Guilherme Boulos (PSOL) lançando sua pré-candidatura a vereadora na capital paulista, nas eleições que acontecem em outubro deste ano.
Keit não é novata no assunto. Em 2020, recebeu 11 mil votos e por pouco não foi eleita para uma das 55 cadeiras da Câmara Municipal. Em 2022, concorreu a deputada estadual, teve 36 mil votos e novamente bateu na trave. Financiar e colocar uma candidatura de pé não são as únicas dificuldades – e ela está mais preparada para isso. Em 2024, o desafio sobe de patamar: é a violência política nas redes e ruas.
“Mulheres negras seguem sendo violentadas e desprotegidas, estamos cansadas de gritar o nome das nossas e gritar presente, quero gritar apenas: eleita! E isso deve ser um compromisso de todos da sociedade”, observa Keit.
Nesta quinta-feira (14/3), completam-se 6 anos da execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Gomes – a investigação do caso ainda não concluiu quem seria o mandante nem a motivação do crime.
Desde então, o número de mulheres negras candidatas e eleitas aumentou nas eleições seguintes – e o risco que isso representa acompanha o crescimento.
Apesar de as mulheres serem 51,5% da população brasileira de acordo com o Censo 2022 do IBGE, na Câmara Federal elas representam apenas 17% da composição, segundo o Observatório Nacional da Mulher na Política. E enquanto as pessoas negras (pretas e pardas) correspondem a 55,5% da população do País, são apenas 26% entre parlamentares.
Por outro lado, a violência política contra mulheres respondeu por 36% dos 523 casos do tipo identificados entre setembro de 2020 e outubro de 2022 em um mapeamento das organizações Justiça Global e Terra de Direitos (acesse aqui). Entre as formas de violência, as principais são o assédio e o abuso on-line, como ameaças, ataques a perfis em redes sociais e compartilhamento de mensagens enganosas.
Em São Paulo, a então vereadora e hoje deputada federal Erika Hilton e a co-deputada estadual Carolina Iara – ambas, mulheridades trans, negras e periféricas – são algumas parlamentares denunciaram ameaças em pleno exercício dos mandatos.
Combate
Em vigor desde agosto de 2021, a Lei de Enfrentamento à Violência Política Contra Mulher parte da mobilização de mandatos parlamentares femininos e de movimentos sociais para tipificar a violência.
De acordo com a lei, caracteriza-se como violência política de gênero o ato de assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar uma candidata ou detentora de um mandato eletivo, por meio do menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho do mandato. A pena pode variar de 1 a 4 anos de prisão e multa.
Entre agosto de 2021 (quando a lei começou a valer) até novembro de 2022, somente o Ministério Público Federal (MPF) contou 112 ações relacionadas ao tema. Nesse período, ocorreram em média 7 casos por mês envolvendo comportamentos do tipo contra uma candidata ou mandatária apenas por ser mulher.
Presente em todas as redes sociais, do Linkedin ao TikTok, Keit vê a disseminação de fake news e do ódio na internet como o grande desafio de sua pré-candidatura. “Hoje, não há nenhum suporte institucional para encarar, enfrentar e acabar com a violência política de gênero”, aponta.
A pré-candidata milita desde os 13 anos de idade, quando era voluntária na escola pública em que estudava. Aos 17, ingressou no curso de Administração da Faculdade Zumbi dos Palmares e coordenou a escola de líderes da Educafro, que luta pela inclusão de pessoas negras e pobres no ensino superior. Trabalhou na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e no gabinete da Mandata Ativista, na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Atualmente, Keit faz parte da RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e Mulheres Negras Decidem – e é a partir dessa articulação com movimentos sociais que ela pretende de alguma forma “proteger” sua candidatura.
“Não tem uma conquista de direitos em que as mulheres negras não estejam no front e na base. Estamos há anos construindo um novo marco civilizatório, e não vamos parar”, diz ela, que vê na política institucional uma ferramenta para construir uma sociedade mais justa.
Mais proteção
Criado por familiares para lutar por justiça e honrar a memória da vereadora e fomentar novas lideranças políticas femininas, negras e periféricas, o Instituto Marielle Franco reconhece os avanços, mas recomenda aperfeiçoamentos na legislação. Essas sugestões visam superar problemas amplos que vêm desde a colonização do País, como a desigualdade racial, sexual, de gênero, territorial e econômica.
“Sugerimos que a interseccionalidade pode ser uma importante ferramenta analítica para auxiliar no aperfeiçoamento da Lei e na construção de uma política nacional adequada às dimensões de gênero e raça”, defende a organização em seu relatório mais recente, publicado no ano passado (acesse aqui).
Por isso, além do aspecto penal, a entidade aponta a importância de criar programas de proteção às vítimas, executar medidas para que os partidos políticos cumpram as normas eleitorais e produzir dados e análises para subsidiar políticas públicas para garantir a ocupação de espaços institucionais historicamente ocupados por homens brancos com boas condições financeiras.
“Trabalhamos com a hipótese de que, apesar de a lei representar um passo importante no enfrentamento à violência política, ainda é necessário que seja aprimorada para dar conta das dimensões de gênero e raça e, assim, garantir que mulheres negras, trans, travestis e cis, defensoras de direitos humanos, não sejam interrompidas”, continua o documento.
Nesta quinta (14/3), atos cobrando justiça no caso acontecem em diferentes locais. Na cidade de São Paulo, movimentos e mandatos parlamentares fazem um ato em um escadão em Pinheiros (zona Oeste), na altura da rua Cardeal Arcoverde com rua Cristiano Vieira.