Os 20 anos da Lei 10.639: avanços e desafios na promoção da igualdade racial na educação brasileira

Os 20 anos da Lei 10.639: avanços e desafios na promoção da igualdade racial na educação brasileira

Neste sábado (13/5), relembra-se a Abolição da Escravatura, que aconteceu em 1888. Mas o caminho é longo e passa pela educação. Por isso, professora da rede municipal e integrante do Coletivo Malungo avalia cumprimento da lei federal a partir das vivências nas ruas, salas de aula e espaços autônomos nas periferias de São Paulo

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Por Lilian Ferreira de Souza*

De onde viemos nós? – aguarda a resposta que não vem, e afirma: – Éramos de Monomotapa, de Changamire, de Makimbe, de Kupula, nas velhas auroras. O poder era nosso. Lembram-se desses tempos, minha gente? Não, não conhecem, ninguém se lembrou de vos contar, vocês são jovens ainda. Unimo-nos aos changanes, aos ngunis, aos ndaus, njanjas, senas. Guerreámo-nos e reconciliámo-nos. Fomos invadidos pelos árabes. Guerreados pelos holandeses, portugueses. Lutámos. As guerras dos portugueses foram mais fortes e corremos de um lado para o outro, enquanto os barcos dos negreiros transportavam escravos para os quatro cantos do mundo. (Chiziane, 2018)

O trecho citado da escritora moçambicana Paulina Chiziane nos remete para as nossas origens, do continente africano, das levas populacionais trazidas compulsoriamente e transformados em escravizados nas Américas. Fala da potência e das diversidades de povos que nos legaram sabedorias e formas de vida que constituem a nossa história.

Ao considerarmos a violência de nosso passado colonial, o desafio atual é desconstruir a narrativa da democracia racial, ainda presente em alguns discursos, que se incorporou à nossa história. Isso implica trazer à discussão temas que foram deliberadamente ocultados.

Alguns questionamentos individuais transformaram-se em ações coletivas. Em 2013, surge o Coletivo Malungo. Não deixe sua cor passar em branco! com o encontro de amigos, profissionais da educação e da cultura, na perspectiva de ampliar o debate público sobre as formas de enfrentamento ao racismo, usando como ferramentas o audiovisual, a música e a produção de materiais educativos.

Nesses 10 anos de atuação, rememoramos as determinações da Lei Federal 10.639 de 2003 que introduziu na LDB (Lei de Diretrizes e Bases) a obrigatoriedade do ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Da nossa maneira, apropriando-se do debate científico e levando para as nossas quebradas – especificamente o Extremo Sul da cidade de São Paulo.

Realizamos encontros formativos com profissionais da educação formal e informal com debates, ciclos de palestras, oficinas, festivais culturais e colóquios, acreditamos que o impacto das nossas ações se constitui na materialização de uma luta antirracista.

Em 2023, a Lei Federal 10.639 completa 20 anos. E as questões que se apresentam no momento são: Como está a sua implementação? Quais são os desafios que as/os educadoras/es enfrentam no dia a dia da sala de aula e nos demais espaços educativos?

Os temas propostos pela lei exigiram uma mudança do mercado editorial com a produção de livros didáticos, juvenis e infantis, que se adequaram às novas demandas. Movimento semelhante ocorreu com a ampliação da procura do público em geral pelos brinquedos afirmativos, aqueles que buscam reafirmar identidades.

No campo da cultura periférica, especificamente, é notável a ampliação dos coletivos negros em diversos campos das artes. De certa forma, pontuamos alguns avanços devido à historicidade da luta dos movimentos negros.

Aqui cabe ressaltar o artigo de Jurema Wenerck, “nossos passos vêm de longe”, para lembrar da importância da Frente Negra Brasileira, do Movimento Negro Unificado, das publicações dos Cadernos Negros e de inúmeros intelectuais negras e negros. As nossas práticas surgem rememorando a luta dos que vieram antes de nós.

Porém, nesses 20 anos encontramos alguns problemas para as nossas práticas. Nas periferias as desigualdades educacionais apresentam índices desafiadores, e podemos mencionar que um dos principais entraves para que a Lei Federal 10.639 seja de fato trabalhada nas salas aulas são algumas deficiências na formação docente.

Somada a este fator, está a ausência de políticas públicas que garantam aos professores melhores remunerações, condições de segurança adequadas, número reduzido de alunas/os por sala de aula, plano de carreira e da oferta continuada de ações educativas com a temática étnico-racial.

Notamos a piora nos índices de aprendizagem e abandono escolar após o desmonte promovido pelo governo federal durante a gestão 2019-2022 com o sucateamento dos ministérios da Educação, Cultura e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – ocasionando prejuízos notáveis. Vale frisar o alinhamento ideológico de grupos políticos da extrema direita com o nazifascismo.

Atualmente, sentimos os efeitos desta política nas escolas das periferias. É importante pensar no trabalho da gestão escolar, diretorias e secretarias de ensino para que trabalhem em prol de práticas antirracistas.

É notável a ausência no olhar para a equidade racial para mensurar as aprendizagens de estudantes negros e não negros. Algumas ações como, por exemplo, a criação de um censo escolar específico, determinando assim qual o segmento racial que está mais prejudicado em relação as suas aprendizagens e quais medidas seriam necessárias para uma real intervenção – promovendo assim uma análise detalhada.

Portanto, a ausência do poder público na promoção de políticas que visem a uma formação adequada para estes profissionais impacta no aumento das desigualdades étnico-raciais.

E quando pensamos no segmento da educação infantil, especificamente na faixa etária de 0 a 6 anos, alguns educadores partem da crença que as crianças pequenas não precisam de uma formação antirracista. Porém, gostaríamos de mencionar os trabalhos das escolas de educação infantil: EMEI Nelson Mandela (SP), a Escola Maria Felipa (BA) e a CMEI Dr. Djalma Ramos (BA), que são apenas alguns exemplos de instituições que fazem valer as diretrizes da lei – “as crianças deverão ser estimuladas desde muito pequenas a se envolverem em atividades que conheçam, reconheçam e valorizem a importância dos diferentes grupos étnico-raciais na construção da história e cultura brasileira.”

Portanto, lembramos da necessidade e o compromisso educativo no que bell hooks fala de educar como ato de transgressão para a liberdade. E o educar para as relações étnico-raciais é um compromisso de todos – negros e não negros. Independente das datas comemorativas em 13 de maio e no dia 20 de novembro, a educação antirracista se faz diariamente independente do espaço onde estamos.

“Uma educação antirracista deve começar identificando as maneiras pelas quais o racismo está presente em todos os aspectos da vida, nos nossos pensamentos, nas nossas ações, nas nossas instituições.” (hooks, 2013, p. 107).

O compromisso deverá promover uma educação étnico-racial inclusiva e plural, que respeite e valorize a diversidade cultural do nosso País, combatendo o racismo, a discriminação e as desigualdades históricas que afetam as pessoas negras e de outras etnias marginalizadas, garantindo assim uma formação mais justa, igualitária e democrática para todos.

*Lilian Ferreira de Souza. Mestra em Estudos Judaicos e Árabes pela FFLCH/USP. Atua como professora de História de rede pública municipal de São Paulo. Idealizadora e pesquisadora no Coletivo Malungo. Não deixe sua cor passar em branco! Acesse o Instagram do grupo aqui.

Referências

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 09 maio 2023.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. História e cultura africana e afro-brasileira na educação infantil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Brasília: MEC/SECADI, UFSCar, 2014

CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. São Paulo: Dublinense, 2008.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

SANTOS, Ana Paula A. dos; BRITO, Luciana F. de; QUEIROZ, Dayane C. de. História e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educação Infantil. São Carlos: UFSCar, 2016

WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 165-173, 1994.

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