Nhandereko em risco: Avanço de área urbana preocupa liderança indígena no Extremo Sul de SP

Nhandereko em risco: Avanço de área urbana preocupa liderança indígena no Extremo Sul de SP

Loteamentos irregulares abertos por grilagem de terra crescem na região de Parelheiros e aproximam-se de TI Tenondé Porã, que desde 2016 aguarda demarcação física. Segundo especialista, proteção seria maior se estivesse em vigor um acordo internacional assinado pelo Brasil em 2018

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Por Thiago Borges

Dezenas de casas de madeira entremeadas por caminhos de terra, com ligação clandestina de energia elétrica e sem muros: indicadores de que as construções são recentes. O loteamento surgiu às vistas de quem passa pela Estrada do Colônia, em Parelheiros, uma área rural e de preservação de mananciais no Extremo Sul da cidade de São Paulo. A rápida expansão, com novos bairros sendo criados da noite para o dia, não passa despercebida de quem luta para ficar no território: a população guarani mbya.

“Essas ocupações são projetadas por pessoas que têm dinheiro, que saem vendendo esses lotes e se aproveitam dos que têm menos. E aí, não existe a questão da conscientização ou da formação sobre a proteção da área verde ou de como se pode tentar uma vida ali sem prejudicar o meio ambiente”, aponta a Jerá Guarani, 41 anos, liderança na Tekoa Kalipety, uma das 14 aldeias que compõem a Terra Indígena (TI) Tenondé Porã.

Reconhecida em 2012 como território ancestral pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a TI foi homologada apenas em 2016 pelo Ministério da Justiça, no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff (PT). Desde então, a população formada por mais de 2 mil pessoas se espalhou e abriu novas aldeias em uma área que se estende também por São Bernardo do Campo e Mongaguá, no litoral.

Para evitar conflitos, as lideranças guarani deixaram de fora da área delimitada bairros já consolidados no entorno, como o Barragem, a 20 minutos da Tekoa Kalipety. Porém, a segurança de fato só deve ser conquistada com a demarcação física, que consiste na fixação de marcos de concreto nos limites do território.

“O que preocupa a gente é que esse número [de novos loteamentos] está crescendo cada vez mais, ocupando as áreas de proteção ambiental e que, de repente, parece que ninguém mais enxerga. Vai [expandindo] para todos os lados e a gente fica pensando: ‘quando é que vai chegar mais rápido?’. É uma preocupação muito forte de como a gente vai conseguir proteger essa área por mais 50 anos?”, continua Jerá.

O avanço da mancha urbana sobre as áreas verdes e a proximidade com a terra indígena são vistos como uma ameaça ao “nhandereko”, ou modo de vida guarani mbya, que consiste na convivência harmoniosa com a natureza.

“Viver dessa forma significa que vamos proteger o meio ambiente, onde tem outras vidas físicas e espirituais, que são os guardiões das árvores, de cada animal, das águas, das nascentes, dos rios, da cachoeira e das pedras”, diz Jerá.

Para garantir a proteção de todos os seres, mesmo os invisíveis, a população guarani mbya se articula interna e externamente. Toda a luta pelo reconhecimento e homologação é feita junto às instituições “juruá” (como se referem a não-indígenas) por meio de organizações como a Comissão Guarani Yvyrupa.

No âmbito municipal, lideranças das TIs Tenondé Porã e Jaraguá (na zona Noroeste) elaboraram um projeto de lei (PL) para criar um “cinturão verde” na capital paulista a partir dos territórios, como política pública para preservação ambiental e do modo de vida nessas regiões. O mínimo de preservação, mesclando tecnologias ancestrais com novas técnicas, permite o cultivo de 28 colmeias com 7 espécies de abelhas nativas, 50 espécies de batata doce, 16 de milho, 14 de mandioca, 11 de abóbora, 10 de feijão, entre outras. O PL, entretanto, tramita na Câmara Municipal desde 2016.

Nacionalmente, o povo guarani mbya segue em luta contra o Marco Temporal. Recentemente julgado como medida inconstitucional por maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), a tese passou em comissão no Senado e segue em discussão. O Marco Temporal determina, por exemplo, que só podem ser reivindicados como ancestrais os territórios ocupados por indígenas até a promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988. Se estivesse valendo, a tese ameaçaria a própria existência da TI Tenondé Porã, reconhecida apenas há 11 anos.

Acordo de Escazú

Para a especialista Julia Rocha, a defesa de um território originário e consequentemente a preservação ambiental na maior cidade do País seria facilitada se estivesse em vigor o Acordo de Escazú, como é conhecido o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe.

O tratado contempla a proteção a quem defende o meio ambiente, o que inclui ativistas e populações tradicionais, como comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas. “No mínimo, o Acordo de Escazu poderia reforçar o argumento em caso de violação de direito à participação”, explica ela, que é coordenadora do programa de acesso à informação na organização Artigo 19.

Julia salienta que o Acordo de Escazú amplia a participação dos grupos interessados em determinada discussão, inclusive com o estabelecimento de comitês independentes locais, nacionais e internacionais.

Adotado em 2018 na cidade de Escazú (Costa Rica), o tratado começou a valer em 2021 em 15 países da região, incluindo Argentina, México e Colômbia. Já o Brasil passou pelos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) sem que eles enviassem o texto ao Congresso, o que foi feito em maio deste ano pelo Presidente Lula (PT). Agora, o acordo aguarda aprovação e deve ser ratificado como emenda constitucional.

Fortalecimento local

Enquanto se articulam externamente para enfrentar as decisões de juruás por meio de suas instituições, as lideranças guarani fazem um trabalho político interno para preservação do nhandereko.

Além das atividades culturais e da educação, na TI Tenondé Porã uma comissão de lideranças de cada aldeia determina o que é permitido ou não para filtrar as influências do sistema capitalista que chegam especialmente pela internet. Uma das decisões diz respeito ao exercício de outras religiões por pessoas que vivem na TI, em especial da presença evangélica pentecostal.

“Nenhuma das lideranças que faz parte dessas 14 aldeias pode deixar construir igreja na terra indígena (…) Se o guarani quiser ser evangélico, ele pode ser, mas tem que sair da aldeia”, explica Jerá.

Ela explica que as decisões são uma forma de barrar a entrada de ideologias que conflitam com a visão de mundo guarani. “A partir do momento em que essa concepção de vida harmoniosa é corrompida, você automaticamente entra mais forte na ideia do mercado, do capitalismo, que vai engolindo tudo e a todos”.

“Então, se a cultura guarani tá mais forte, significa que vai proteger mais a natureza porque toda essa concepção de valores tá dentro da cultura, de pensar e respeitar a natureza”.

A Periferia em Movimento, integrante da Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas, realizou essa reportagem com apoio da Artigo 19

 

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