EDITORIAL | São Paulo, 466 anos: Desculpa aí por estragar a festa

EDITORIAL | São Paulo, 466 anos: Desculpa aí por estragar a festa

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Tempo de leitura: 7 minutos

Daqui do alto do morro, da beira do córrego, da margem da represa, da aldeia desconhecida, da janela sem vista, do papelão na calçada, observo toda essa movimentação para uma festa que dizem que é pra mim, mas que na real não recebi o convite. São Paulo, sei que você quer celebrar seus 466 anos, porém neste primeiro texto de 2020 eu só consigo me lembrar que este ano tem eleições municipais, com promessas e arranca-rabos entre os donos da sua festa logo mais – e o que eu queria mesmo é colar neles pra chamar na chincha real.

A história que esse pessoal com quem você anda escreveu conta que, em 25 de janeiro de 1554, aquele padre jesuíta espanhol José de Anchieta fez uma missa católica num casebre e, assim, estava fundada a cidade de São Paulo. Fico me questionando se os cerca de 130 indígenas que já moravam por aqui e que participaram do parto se deram conta disso. “Nossa, a gente já tem um povoamento aqui, com organização própria e tudo mais, mas ainda bem que esse europeu branco apareceu pra nos catequizar e batizar, pra honra e glória. Nascemos de novo! Daqui uns 04 séculos, o pessoal vai poder folgar no feriado, pelo menos”.

Desculpa aí, farialimers, por atrapalhar o tráfego de patinetes elétricos. Ops, quase fui atropelada – de novo, né? Porque, primeiro, cê atropelou os índios com o “espírito empreendedor” dos bandeirantes que foram abrindo caminho selva adentro pra tirar o ouro, fazer plantações e levar a palavra de salvação. Depois, empurrou a população negra e pobre que sobrou no centro para as áreas mais distantes. Chamou a gente de vetor de doença pra derrubar nossas casas e ter mais espaço para a elite branca e rica.

Os pais e avôs dos donos da sua festa transformaram o dinheiro do café em fábrica. E trouxeram meus pais e avôs do Nordeste do Brasil pra trampar e gerar lucro na cidade do capital. Meus antepassados aterraram mais de 300 rios e pavimentaram as avenidas do seu progresso, construíram prédios do tamanho da ambição paulistana, mas pra eles – pra nós – só foi deixado o “quarto de despejo” descrito pela Carolina de Jesus.

Que sacanagem: 466 anos depois, eu continuo nessa, São Paulo. Tão rica, tão pujante e por aqui se vive em média 20 anos menos do que nos bairros mais ricos. E os ricos também têm 10 vezes mais chance de encontrar um emprego.

Ainda assim, veja só: apesar de você, apesar de ter jogado a gente aqui nas margens pra morrer, tamo vivona e vivendo. Nas periferias, sem água nem luz, a gente se conheceu, casou e constituiu família. Os pais andavam 10, 20 quilômetros por dia pra pegar o busão enquanto as mães tavam fazendo abaixo-assinado pra ter energia elétrica, asfalto e transporte num lugar que a cidade nem dizia existir.

Nossas matriarcas lembraram as histórias de quem veio antes, da luta por sobrevivência, e ensinaram o caminho das pedras. A gente levantou casa e bateu laje com as próprias mãos, foi pro arrebento contra a inflação, fez greve e enfrentou a ditadura contra a classe média que por aqui ainda não terminou… Juntamos os vizinhos e conquistamos na marra aquilo que você sempre nos negou, São Paulo.

Não estamos nos seus livros, nem nas telas, mas resgatamos sentidos e reescrevemos nossas histórias nas letras de rap. Criamos uma identidade a partir dos Racionais, olha só. Em 1990, a escritora Maria Vilani ousou fazer arte quando isso nem era reconhecido como direito. E Sérgio Vaz e tantos outros poetas tiraram a poesia do pedestal e fez ela beijar nossos pés aqui no quarto de despejo. Cê quer fechar nossas escolas, mas a gente vai lá e ocupa. Quer nos matar, mas a gente é resistência.

Então, São Paulo, apesar de você me negar (nos negar), eu (NÓS) construí (mos) uma Anti-São Paulo, uma São Paulo clandestina, uma São Paulo coletiva que bate frente com esse individualismo que você tenta me convencer. Viver aqui, hoje, tá muito ligado a lugares onde eu quero e posso estar. Circular onde moro e nas quebradas me tranquiliza. Converso pelo olhar quando trombo outras pessoas nas ruas daqui.

Vejo muitos dos meus ocupando espaços aí do seu lado, enquanto fazem os corres por aqui. Você não conhece a gente, mas a gente te conhece por dentro, viu?

Nesse níver de 466 anos, eu queria mesmo é tá lá no fluxo, no batidão, com minha rapazeada (não vem mandar a polícia baixar pra moiar meu rolê). Queria celebrar é essa galera que insiste em existir num lugar que tentam negar nossa existência a todo custo. Esse lugar me alimenta.

E mais, atravessar a ponte faz mal pra minha saúde mental. As experiências aí me fazem sofrer, da invisibilidade aos olhares tortos. Eu não quero pagar R$ 4,40 no transporte pra colar na sua festa, São Paulo. Não mesmo. Mas quer saber: mesmo sem ser convidada oficialmente, vou pular a catraca do metrô e colar de bicão com o bonde todo.

É que eu tenho esses negócios pra falar pra você, o rancor tá engasgado aqui.

Pra finalizar a conversa, que eu não tô com tempo sobrando, o feijão tá no fogo e tenho que pegar a roupa no varal pois vai chover: vai me escutar ou não vai, São Paulo? Se prepara, que em 2020 nós vamos invadir sua Faria Lima!

1 Comentário

  1. […] a Periferia em Movimento retoma os trabalhos neste 25 de janeiro de 2021. A data marca os 467 anos da fundação de um colégio por padres jesuítas vindos da Europa na antiga aldeia Piratininga. […]

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