E se os conhecimentos do candomblé fossem incorporados pelo SUS?

E se os conhecimentos do candomblé fossem incorporados pelo SUS?

No Dia Nacional da Saúde e no mês em que tradições de matriz africana celebram Orixás do vuidado e restauração da vida, Iyá Adriana de Nanã apresenta uma reflexão sobre a medicina tradicional e o sistema de saúde 

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Tempo de leitura: 8 minutos

Durante o mês de agosto, nós, das comunidades tradicionais de matriz africana de origem Nagô Iorubá, prestamos homenagens ao grande Rei Obaluayê e a toda a família Iji, composta por Nanã, Oxumarê, Osanyin e Yewa — Orixás ligados à terra, à medicina e ao ciclo de restauração da vida.

Um Itan (histórias de Orixá) conta que Obatalá, designado por Olodumare — o Deus Supremo — para criar a humanidade e permitir que ela usufruísse das maravilhas do mundo e da natureza já criados, tentou inicialmente moldar o ser humano com fogo, mas este se consumiu. Tentou, então, a madeira, que se mostrou muito rígida. Com a pedra, também falhou.

Ao presenciar o esforço de Obatalá, Nanã ofereceu a ele a lama de seu reino, sob a condição de que, ao fim do tempo na Terra, os corpos humanos fossem devolvidos a ela. Assim, fomos criados a partir da terra e a ela retornaremos.

Obaluayê, filho mítico de Nanã, é o dono da terra que sustenta nossos pés e que recebe nossos corpos quando findamos nossa passagem aqui. Também é o Orixá associado ao sol e à cura. A ele recorremos quando precisamos de restabelecimento físico, quando buscamos evitar uma morte precoce, e para nos reconectar com o equilíbrio da vida.

Consultando o dicionário sobre o significado da palavra medicina, temos que ela representa um conjunto dos saberes que se relacionam com o cuidado, manutenção, monitoramento e tratamento da saúde, da cura das doenças. Ao refletir sobre minha atuação enquanto iyalorixá, percebo que eu atuo exatamente nesse lugar.

Adriana de Nanã, em roda de saberes na Periferia em Movimento (foto Pedro Salvador)

Adriana de Nanã, em roda de saberes na Periferia em Movimento (foto Pedro Salvador)

Historicamente no Brasil, muito antes da criação do SUS (Sistema Único de Saúde) e do acesso universal à medicina ocidental, o cuidado com a saúde física, espiritual e emocional nas comunidades era responsabilidade dos sacerdotes e curadores das tradições afroameríndias.

Mães e pais de santo, benzedeiras, caboclos, pajés e mestres juremeiros compõem esse sistema ancestral que aqui chamamos de medicina tradicional — um conjunto de saberes e práticas que nos manteve vivos até hoje.

Defendo, portanto, o uso do termo medicina tradicional, pois ele reconhece um sistema de cuidado, diagnóstico e tratamento anterior à medicina alopática ocidental. Ele considera o corpo e a alma como partes integradas de um mesmo ser.

Nas casas de Candomblé, da qual sou sacerdotisa, o diagnóstico espiritual inicia-se pela consulta ao merindilogun (jogo de búzios). Através desse oráculo, a espiritualidade orienta desde mudanças comportamentais necessárias até a busca por exames e tratamentos da medicina alopática. Ifá, sistema que orienta o merindilogun, pode não nomear uma doença com os termos científicos da medicina moderna, mas aponta regiões do corpo em desequilíbrio, comportamentos nocivos à saúde e caminhos para a cura integral.

Isso não significa negar os avanços da medicina ocidental. Pelo contrário: acredito que nenhuma tecnologia precisa sobrepor ou excluir a outra. Ambas podem dialogar, se respeitadas em sua essência.

Em minha prática como iyalorixá, observo com atenção os sinais que o corpo e o oráculo apontam, e, muitas vezes, encaminho os filhos de santo para exames médicos, tratamentos convencionais, psicoterapia e uso de medicações, enquanto realizamos os ebós e rituais espirituais. O cuidado integral requer responsabilidade, compromisso e abertura para múltiplas formas de cura.

A medicina tradicional das matrizes africanas vê o ser humano como um todo. Diferente da abordagem fragmentada da medicina ocidental, que muitas vezes trata o corpo em partes isoladas — como se o pé não dialogasse com a cabeça ou com as emoções —, a medicina tradicional compreende que corpo, mente e espírito estão entrelaçados.

Se nossas tecnologias de cuidado fossem inseridas formalmente no SUS, assim como já ocorre com práticas integrativas como o tai chi chuan ou a acupuntura, teríamos avanços significativos nos resultados de saúde pública. É um desperdício manter uma disputa de narrativas entre tecnologias de cuidado. A imposição do racismo religioso cria barreiras que prejudicam diretamente a população, sobretudo a população negra e de terreiros.

Há muitos relatos de internações em que pessoas de matriz africana são impedidas de receber a visita de seus sacerdotes para realizar os rituais necessários ao seu restabelecimento. Há ainda a sabedoria da espiritualidade, que por vezes indica restrições alimentares importantes para evitar o adoecimento — orientações que já demonstraram prevenir doenças hereditárias em famílias.

Enquanto a medicina ocidental geralmente atua após o surgimento da doença, a medicina tradicional é essencialmente preventiva. Ela indica, por exemplo, a necessidade de um check-up ginecológico mesmo antes de qualquer sintoma, aponta a realização de um ebó, sugere uma mudança de conduta, e orienta a busca por um médico.

É uma medicina da escuta, do sinal, da antecipação.

Hoje, alguns exames laboratoriais já adotam referenciais específicos para a população afrodescendente, e existem diretrizes para a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. No entanto, ainda falta reconhecer e incorporar as culturas tradicionais como parceiras legítimas na política de cuidado.

O serviço público de saúde ideal seria aquele que incluísse profissionais da medicina tradicional nas equipes de atenção básica. Agentes comunitários preparados para pensar a prevenção a partir da diversidade cultural; equipes multidisciplinares que respeitem saberes ancestrais e religiões de matriz africana; um SUS que enxergue o cuidado como algo coletivo e plural.

Há experiências bem sucedidas como o Programa “Soro, Raízes e Rezas” desenvolvido pelo SUS em parcerias com benzedeiras e benzedeiros que respeitou a tradição local incorporando essas lideranças nas equipes de saúde preventiva. Esse programa, desenvolvido em um município do nordeste brasileiro deve ser inspiração para a construção de políticas nacionais de saúde.

Outras religiões possuem restrições alimentares e são respeitadas. Por que não as tradições afro-brasileiras? O que nos mata, muitas vezes, é justamente a falta de diversidade cultural no cuidado.

Sobre a autora

Iyá Adriana de Nanã é Iyalorixá fundadora e sacerdotisa do Ilê Axé Omó Nanã, ativista dos direitos humanos e no enfrentamento ao racismo religioso, articuladora e educadora social, membro do Conselho Político da Ocupação Cultural Jeholu, idealizadora e co-coordenadora do Projeto Cabaça: Culturas de Matriz Africana e Economia Solidária na UNIFESP, co-autora do livro Lula e a Espiritualidade: Oração, Meditação e Militância.

 

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