Quando Odé foi impedido de cuidar de seu filho: Por que é importante yalorisás e babalorisás nos hospitais

Quando Odé foi impedido de cuidar de seu filho: Por que é importante yalorisás e babalorisás nos hospitais

No começo da semana, um filho de santo morreu em seu leito de hospital sem ter recebido a visita de sua yalorisá para assistência espiritual, que acusou a direção da unidade de praticar racismo religioso. Neste artigo, Rafael Cristiano (que também é filho de santo) explica a importância que há em garantir esse acesso

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Tempo de leitura: 6 minutos

Por Rafael Cristiano*

Hoje, quando escrevo este texto, é uma quinta feira (10/11/22). As quintas aqui no Brasil são dias dados a Oxossi e o clã dos caçadores, e a Ossain, meu pai, meu santo.

Ossain é o orixá que sabe o segredo de todas as folhas, sabe como curar e enfeitiçar alguém. Ossain é aquele que cura a doença, afasta a morte.

Começo o texto tomando a bênção de meu Babá Cláudio de Aganjú, que gentilmente o colocou na minha vida, colocou o encanto em mim e me ajudou a escrever esse texto (as citações em destaque são falas dele). Essa relação entre uma pessoa zeladora de santo e de uma pessoa iniciada, é preciosa, espiritual e afetiva. É quem te apresentou ao mistério, quem te iniciou no segredo.

Nós do candomblé aprendemos a afinar a linha do material/real. Herdamos isso de pessoas antepassadas africanas trazidas à força pra cá hà séculos. Essa herança faz com que olhemos para morte e para doença de formas distintas, e permite que não dividamos as experiências de forma tão demarcada. Corpo, espírito, pensamentos e afetos para nós muitas vezes são uma coisa só.

“Meu filho, eu enxergo a doença como uma mazela do corpo, porque ele é um presente de orixá. Se não cuidamos, ele vai dando sinais de desgaste, e o espiritual ajuda a curar isso. A morte é uma passagem. Nós iniciados no segredo não morremos. A gente volta”

 (crédito: Reprodução/Arquivo Pessoal)

No domingo (5/11), morreu Jerônimo Rufino dos Santos Junior,/ (foto ao lado) de 39 anos, no Hospital Estadual Carlos Chagas, na zona Norte do Rio de Janeiro. Jerônimo era um filho de santo como eu e teve um direito negado enquanto estava no leito: o da visita de sua yalorisá, Iyá Paula de Odé, sua mãe de santo. Para além de ser um crime de intolerância religiosa, é importante que pensemos que para nós de santo isso fere não só a questão legislativa, mas impede que nossa cultura, nossa liturgia aconteça.

“Quando a medicina não dá certo, a gente precisa ajudar a medicina com nossos banhos, ebós, pro espiritual ajudar os médicos. Então é muito importante que a gente possa ter livre acesso a nossos filhos e devotos. Apesar que é lei, não estamos pedindo coisas absurdas, é um direito que infelizmente nem todas as pessoas zeladoras de santo sabem dele ou possam executá-lo. Se o padre entra, nós também vamos entrar.”

Essa fala de meu pai aponta para uma questão primordial no nosso país: o racismo religioso, que impede que vivamos o suposto estado laico garantido pela Constituição, que prevê a liberdade de crença religiosa e que protegeria nossas manifestações e crenças, como por exemplo, a de prestar e receber atendimento espiritual em um leito de hospital.

Evoco inclusive a palavra “epistemicídio” que, em linhas gerais, seria a invisibilização e ocultação das contribuições culturais e sociais não assimiladas pelo “saber” ocidental. Para nós não foi somente Iyá Paula que não pode ver e cuidar de seu filho, mas também Pai Odé.

“Já precisei entrar em muitos hospitais, do Grajaú ao particular. Eu fiquei muito chocado da mãe de santo ser impedida de cuidar do próprio filho. Eu me coloco no lugar dela e sinto uma dor grande. Ninguém deveria nos impedir de praticar nossa fé. Faltam palavras”

Em frente à morte nos faltam palavras, nos resta o silêncio, que dentro de casas de candomblé é fundamental. A morte para nós é um mistério que é integrado à vida. Cultuamos nosses antepassades em uma relação de carinho e confiança, pessoas vivas e quem já não está aqui em uma confluência, não esquecemos quem já se foi para que não sejamos esquecides.

“Meu pai Francisco dizia que somos todos parentes, independente da nação que a pessoa foi iniciada, mas quando a morte chega pra gente não deveria ser uma coisa triste, porque a pessoa vai rever os ancestrais.”

A morte deveria ser esse reencontro. E ela é, desde que possa ser realizada da maneira como acreditamos; Aqui não nos interessa saber se nosso parente sobreviveria caso sua mãe o visitasse (o que entre nós sabemos que já aconteceu diversas vezes e colocamos isso na conta dos mistérios e da fé), mas como foi impedido que déssemos continuidade ao encontro de nosso parente de forma tranquila com os ancestrais, com a saúde e com seu próprio corpo.

De frente a esse impedimento do ciclo, o silêncio.

Que seja um encontro possível, o de nosso parente com o mistério e ancestrais.

E que Ossain possa sempre entrar em espaços de cuidado.

Asé!

*Rafael Cristiano é designer da Periferia em Movimento, ator e dramaturgo. Formado em design gráfico pela FMU em 2012. É Ọmọ Òrìṣà de Ossanyn. Tem interesse em arte e em morrer velhinho

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