“Se Deus me deu o dom, vou ajudar a quem precisa”, diz benzedeira com mais de 20 anos de ofício

“Se Deus me deu o dom, vou ajudar a quem precisa”, diz benzedeira com mais de 20 anos de ofício

Dona Socorro é a quarta entrevistada da série “Mulheres de Fé”, que apresenta mulheres periféricas de várias crenças engajadas no dia a dia de suas comunidades

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Por Elisabeth Botelho. Fotos de Pedro Salvador. Edição de texto: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano. Distribuição: Vênuz Capel

“Fé, minha filha, é você acreditar no que tá recebendo. Por exemplo, se eu benzer você e você falar: ‘Ah, ela não sabe de nada!’, isso não vai adiantar. Você tem que ter fé, e não só em mim, mas em Deus também, porque é Ele que dá o dom pra gente. Ele que dá o poder.”

A piauiense Maria do Socorro Gomes da Silva, de 48 anos, tem fé. E é tanta que transborda, de tal forma que ela compartilha benzendo outras pessoas. Moradora há 27 anos do Jardim Lapena, em São Miguel Paulista (zona Leste de São Paulo), ela aprendeu o ofício com a avó. A tradição vem de longe: a tataravó também era benzedeira.

Dona Socorro se declara cristã, mas também se inspira em uma tia que acompanhava no candomblé. Os santos e guias sussurram segredos em seus ouvidos, e dona Socorro coloca em prática com o ramo de arruda mais próximo.

Recentemente, ela se tornou reconhecida pelo que faz no bairro ao participar da peça de teatro “Reset Brasil”, do Coletivo Estopô Balaio. No espetáculo, ela é conhecida por ser benzedeira e como a “tia do caldo”que serve ao público, e que remete a sua própria história. Em sua vida, o caldo era preparado por sua avó benzedeira para alimentar a ela e os irmãos.

O benzimento significa poder ajudar as pessoas e praticar um dom recebido por Deus, além de praticar o que a sua avó sempre fazia por outras pessoas: o bem.

Clique nas fotos para ampliar e confira trechos da entrevista em que ela fala de valores familiares, religiosos e a vida em sociedade.

Fé de berço 

“Eu nasci e me criei lá no Piauí. Como os meus pais eram separados, eu fui criada pela minha avó – eu e meus irmãos. E a minha avó é parteira e benzedeira. Eu comecei assim. Aonde a minha avó ia benzer, fazer parto, sempre me levava com ela. Eu estava ali participando, vendo e aprendendo com ela, só que nunca praticava.”

“Eu tenho uma tia que é do candomblé, e eu participava quando iam fazer os trabalho. De criancinha mesmo, a gente ia. Por isso que meu sonho era me vestir de branco, porque eu via minha tia falando ‘meu pai de santo é tal, minha mãe de santo é tal’. Aí, eu fui criada naquilo e falava assim: ‘quando eu crescer, quero ser igual à minha tia’”.

“(…) E quando eu via minha avó benzendo e aquelas pessoas doentes serem curadas, eu falei: ‘também quero isso pra mim’ (…) “Já veio de família. Minha avó sabia benzer, minha tataravó sabia também”.

“Essa daqui e o outro têm medo do dom [apontou para a filha que estava acompanhando a conversa]. Já os outros, não. O Fernandinho e a Nani, mesmo ela sendo da igreja dela (…) A minha filha evangélica às vezes me dá uma criticadinha, mas eu falo para ela que eu não critico a fé dela para ela não criticar a minha.”

Dom de Deus

“O benzimento é para ajudar as pessoas. Se você não tem fé, nem adianta vir porque sem fé você não fica bem. Você tem que ter muita fé para poder procurar alguém para te benzer, porque se você não tem fé como vai se curar? E é o que eu sinto: orgulho e muita fé.”

“Eu prefiro benzer com arruda e pião roxo, mas só que no momento não tem o pé de pião roxo. De tanto a gente tirar os negócios lá, secou.”

“Quando eu vou benzer alguém (…), quando a pessoa tá muito carregada, eu passo o resto do dia ruim, vomitando, com dor de cabeça, fico tonta.”

[E como a senhora se cuida?] “Ah! Meu santo é poderoso, meu santo é forte.”

“Já faz dias que eu tô vendo que vai vir uma pessoa de cadeira de roda para eu benzer, eles (meus santos, meu protetor, meus guias) me avisam. Ele [o santo] falou: ‘na hora em que você tocar, Deus vai te dar um dom tão maravilhoso que essa pessoa vai levantar e você vai glorificar a Deus.”

Luz na favela

“(…) Quando eu cheguei aqui em São Paulo, eu comecei a ver as crianças doentes, o pessoal atrás de benzedeira que só queria pagamento [para rezar]. Aí eu falei: ‘se Deus me deu o dom, eu vou praticar, eu vou fazer e não vou cobrar nada’. Até porque eu não fui criada assim. Nós passava era fome, nós passava 3 dias sem ter o que comer.”

“[As pessoas chegavam e perguntavam:] ‘Alguém me indicou a senhora. A senhora benze?’. Aí, depois de benzer, a pessoa queria pagar. Eu falava: ‘não, eu não recebo’. Agora, se alguém quiser me dar um presentinho e tal, eu posso aceitar, que nem a minha avó fazia. Mas dinheiro mesmo eu não aceito, não.”

“Outro dia estava no barzinho tomando cerveja e chegou um senhor pedindo comida. Todo mundo falou que não tinha, aí eu disse pra ele ir lá em casa. Eu sei como a fome dói, já passei fome.”

“Durante a pandemia, a gente passou muita dificuldade, todo mundo desempregado. Mas a gente tem aqui a associação, tem o presidente que sempre doava cesta básica.”

“Tem um senhor aqui que toda vez que me vê,  me abraça e fala: ‘Nossa, toda vez que vejo você, vejo aquela luz brilhando’. E ele começa a chorar, e eu choro junto com ele.”

“Tem uns que vêm sentindo com mau-olhado. Tem uma menina que eu benzia que tava com depressão e ela se sentiu bem também, aí sempre que ela tá ruim, ela me chama, e eu vou lá benzer ela. Aí, tem outros que têm dor de cabeça… Cada um tem uma coisa diferente para contar. Eu sempre tenho que estar pronta.”

“Às vezes, vejo coisas que eu tenho que ver no meu sonho. É tipo uma revelação que vem, aí eu vejo, alerto o pessoal. Nunca me falhou.”

Me senti reconhecida

“Quando eu tava no teatro, que eu vinha vestida com a minha roupa e ia passando na rua, o pessoal vinha: ‘a benção, mãe’. E eu abençoava, né? (…) Eu nunca tinha sido vista em lugar nenhum”.

“Era o meu sonho me vestir assim, então eles realizaram meu sonho no teatro. Eu conversei com a estilista e ela falou: ‘dona Socorro pra gente fazer essa roupa para senhora, a gente teve que ir na casa de umbanda, perguntar, pesquisar e ver qual é o tipo da roupa da benzedeira’. Aí eu falei: ‘já que mexeu com o santo e tudo, então minha roupa é minha, eu não vou devolver’. Aí, deixaram eu ficar.”

“Eu sempre gosto de usar meus colares quando eu tô na apresentação. Digo que eles são meus guias.”

“Eu saía e o pessoal falava assim: ‘Lá vem a macumbeira, ó a macumbeira!’. Às vezes, ela se estressava, né? [apontou para a outra filha que estava ao lado]. Eu falava assim: ‘Deixa, filha, tá na mão de Deus. Deus tá vendo o que eu sou e o que eu faço’. E o que eu faço é ajudar quem precisa de mim.”

[Você se considera uma mulher de fé?] “Sim, muita fé! (…) As pessoas só sabem me chamar de macumbeira [risos], mas eu não ligo, não. (…) Eles não entendem o que é ser macumbeira, né? Se eles entendessem de tudo, mas nem sabem o que estão falando.”

Sou o que sou

“Gosto de tomar cerveja. Eu sempre fico aqui [se referindo aos bares que frequenta] curtindo um Léo Magalhães tomando uma cervejinha.”

“Teve um dia que eu tava lá no barzinho tomando uma cerveja, aí tinha uma menina lá, ela veio e me beijou. Tinha um cara lá dançando e ele falou assim: ‘você tá suja aqui’. Ai, eu falei: ‘foi a menina que me beijou’. E ele: ‘não foi a menina, foi um traveco’. Eu falei: ‘Que ridículo, isso!. (…) Cada um tem que ser o que é e as pessoas não têm que criticar’”

“A gente tem que ser assim, o meu coração tem que ser grande para ajudar todo mundo que precisa (…) Eu me sinto feliz fazendo o bem para as pessoas. Muito feliz”.

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2 Comentários

  1. Eu gosto muito de benzer eu creio 🙏

  2. Luciana disse:

    Eu tambem queria muito encontrar uma benzedeira aqui na zona sul grajau , parelheiros se alguem souber me avise

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Por Elisabeth Botelho. Fotos de Pedro Salvador. Edição de texto: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano. Distribuição: Vênuz Capel

“Fé, minha filha, é você acreditar no que tá recebendo. Por exemplo, se eu benzer você e você falar: ‘Ah, ela não sabe de nada!’, isso não vai adiantar. Você tem que ter fé, e não só em mim, mas em Deus também, porque é Ele que dá o dom pra gente. Ele que dá o poder.”

A piauiense Maria do Socorro Gomes da Silva, de 48 anos, tem fé. E é tanta que transborda, de tal forma que ela compartilha benzendo outras pessoas. Moradora há 27 anos do Jardim Lapena, em São Miguel Paulista (zona Leste de São Paulo), ela aprendeu o ofício com a avó. A tradição vem de longe: a tataravó também era benzedeira.

Dona Socorro se declara cristã, mas também se inspira em uma tia que acompanhava no candomblé. Os santos e guias sussurram segredos em seus ouvidos, e dona Socorro coloca em prática com o ramo de arruda mais próximo.

Recentemente, ela se tornou reconhecida pelo que faz no bairro ao participar da peça de teatro “Reset Brasil”, do Coletivo Estopô Balaio. No espetáculo, ela é conhecida por ser benzedeira e como a “tia do caldo”que serve ao público, e que remete a sua própria história. Em sua vida, o caldo era preparado por sua avó benzedeira para alimentar a ela e os irmãos.

O benzimento significa poder ajudar as pessoas e praticar um dom recebido por Deus, além de praticar o que a sua avó sempre fazia por outras pessoas: o bem.

Clique nas fotos para ampliar e confira trechos da entrevista em que ela fala de valores familiares, religiosos e a vida em sociedade.

Fé de berço 

“Eu nasci e me criei lá no Piauí. Como os meus pais eram separados, eu fui criada pela minha avó – eu e meus irmãos. E a minha avó é parteira e benzedeira. Eu comecei assim. Aonde a minha avó ia benzer, fazer parto, sempre me levava com ela. Eu estava ali participando, vendo e aprendendo com ela, só que nunca praticava.”

“Eu tenho uma tia que é do candomblé, e eu participava quando iam fazer os trabalho. De criancinha mesmo, a gente ia. Por isso que meu sonho era me vestir de branco, porque eu via minha tia falando ‘meu pai de santo é tal, minha mãe de santo é tal’. Aí, eu fui criada naquilo e falava assim: ‘quando eu crescer, quero ser igual à minha tia’”.

“(…) E quando eu via minha avó benzendo e aquelas pessoas doentes serem curadas, eu falei: ‘também quero isso pra mim’ (…) “Já veio de família. Minha avó sabia benzer, minha tataravó sabia também”.

“Essa daqui e o outro têm medo do dom [apontou para a filha que estava acompanhando a conversa]. Já os outros, não. O Fernandinho e a Nani, mesmo ela sendo da igreja dela (…) A minha filha evangélica às vezes me dá uma criticadinha, mas eu falo para ela que eu não critico a fé dela para ela não criticar a minha.”

Dom de Deus

“O benzimento é para ajudar as pessoas. Se você não tem fé, nem adianta vir porque sem fé você não fica bem. Você tem que ter muita fé para poder procurar alguém para te benzer, porque se você não tem fé como vai se curar? E é o que eu sinto: orgulho e muita fé.”

“Eu prefiro benzer com arruda e pião roxo, mas só que no momento não tem o pé de pião roxo. De tanto a gente tirar os negócios lá, secou.”

“Quando eu vou benzer alguém (…), quando a pessoa tá muito carregada, eu passo o resto do dia ruim, vomitando, com dor de cabeça, fico tonta.”

[E como a senhora se cuida?] “Ah! Meu santo é poderoso, meu santo é forte.”

“Já faz dias que eu tô vendo que vai vir uma pessoa de cadeira de roda para eu benzer, eles (meus santos, meu protetor, meus guias) me avisam. Ele [o santo] falou: ‘na hora em que você tocar, Deus vai te dar um dom tão maravilhoso que essa pessoa vai levantar e você vai glorificar a Deus.”

Luz na favela

“(…) Quando eu cheguei aqui em São Paulo, eu comecei a ver as crianças doentes, o pessoal atrás de benzedeira que só queria pagamento [para rezar]. Aí eu falei: ‘se Deus me deu o dom, eu vou praticar, eu vou fazer e não vou cobrar nada’. Até porque eu não fui criada assim. Nós passava era fome, nós passava 3 dias sem ter o que comer.”

“[As pessoas chegavam e perguntavam:] ‘Alguém me indicou a senhora. A senhora benze?’. Aí, depois de benzer, a pessoa queria pagar. Eu falava: ‘não, eu não recebo’. Agora, se alguém quiser me dar um presentinho e tal, eu posso aceitar, que nem a minha avó fazia. Mas dinheiro mesmo eu não aceito, não.”

“Outro dia estava no barzinho tomando cerveja e chegou um senhor pedindo comida. Todo mundo falou que não tinha, aí eu disse pra ele ir lá em casa. Eu sei como a fome dói, já passei fome.”

“Durante a pandemia, a gente passou muita dificuldade, todo mundo desempregado. Mas a gente tem aqui a associação, tem o presidente que sempre doava cesta básica.”

“Tem um senhor aqui que toda vez que me vê,  me abraça e fala: ‘Nossa, toda vez que vejo você, vejo aquela luz brilhando’. E ele começa a chorar, e eu choro junto com ele.”

“Tem uns que vêm sentindo com mau-olhado. Tem uma menina que eu benzia que tava com depressão e ela se sentiu bem também, aí sempre que ela tá ruim, ela me chama, e eu vou lá benzer ela. Aí, tem outros que têm dor de cabeça… Cada um tem uma coisa diferente para contar. Eu sempre tenho que estar pronta.”

“Às vezes, vejo coisas que eu tenho que ver no meu sonho. É tipo uma revelação que vem, aí eu vejo, alerto o pessoal. Nunca me falhou.”

Me senti reconhecida

“Quando eu tava no teatro, que eu vinha vestida com a minha roupa e ia passando na rua, o pessoal vinha: ‘a benção, mãe’. E eu abençoava, né? (…) Eu nunca tinha sido vista em lugar nenhum”.

“Era o meu sonho me vestir assim, então eles realizaram meu sonho no teatro. Eu conversei com a estilista e ela falou: ‘dona Socorro pra gente fazer essa roupa para senhora, a gente teve que ir na casa de umbanda, perguntar, pesquisar e ver qual é o tipo da roupa da benzedeira’. Aí eu falei: ‘já que mexeu com o santo e tudo, então minha roupa é minha, eu não vou devolver’. Aí, deixaram eu ficar.”

“Eu sempre gosto de usar meus colares quando eu tô na apresentação. Digo que eles são meus guias.”

“Eu saía e o pessoal falava assim: ‘Lá vem a macumbeira, ó a macumbeira!’. Às vezes, ela se estressava, né? [apontou para a outra filha que estava ao lado]. Eu falava assim: ‘Deixa, filha, tá na mão de Deus. Deus tá vendo o que eu sou e o que eu faço’. E o que eu faço é ajudar quem precisa de mim.”

[Você se considera uma mulher de fé?] “Sim, muita fé! (…) As pessoas só sabem me chamar de macumbeira [risos], mas eu não ligo, não. (…) Eles não entendem o que é ser macumbeira, né? Se eles entendessem de tudo, mas nem sabem o que estão falando.”

Sou o que sou

“Gosto de tomar cerveja. Eu sempre fico aqui [se referindo aos bares que frequenta] curtindo um Léo Magalhães tomando uma cervejinha.”

“Teve um dia que eu tava lá no barzinho tomando uma cerveja, aí tinha uma menina lá, ela veio e me beijou. Tinha um cara lá dançando e ele falou assim: ‘você tá suja aqui’. Ai, eu falei: ‘foi a menina que me beijou’. E ele: ‘não foi a menina, foi um traveco’. Eu falei: ‘Que ridículo, isso!. (…) Cada um tem que ser o que é e as pessoas não têm que criticar’”

“A gente tem que ser assim, o meu coração tem que ser grande para ajudar todo mundo que precisa (…) Eu me sinto feliz fazendo o bem para as pessoas. Muito feliz”.

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