Saberes ancestrais: Comida carrega memórias, perspectivas de mundo e resistência

Saberes ancestrais: Comida carrega memórias, perspectivas de mundo e resistência

Lideranças de aldeias indígenas, quilombos, terreiros e da agroecologia trocam experiências sobre cultivos e lutas políticas para manter modos de vida 

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Por Thiago Borges, com colaboração da pesquisadora Tânia Knapp. Foto de capa: Vitori Jumapili

Das aldeias aos quilombos, dos terreiros às hortas urbanas nas periferias: cada espaço ocupado ou constituído por populações minorizadas em direitos pode se tornar um território de elaboração da vida. E isso, inevitavelmente, passa pela alimentação. O tema esteve em discussão no início de setembro, durante o “Encontro de Saberes Ancestrais na Agricultura – Guarani Mbya, afrodiaspórica, quilombola e agroecológica”, com o objetivo de promover a troca de conhecimentos e saberes relacionados aos valores culturais e patrimônio na agricultura.

Realizado no âmbito do projeto Estudo Integrado em Agricultura Urbana como Patrimônio, desenvolvido na Universidade de São Paulo (USP) em cooperação internacional com as universidades na Alemanha, Japão, Cuba  e Indonésia, o encontro reuniu lideranças na Tekoa Kalipety, uma das 14 aldeias guarani mbya que compõem a Terra Indígena (TI) Tenondé Porã.

Com 16 mil hectares, a TI abrange boa parte dos distritos de Parelheiros e Marsilac, no Extremo Sul da cidade de São Paulo, e se estende pelos municípios de São Bernardo do Campo e Mongaguá, no litoral paulista. Com uma população de mais de 2 mil pessoas, em 2012 a TI foi reconhecida pela Funai e o território foi homologado em 2016. Indígenas ainda aguardam a demarcação física da área.

Jerá Guarani (foto: Pedro Salvador)

Os avanços são resultados de mudanças políticas internas, como a extinção da figura do cacique e da criação de conselhos políticos com representação igualitária de homens e mulheres. A forma de gestão e a ampliação da área permitiram o resgate de cultivos ancestrais da cultura guarani mbya.

“Isso se reflete no trabalho da roça, num pensamento positivo, de estudar o que é o refrigerante, o que é o salgadinho. Vamos começar a conversar com os pais e mães guarani que, de repente, viram assalariados e começam a comprar essas porcarias pros filhos e acha que tá cuidando”, aponta Jerá Guarani, 41 anos, moradora e uma das lideranças da Tekoa Kalipety.

Moradora e uma das lideranças da Kalipety, Jerá Guarani explica que o acesso à terra possibilitou a retomada de plantações a partir de práticas tradicionais e a incorporação de técnicas como a agroecologia. Atualmente, a aldeia cultiva dezenas de espécies de batata doce, diferentes tipos de milho, inhame, abóbora e mandioca. Entre as frutas, banana, jabuticaba, ingá, goiaba e todos os cítricos. E não pode faltar a erva-mate, sagrada na cultura guarani mbya.

“A gente tem terra, então a gente pode plantar, a gente pode comer a comida guarani. E nesse trabalho, vem todo mundo, vêm homens, mulheres, jovens, as crianças, que começam a plantar com amor, com respeito e falando as palavras sagradas”, completa a Jerá.

Mais do que garantir a alimentação, é a possibilidade de assegurar um modo de vida e voltar a ser “selvagem”, no sentido de quem vive em harmonia com a natureza. “Quando falam para mim: ‘Ah, você é índia, mas você já é civilizada’… Eu não quero ser civilizada. A civilização tá acabando com o planeta. Eu sou selvagem. Eu quero ser selvagem”, reforça Jerá.

Ao adotar e lutar por seus modos de vida, as populações tradicionais têm sido fundamentais para a preservação ambiental e a soberania alimentar. Assim como o povo guarani mbya na capital paulista, comunidades quilombolas do Vale do Ribeira garantem a conservação de 80% da Mata Atlântica remanescente Estado de São Paulo.

O embate, entretanto, é constante. Apenas no município de Eldorado (SP), existem 13 quilombos, sendo que a maioria não tem o registro do território. Liderança na Associação de Remanescentes de Quilombo de São Pedro, Aurico Dias observa que fazendas de monocultura de banana ou de criação de gado geram problemas como poluição e crise hídrica, além da invasão de terras para desmatamento.

Quilombo no Vale do Ribeira, interior de São Paulo (foto: Vitori Jumapili)

A região é alvo de interesses econômicos que pressionam as comunidades: só no Quilombo São Pedro, existem mais de 300 nascentes de água que abastecem o rio Ribeira de Iguape. Cavernas e paisagens são atrações turísticas, além da exploração de minérios e madeira.

Por outro lado, as comunidades quilombolas sofrem perseguição para manter a prática da roça de coivara, técnica que inclui a abertura de clareiras e queima do terreno e é reconhecida como patrimônio cultural imaterial brasileiro desde 2018, mas que foi proibida por 6 anos por causar “impacto ambiental”. No período em que foram impedidas de plantar, as famílias da região perderam até 90% de suas sementes.

Para evitar novos prejuízos, há 14 anos as comunidades quilombolas organizam uma feira de trocas para conseguir manter os plantios de arroz, feijão, mandioca, inhame, batata, taioba, entre outros. A manutenção da roça se torna central na articulação política quilombola.

“A partir do momento em que você senta, conversa, olho no olho, vendo o que tá acontecendo, se tiver interesse de fazer algo você consegue (…) Minha comunidade teve 20 reuniões para poder ser reconhecida como quilombo”, explica Aurico. Hoje, a cooperativa dos quilombos tem mais de 70 produtos registrados para comercialização.

Transformação

Agricultor familiar assentado em Araras (SP) e hoje superintendente do Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) no Estado de São Paulo, Elvio Motta salienta que é importante pressionar pela demarcação e titulação de terras indígenas e quilombolas para que esses modos de vida sejam preservados, de fato.

“Eu vim aqui porque eu sou preto. Acima de tudo, sou um homem negro. Entendo a falta e nós somos irmãos da exclusão, da negação do nosso direito. Então, a gente tem que fazer a luta de resistência”, diz ele, que ressalta a transformação realizada pelo povo preto ao reinventar ritos e culturas com outras plantas e animais que encontraram onde hoje é o Brasil.

Essa adaptação é constante, entretanto. Um exemplo são as práticas de religiões de matrizes africanas, que com o avanço da urbanização perdem espaço e consequentemente a terra para garantir a alimentação tradicional nos rituais sagrados e no dia a dia.

“É uma contradição de toda a nossa ritualística com aquilo que a gente se alimenta no dia a dia. A gente tem todo um repertório, um cardápio, que a gente utiliza, que vai feijão fradinho, vai inhame, vai milho. Só que, na nossa mesa do dia a dia, a gente come o pão francês, come a lasanha, come o macarrão”, aponta Adriana Dias de Toledo, conhecida como Mãe Adriana de Nanã.

Em 2019, Mãe Adriana iniciou o Projeto Cabaça, que parte da discussão sobre prosperidade pela ótica da matriz africana e da economia solidária para defender que “é possível produzir sem sangrar”. Coordenada por ela, a iniciativa foi acolhida como projeto de extensão na Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) e tem como conceito-chave discutir a prosperidade na lógica de uma mulher preta, que vai buscar a manutenção da cultura e do cuidado de toda a comunidade.

Em sua quarta edição, o projeto quer reconhecer tecnologias e saberes existentes para o desenvolvimento econômico solidário. A manutenção dos saberes das folhas e ervas, essenciais para o culto aos orixás, aproximou Mãe Adriana de projetos de agricultura urbana na zona Leste de São Paulo.

Mãe Adriana de Nanã (foto: Laura Pappalardo)

“A gente se junta a essas mulheres para fazer  esse resgate ancestral, né? E isso não necessariamente tem a ver com sagrado, a gente está falando de um modo de vida, de cultura e que impacta na nossa saúde”, reforça a iyalorixá.

Manter culturas agrícolas é garantir não só a segurança mas também a soberania alimentar, que é a possibilidade de comer não apenas para encher a barriga mas acessar aquilo que diz respeito a memórias, afetos, formas de se colocar no mundo. Isso é um desafio diante do avanço urbano, da concentração de terras nas mãos de poucas pessoas e do domínio capitalista.

Segundo a Associação Slow Food Brasil (ASFB), a humanidade perdeu cerca de 75% da agrobiodiversidade acumulada ao longo de 10 mil anos de intervenção na terra. Para evitar a extinção de mais culturas, a associação atua com o fortalecimento de redes de trocas e lutas em territórios de cultura alimentar. Uma das iniciativas consiste em catalogar alimentos ameaçados e outra é a aliança de pessoas cozinheiras, vistas como agentes sociais importantes para preservar a memória do preparo alimentar, reprodução de receitas e multiplicação de saberes.

Entre as propostas, está a costura dessas práticas com o patrimônio cultural, com a elaboração de inventários que servem também como instrumentos de gestão. Um exemplo disso é a experiência do Inventário Participativo de Cultura Alimentar, elaborado com a comunidade Tabajara, no Ceará. A produção coletiva gerou categorias como modos de cultivar, modos de curar, modos de caçar, criar ou pescar; aviamentos e desmanchas; e saberes, formas de expressão e celebrações. Os inventários podem ser uma forma de registrar saberes e impedir a apropriação indevida por grandes empresas.

Para a pesquisadora doutoranda Tania Knapp, bolsista do projeto, o Encontro de Saberes foi uma oportunidade de integrar pessoas de diferentes realidades mas que têm em comum a relação com a terra e a alimentação. “Apesar das diferenças culturais e das especificidades de cada grupo e território, havia uma convergência no tema cuidado: com a terra, com a cultura, com a comunidade, com a família, com o bem estar e a soberania alimentar, com as responsabilidades, com as parceiras, cuidado face às ameaças, diretas ou veladas, às boas intenções que podem causar problemas no futuro, enfim, o cuidado em muitas camado das e sentidos”, completa.

Este conteúdo faz parte da campanha Planeta Território, uma iniciativa do Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS)

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