O funk e o rap são gêneros musicais intrinsecamente ligados a territórios periféricos. Apesar de diferentes em relação à construção dos movimentos, letras e impacto cultural, os ritmos transformam vidas e compõem um importante papel social – seja nas denúncias do que acontece nas periferias ou ao alimentar sonhos e celebrações.
A Periferia em Movimento fez uma seleção musical radical para você ouvir enquanto lê esta reportagem. Dá o play:
Como manifestações culturais estigmatizadas, perseguidas e questionadas, os gêneros ecoam vozes de pessoas de todo o Brasil, que utilizam da arte para relatar situações de violência do Estado. O manifesto, no entanto, nem sempre é bem aceito.
A rapper Luana Hansen, de 44 anos, está na ativa desde os anos 2000 e diz que as sucessivas tentativas de criminalizar a cultura de quebrada são uma forma de silenciar a revolução que nasce das produções.
“A cada nova lei que mira o funk, o rap, o trap, o que o sistema tá dizendo é: ‘vocês não podem contar a própria história’. Mas a arte da periferia nunca pediu permissão. Ela nasceu do grito sufocado, da batida que rasga o silêncio, da palavra que incomoda”, aponta Luana.
Neste ano, por exemplo, popularizou-se o debate a respeito da ‘Lei Anti-Oruam’, sugerida por parlamentares com ligação a partidos conservadores da cidade de São Paulo.
Apresentado no começo do ano, o projeto de lei propõe impedir que recursos públicos sejam utilizados para ‘financiar shows ou eventos que façam apologia ao crime organizado, uso de drogas ou outras práticas ilícitas’, sem especificar os critérios de avaliação.
“É exatamente por isso que tentam censurar: porque nosso som carrega denúncia, consciência e liberdade. Quando criminalizam o que a gente vive e canta, não estão só atacando a música. Estão atacando nossa existência”, completa Luana.
Considerado o primeiro homem trans do rap nacional, tendo começado sua carreira em 1989, Tiely diz que isso é a continuidade de uma repressão histórica contra quem busca na cultura uma forma de pensar, ser e resistir.
“Passamos da fase de criminalização e já estamos sentenciados a minguar, se as políticas públicas não observarem e fomentarem a cultura periférica! Todos estão perdendo, mas as periferias perdem muito mais”, avalia.
Tiely, de 50 anos, indica que esses sucessivos ataques minam o número de editais e fomentos para viabilizar essas manifestações artísticas, afetando a produtividade cultural periférica.
“Isso impacta diretamente a população da ponte pra cá, causando uma diminuição de oportunidades para artistas, produtores e afins. Isso é uma sentença de morte para os inúmeros grupos, coletivos, projetos e pessoas que tentam viver da cultura”, aponta Tiely.
Diante disso e considerando todo o histórico de atuação dos gêneros musicais enquanto potenciais transformadores sociais, surge a pergunta: hoje, onde está o radicalismo no rap e no funk?
Consciência nas bases
De Facção Central a Racionais. Do 509-E a Dina Di. Os anos 1990, em especial, ficaram marcados por grupos que fizeram escola na música.
Sem entrar no mérito das produções recentes, as reivindicações e protestos não têm mais o mesmo apelo que em anos atrás, pelo menos considerando que chega ao topo das paradas.
O ‘rap de mensagem’ está em menor evidência, tendo perdido espaço para músicas de autocelebração que corroboram um discurso individualista.
Apesar de escolherem narrativas diferentes, as produções refletem as transformações vividas dentro dos territórios e relatam a vida – e por vezes, os sonhos de quem produz.
Tiely nota que apesar de o foco das produções ter mudado, a posição de busca pelo progresso e melhoria seguem presentes, seja no rap ou no funk.
Para o rapper, fatores como o excesso de telas, por exemplo, são prejudiciais e promovem um deslumbramento da juventude – o que interfere diretamente nas produções. Para Tiely, e o caminho para driblar essas questões é apoiar-se nos estudos.
“É melhor que essa galera nova foque em outras coisas (além das telas), com consciência de onde veio e pra onde quer ir sem pisar nos outros, respeitando as escolhas alheias e sem incoerências políticas. Fico triste de ver pessoas das antigas, que criticavam tanto a situação política e agora apoiam pessoas de direita de forma descarada. Fazer da sua arte o seu corre profissional, estudar e vencer é o foco, e o resultado é colheita”, analisa Tiely.
Para Luana, no entanto, a situação demanda atenção e cuidado.
A rapper avalia que o avanço do mercado da música, das redes sociais e a própria lógica do capitalismo acabam incentivando uma narrativa de sucesso individual, mas classifica a lógica como uma ‘armadilha’.
“O rap nasceu como voz coletiva, denúncia e resistência. E quando ele vira só vitrine, perde potência.Também tem um enfraquecimento dos movimentos sociais nas periferias, o que enfraquece o próprio conteúdo político das rimas”, analisa Luana.
“Só que isso não significa que o rap político morreu. Ele só foi empurrado pra margem de novo. Tá nas batalhas de rima, nos slams, nos coletivos independentes, nas quebradas onde ainda se rima pra sobreviver — e não só pra viralizar. E é aí que eu sigo usando o rap como ferramenta de ativismo e transformação, não só como produto”, completa.
Resistência diária
Nas eleições municipais de 2024, por exemplo, gravadoras de funk de São Paulo envolveram-se em polêmica ao apoiar abertamente candidaturas que usam o discurso de criminalização da cultura periférica e alimentam atos de repressão a bailes funks e a violência policial nesses territórios.
O apoio causou polêmica e gerou revolta, já que a aproximação às ideias neoliberais passaram a estar cada vez mais atreladas à produção do gênero.
“O maior desafio é continuar acreditando, porque manter uma arte radical na quebrada hoje é um ato de resistência diária. É ter que se sustentar, sobreviver e ainda manter acesa uma chama coletiva num mundo que só incentiva o ‘eu venci sozinho’. Mas é por isso mesmo que eu continuo: porque eu sei que minha arte é ponte, é escudo, é faca — e tem que seguir sendo ferramenta de transformação”, diz Luana.
Para ela, em um cenário cultural cada vez mais moldado pela indústria, artistas que buscam manter uma postura radical enfrentam um desafio central: remar contra a maré de um sistema que, além de reprimir, agora busca absorver e neutralizar as vozes críticas.
“Hoje em dia, o radicalismo no funk e no rap não tá nas grandes mídias, nem no topo das paradas. Tá na base, tá nos corre independentes, nas quebradas, nos slams, nas batalhas de rima, nas mulheres que estão rimando com o microfone numa mão e o sistema no alvo da outra”, destaca Luana.
A pressão se manifesta na marginalização de discursos que abordam temas como sistema carcerário, racismo estrutural e genocídio da juventude preta, com a exclusão de artistas de vitrines importantes como festivais e eventos.
“Mas enquanto houver injustiça, vai ter alguém rimando contra. O sistema pode até tentar domesticar, mas sempre vai ter quem devolva em forma de ataque, com beat e ideia afiada. E é aí que mora o verdadeiro radicalismo: onde a arte ainda é arma, e se quiser ainda pode começar ouvindo Luana Hansen”, finaliza.
Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano