Por André Santos. Edição: Thiago Borges.
A política de drogas, o uso da terra e a justiça climática se entrelaçam de forma complexa, impactando diretamente territórios periféricos e comunidades tradicionais. Isso exige reparação e protagonismo dessas populações em futuras discussões sobre a legalização das drogas.
Quem faz esse apontamento é Juliana Borges, de 43 anos, coordenadora de articulação política da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD).
“A gente acaba percebendo que esses contextos estão interligados, apesar de não parecer, e a gente precisa fortalecer diálogos que nossos ancestrais já construíram e que perdemos com o decorrer do tempo“, diz Juliana, que mora numa periferia da zona Sul de São Paulo.
“Rearticular é uma ação estratégica com insurgência das periferias, com produção dos quilombos e com os saberes das populações tradicionais, ribeirinhas e indígenas”, continua ela, que também é formada em Letras e estudante de Segurança Pública.
Conferência na periferia da zona Sul de São Paulo reuniu especialistas e militantes (foto Luiz Fernando Petty – Iniciativa Negra)
Como rota estratégica de distribuição e refino de plantas como a coca (concentrada em Peru, Bolívia e Colômbia) e a maconha (com produção forte no Paraguai), o Brasil vê essa dinâmica proibicionista impactar desde comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas até territórios periféricos urbanos.
E as periferias se tornaram pontos cruciais na logística ilegal de substâncias e passaram a conviver com a violência policial intensa, justificada pelo combate à comercialização de drogas.
A política de guerra às drogas no Brasil concentra-se em atacar o varejo e prender traficantes de pequeno porte e pessoas usuárias ao invés de desmantelar estruturas maiores dessa rede.
Isso prejudica territórios periféricos, que não são os locais de produção ou plantio de substâncias ilegalizadas, e empurra jovens para o tráfico, que veem essa como uma das poucas alternativas para garantir sustento. O conjunto de todos esses fatores contribui para o encarceramento em massa e para a piora da vida dessas populações.
O que isso tem a ver com o clima?
Essas condições, aliadas ao avanço da crise climática e a expropriação do direito à terra, colocam pessoas que habitam nas periferias urbanas e rurais em situação de vulnerabilidade social e ligam o sinal de alerta para o futuro destes espaços.
“Eu já participei de debates que falavam: ‘primeiro a gente tem que legalizar e depois a gente vê’. E a gente falava: ‘não, não tem, porque a experiência que a gente tem no Brasil de abolição édas elites abolicionistas fazerem a abolição sem terra para reforma agrária, porque já estava na mão dos até então senhores de engenho que escravizaram as pessoas e que saíram indenizados dessa história”, destaca Juliana.
Para não repetir os erros do passado, a coordenadora do INNPD defende a inclusão de pessoas periféricas no debate sobre a legalização das drogas. Isso é preponderante e indispensável para alcançar justiça e promover reparações para as violências sofridas durante décadas.
“A gente quer sim defender a bandeira da legalização, mas num modelo que atenda os nossos territórios. Então, se vai ter legalização, tem que ter reparação. Tem que ter reparação a quem foi vitimado”.
Comunidades tradicionais em risco
Para a advogada ribeirinha Dandara Rudsan, de 35 anos, as dinâmicas impostas pelas políticas proibicionistas, aliadas ao racismo e à crise climática, são altamente prejudiciais para as comunidades tradicionais no norte do País.
Sobrevivente de megaprojetos na Amazônia, gestora de conflitos socioambientais e defensora dos direitos humanos, Dandara lembra do uso da região para entrada e escoamento de substâncias como cocaína.
Ela detalha que o narcotráfico e o narcogarimpo utilizam a Amazônia para se reproduzir e deixam um rastro de destruição por onde passam.
“Temos depoimentos de companheiras que catam sementes em lugares seculares, e isso ajuda a manter a floresta em pé e viva. Quando o narcogarimpo toma conta desses locais, a gente não pode mais acessá-los. E isso, consequentemente, faz com que a gente não possa manter a floresta em pé, o que afeta diretamente a justiça climática”, aponta Dandara.
O problema não está necessariamente no narcotráfico, mas sim no proibicionismo, uma vez que é essa política que possibilita a existência e atuação de organizações criminosas dentro destes territórios.
Consequentemente, esses grupos promovem uma forma de violência territorial que impede as centenas de comunidades tradicionais acessem e usem suas terras para subsistência e conservação, ligando a política de drogas diretamente à justiça climática e à luta pela terra na Amazônia.
Dandara Rudsan, à esquerda, ao lado de Débora Silva, do movimento Mães de Maio (foto Conferência na periferia da zona Sul de São Paulo reuniu especialistas e militantes (foto Luiz Fernando Petty – Iniciativa Negra)
“Quando se ouve notícias Brasil afora que o narcotráfico está dominando a Amazônia, é porque realmente está. Mas para nós, especificamente, o que acontece todos os dias é que nossas terras não podem mais ser acessadas por nós para para que a gente sobreviva. E como comunidade tradicional, sobreviver é manter a floresta viva também”, pontua Dandara.
Dandara também projeta os desafios de uma possível legalização, alertando para o risco de exclusão das comunidades se não houver organização e reparação prévias.
Ela aponta que a medida poderia ser um pontapé inicial para o processo de reforma agrária, mas faz ressalvas sobre quem seriam as pessoas beneficiadas com uma eventual liberação.
“Com o capitalismo e o imperialismo do jeito que estão hoje, quem vai dominar esse mercado vão ser as big techs, os latifundiários, os grandes fazendeiros que já financiam o tráfico ilegal. Se nós não nos atentarmos para isso, a gente vai acabar tendo pequenos produtores sendo aniquilados pelas grandes indústrias, do mesmo jeito que nós temos hoje os agricultores familiares oprimidos pelos latifundiários que produzem alimentos com agrotóxico, que matam a gente”, afirma.
Nada sobre nós sem nós
Apropriar-se do debate e promover discussões amplificadas sobre justiça climática, uso de terras e a política de drogas é essencial para garantir um cenário de segurança para periferias urbanas, rurais e comunidades tradicionais.
“Agora temos a chance de nos antecipar e, antes de qualquer regulamentação, demarcarmos que não haverá nada de nós sem nós”, diz.
Para Juliana Borges, essas lições históricas demonstram o perigo de um processo de legalização que não inclua a reparação às comunidades vitimadas pela guerra às drogas e um modelo que garanta o protagonismo de pequenas unidades de produção e das próprias comunidades nesse futuro mercado legal.
“A gente não tá discutindo só direito de fumar ou direito de usar sua droga, mas quando a gente fala em legalização é em garantir que vidas que estão sendo hoje exterminadas possam ter direito à vida. Elas possam continuar sua vida, ter uma vida plena de direitos”, destaca ela.