Movimentos de familiares e sobreviventes do sistema prisional pautam a justiça criminal

Movimentos de familiares e sobreviventes do sistema prisional pautam a justiça criminal

Familiares e sobreviventes se apropriam de mecanismos jurídicos e contribuído para a preservação do real Estado Democrático de Direito.

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Reportagem Aline Rodrigues, Camila Lima, Laís Diogo e Thiago Borges, da Periferia em Movimento

Conteúdo originalmente publicado na Revista Resistindo com quem resiste, para celebrar os 15 anos do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Para baixar, clique aqui

1.106 quilômetros. Essa é a distância que separa Manaus de Tabatinga, município que fica na fronteira do Amazonas com a Colômbia. De barco, são 6 dias pelo rio Solimões. De avião, 2 horas de voo sem escalas. Além da dificuldade imposta pelo tempo de trajeto, tem a questão financeira: a viagem pode custar de R$ 400 a R$ 6 mil. Para muitas famílias, esse é o cálculo a ser feito quando precisam visitar parentes detidos na capital.

Grupo de familiares de pessoas presas e sobreviventes do sistema em encontro do Desencarcera AM (foto: arquivofacebook)

Com a pandemia de coronavírus, ficou pior: o governo estadual transferiu presos provisórios do interior do estado para Manaus. Ou seja, a distância não é só geográfica, mas entre exercer ou não um direito em um lugar que viu a população carcerária explodir: entre 2000 e 2019, o Amazonas passou de 2 mil para 12 mil pessoas presas. Mais de 60% delas aguardam julgamento. Se a situação já era complexa por causa da falta de informações, o medo da covid-19 no cárcere e a lonjura causaram ainda mais sofrimento. 

Para diminuir essa separação, a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas (Desencarcera AM) executa um projeto com objetivo de explicar meandros burocráticos e jurídicos sobre a prisão provisória a familiares de pessoas encarceradas, especialmente para quem vive no interior.

“Essa aproximação está sendo boa e gratificante porque estamos conseguindo orientar e conscientizar pessoas de seus direitos”

Priscila Serra, articuladora do Desencarcera AM, que é apoiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos.

Criada em março de 2020, a frente reúne professores universitários, movimentos sociais e familiares para levantar e encaminhar demandas de parentes e sobreviventes do sistema, além de monitorar a administração penitenciária, os órgãos de fiscalização e divulgar informações ao público. Existem 10 unidades prisionais na capital, 10 no interior e 57 carceragens em um território de 1.571.000 quilômetros quadrados. É um cenário propício para tragédias – e foi o que ocorreu. 

Em 2017, rebeliões geraram mortes de detentos e servidores. O estado revidou com sanções a familiares, desde restrições do que colocar no “futuro” (conhecido como “jumbo” em outras partes do País) à exigência de união estável reconhecida para a visita de companheiras. Até o tipo de calcinha que elas podiam entrar em um presídio era regulado: a de renda estava proibida.

“A prisão ultrapassa os muros, nos afetando diretamente, porque é uma tortura pra uma mãe, uma esposa”

aponta Priscila, que tinha um irmão encarcerado

Em 2019, com uma nova rebelião em Manaus, familiares em visita foram retiradas de presídios e passaram dias sem saber de nada. “Quando a gente questionou uma assistente social, ela disse apenas que ‘se o detento não estivesse na lista dos mortos é porque estava vivo”’, lembra Priscila.

Naquele momento, ela e outras pessoas criaram o Coletivo de Familiares de Presos e Presas do Amazonas, que no ano seguinte se articulou com outros grupos e recebeu apoio de 47 organizações de todo o País para formar o Desencarcera AM. As denúncias continuam as mesmas, com a diferença de que agora familiares conseguem ocupar determinados espaços institucionais. “Antes, nem Defensoria a gente sabia procurar”, explica Priscila. 

Para Kenarik Boujikian, a apropriação desses meios por movimentos sociais é fundamental para preservar direitos, corrigir injustiças e propagar a justiça criminal. “A força mais importante para as coisas não estarem mais graves do que já estão é a atuação da sociedade civil”, diz ela, que é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, fundadora da AJD (Associação Juízes para a Democracia) e criadora e integrante do Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”.

“O papel do Fundo Brasil é o de fomentar a promoção de direitos humanos para uma população vulnerável, que é a carcerária”, aponta Kenarik, que é conselheira do Fundo. Diante dos desafios atuais, em que projetos de lei querem fazer o País retroceder, ela nota que é ainda mais importante reconhecer e dar suporte a esse tipo de trabalho. “Essas organizações têm realizado algo de forma tão digna, tão contundente, intensa e apaixonada que acabam sendo o motor da construção dos direitos humanos”, completa. 

Nesses 15 anos de existência, o Fundo Brasil tem fomentado iniciativas diversas nesse campo. A reportagem conversou com algumas delas (confira um resumo dos projetos apoiados no box ao final). 

Disputa de imaginário

De 2006 para cá, a população carcerária brasileira cresceu mais do que a população geral. O número de pessoas em regime fechado ou semiaberto cresceu quase 70% no período: passou de 401,2 mil há 15 anos (segundo o Infopen) para 682 mil em 2021 (de acordo com levantamento do portal G1 feito com os governos estaduais). Já o total de habitantes no País aumentou 13%: de 188 milhões para 213 milhões, conforme estimativa do IBGE.

É o que Kenarik chama de “hiper encarceramento”, favorecido por um lado pela lei de drogas que passou a vigorar a partir de 2006; e, por outro, por um judiciário muito conservador e um tanto afastado da sociedade no geral. Por isso, a desembargadora destaca a pressão exercida por movimentos sobre o sistema de justiça – desde os fóruns e tribunais até a promotoria, a defensoria, as polícias e o poder legislativo.

Quem acompanha de perto essas mudanças é a Pastoral Carcerária, criada em 1986 pela Igreja Católica. Com o massacre do Carandiru, em 1992, o serviço se tornou referência para quem se contrapõe à repressão no sistema penal e, desde então, se articula nacional e internacionalmente em torno disso. A luta não tem sido fácil, pelo contrário. “O massacre perene se consolidou como a principal política de gerenciamento e extermínio das pessoas marginalizadas rotuladas como inimigas sociais”, lamenta a Irmã Petra Silvia Pfaller, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária. 

Diante desse agravamento, a Pastoral vem observando as necessidades de se adaptar “às novas conjunturas políticas implantadas e concentrar esforços na luta contra o Estado, e não dentro de espaços estatais e institucionalizados”, conta Petra. Por isso, o grupo fortaleceu e ampliou o sistema de recebimento e monitoramento de denúncias, a incidência nos meios de comunicação e o contato com agentes pastorais locais e familiares de pessoas presas. Além disso, a presença semanal no cárcere fortalece a incidência por um mundo sem prisões.

Quem também tem sólida atuação nessa frente é a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), fundada em 1979 com foco na promoção, proteção, defesa e reparação de direitos. A SMDH foi uma das instituições que esteve à frente de denúncias sobre o que ocorria no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, antes que chegasse aos holofotes da mídia e ganhasse grandes proporções em 2013, com o massacre que deixou dezenas de presos mortos. 

O grupo de militantes visitou familiares das vítimas e o acontecimento levou a SMDH à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Um ano depois, como o estado brasileiro não tinha tomado muitas providências, se trabalhou as medidas cautelares que se transformaram em medidas provisórias”, explica Joisiane Gamba, advogada e coordenadora da organização. Assim, desde 2014, a cada trimestre o Estado brasileiro apresenta o que fez a respeito e a SMDH indica se aquilo é efetivo ou não. E desde esse episódio, a organização também faz inspeções periódicas nos presídios – trimestrais, bimestrais e às vezes mensais.

Com apoio do Fundo Brasil, em 2016 a SMDH passou a fazer visitas diárias ao Fórum Central de São Luís para analisar documentos e pesquisar dados sobre a situação, o perfil e a existência ou não de tortura, assim como argumentos para negação ou liberação dos presos nas audiências de custódia. 

“Criamos um sistema de proteção na sociedade civil e isso foi reconhecido e virou política pública, (…) A luta é para o desencarceramento, para que saiam, mas também que não entrem”

Joisiane Gamba, advogada e coordenadora da SMDH, que enfatiza a necessidade de se desenvolver uma nova rede de proteção popular diante dos novos desafios e criar um ambiente favorável à mudança

A disputa de imaginário também é feita pela Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD), fundada em 2015 para questionar o modelo atual que gera encarceramento e morte e para apontar alternativas na perspectiva da população negra. Presente em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador e Altamira (PA), a organização faz ações de defesa dos direitos humanos e acompanha as agendas nacionais e regionais de segurança pública, sistema de justiça e saúde mental. 

Desde 2020 a Iniciativa Negra tem feito pesquisas e análises sobre o tema, dialogado com órgãos do sistema de justiça e movimentos para construir um guia de boas práticas com diagnóstico sobre o tratamento penal dado às pessoas acusadas por crimes relacionados a drogas e experiências em atendimento e resolução de conflitos fora da esfera penal. 

“Este recurso [do Fundo] tem sido fundamental para a consolidação da Iniciativa Negra como um ator relevante no campo da justiça criminal, levando em consideração principalmente os crimes relacionados às drogas”, aponta a socióloga e co-fundadora Nathalia Oliveira. 

E em Recife, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP) tocou um projeto formativo sobre enfrentamento ao racismo para a Polícia Militar. Com 40 anos de atuação protegendo vítimas e testemunhas, especialmente jovens negros de periferias que muitas vezes são presos sem advogados, o GAJOP levou essa experiência do cotidiano para um debate com oficiais da segurança pública.

“Foi uma experiência extremamente desafiadora estar com 20, 30 policiais fardados em sala de aula discutindo sobre as suas abordagens racistas”, lembra Deila Martins, coordenadora executiva do GAJOP.

As organizações acima têm sido fundamentais para pautar as violências e garantia de direitos pelo Estado e no diálogo com a sociedade em geral. E, nesse processo, contribuem para a articulação entre quem tem mais interesse no assunto: as pessoas que sofrem com o sistema. 

Famílias à frente

Foi por meio da Pastoral Carcerária, por exemplo, que a Priscila do Desencarcera AM chegou a outros grupos de familiares de pessoas presas pelo País. Uma dessas pessoas foi a Maria Railda da Silva. Junto a Miriam Duarte, Railda é uma das fundadoras da Amparar (Associação de Amigos/as e Familiares de Presos/as). Elas se conheceram em 1998 e criaram o grupo Mães da FEBEM, antiga instituição paulista para adolescentes em medida socioeducativa.

“Não queremos a matança da covid nem do encarceramento”- Railda Alves, fundadora da Amparar, associação de apoio a famílias de pessoas privadas de liberdade (Foto: Gisele Brito / Periferia em Movimento)

As mães se encontravam na porta da unidade que ficava na rodovia dos Imigrantes, em São Paulo, para conversar, saber notícias dos filhos privados de liberdade e reivindicar informações de dentro daquele espaço, que sempre foi conhecido por ser lugar de violências. Fechada em 2002 após uma série de eventos trágicos, hoje o espaço é um estádio paralímpico. 

A Amparar seguiu e foi constituída oficialmente em 2004, com objetivo de prestar apoio social e jurídico a outras famílias de pessoas presas. Em 2017, por exemplo, um projeto apoiado pelo Fundo Brasil possibilitou uma ajuda financeira a algumas dessas famílias. Isso porque acompanhar uma pessoa presa é caro: em média, R$ 600 de despesas por visita. São insumos, roupas, o jumbo, a condução e às vezes custos de viagem, dependendo para onde o preso é enviado. 

“Não é pouco, principalmente pensando que são mães, avós e companheiras que estão nesse corre aqui do lado de fora, muita vezes já não têm uma condição de vida financeira tranquila, e mesmo assim precisam e temem pelo que pode acontecer com aquele familiar em situação de cárcere”, explica Fabio Pereira, 42, articulador na Amparar e estudante de serviço social.

(Foto: Thiago Borges / Periferia em Movimento)
Durante a instalação da Comissão da Verdade Mães de Maio, na Alesp, em 2015 (Foto: Thiago Borges / Periferia em Movimento)

O protagonismo das genitoras é a base do surgimento das Mães de Maio, movimento que luta por justiça e pela memória das vítimas dos chamados “Crimes de Maio de 2006”. Naquele ano, entre 12 e 16 de maio, pelo menos 564 pessoas foram mortas no estado de São Paulo em situação que indicava participação policial numa ação de vingança contra os chamados ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital).

Uma das vítimas foi Edson dos Santos, então com 29 anos, filho de Debora Silva Maria. O gari desapareceu após ser abordado e liberado por policiais em uma daquelas noites. Na manhã seguinte, Débora soube pelo rádio da morte dele e de outras tantas vítimas na Baixada Santista. A dona de casa superou uma depressão, conheceu outras mulheres que perderam seus filhos e, juntas, elas passaram a reivindicar justiça. 

As Mães de Maio começaram suas próprias investigações, enfrentaram o poder público para obter acesso a laudos periciais e apontaram contradições e inverdades nesses documentos. Conhecido na mídia e com repercussão internacional, o movimento ainda não conseguiu a condenação do estado, mas gerou uma forma de seguir e manter viva a memória de seus mortos. 

Assim como Débora, Railda e tantas outras, esses movimentos e organizações surgem a partir da necessidade de resistir a um sistema que ainda não garante direitos a todas as pessoas. Priscila, do Desencarcera AM, também foi forjada nessa luta cotidiana. 

“Eu passei por preconceito, por racismo, por ser uma mulher negra periférica, e mesmo assim não ligava. O cárcere me mostrou uma realidade muito dura, cruel, e eu fui destratada por não ter abandonado meu irmão, que é alguém que eu amo”, lembra Priscila. “Eu fiz da minha tristeza e da minha raiva como luta pra não deixar que me destruíssem”.

A organizaçãoO contextoO apoio do Fundo
Frente Estadual pelo Desencarceramento do AmazonasSe dedica ao apoio social a familiares, levantamento e encaminhamento de demandas e denúncias, e ao monitoramento do poder públicoFortaleceu o protagonismo e formação política e técnica de familiares de pessoas presas e sobreviventes do cárcere, com a aproximação e articulação política entre capital e interior do Amazonas
Pastoral CarceráriaServiço ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que acompanha e intervém na realidade do cárcere brasileiroContribuiu para o monitoramento de denúncias de tortura no cárcere, realização de formações sobre prevenção e combate à tortura e apoio para incidências políticas no fomento a criação de políticas de desencarceramento
Sociedade Maranhense de Direitos HumanosOrganização que luta pela promoção, proteção, defesa e reparação de direitos humanos, com ação junto às populações e segmentos historicamente vulnerabilizadosArticular a construção de uma frente pelo desencarceramento no estado para combater o seletivismo penal e o abuso das prisões provisórias, bem como monitorar a implementação e eficiência das audiências de custódia
Iniciativa Negra por uma Nova Política de DrogasOrganização que diagnostica e aponta soluções pacíficas para a reforma da política sobre drogas a partir da perspectiva racial, contra a manutenção da opressão sobre a população negraContribuiu para analisar processos de pessoas acusadas, em 2020, na cidade de Salvador, por crimes relacionados à lei de drogas, identificando o seu perfil, e as circunstâncias e resultados do tratamento penal oferecido; além de mapear serviços e redes de apoio a familiares
GAJOPGrupo de advogados de Recife que atua na formulação de propostas para o sistema de segurança e justiça, incluindo para a políciaPermitiu a abordagem do enfrentamento ao racismo junto a policiais militares e assessoria jurídica em casos relacionados à política de drogas
AmpararAtua na defesa e apoio de adolescentes e adultos encarcerados e egressos do sistema penal, bem como de seus familiaresFortaleceu o atendimento prestado a familiares de pessoas presas, com grupos de conversa e apoio jurídico, além de realização de eventos e materiais sobre o tema
Mães de MaioMovimento independente formado por mães, familiares e amigos de vítimas dos Crimes de Maio de 2006 que luta por justiça, memória e reparaçãoPossibilitou a articulação política, realização de atividades formativas, produção de documentário e publicação de um livro sobre os Crimes de Maio
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1 Comentário

  1. […] Fabio Pereira ficou preso entre 2004 e 2007 e se recorda do ritual que era receber uma visita, uma carta ou um jumbo. “Quando chega ali, não é uma caixa com algumas necessidades básicas. É amor que tá chegando ali, na forma de produtos, de mercadoria. Por isso, dói quando você não consegue fazer chegar essa caixa de amor, porque tá numa condição que não te permite”, diz ele, que desde 2016 é membro da Associação Amparar. […]

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