Reportagem por André Santos. Colaboração fotográfica por Saymon d.A. Edição de texto: Thiago Borges. Edição de imagens: Vitori Jumapili
Era pra ser um lixão, mas virou plantação. Assim são os 100 hectares de terra da Comuna da Terra Irmã Alberta, onde há 21 anos vivem e trabalham cerca de 70 famílias. Situada em um terreno pertencente à Sabesp, a comunidade estabeleceu-se depois que pessoas que moravam vizinhas ao terreno contataram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para que ocupasse a área localizada na Chácara Santa Maria, bairro periférico de aspecto rural em Perus, distrito da zona Noroeste de São Paulo.
Após o pedido, naquele julho de 2002 o MST entrou em ação com apoio da Comissão Pastoral da Terra e da religiosa Irmã Alberta (1921-2018), que atuavam com o movimento junto à população em situação de rua no centro da capital. Rosângela Santos, de 62 anos, chegou ao acampamento no segundo dia, após a religiosa que hoje dá nome à comunidade fazer um convite ao marido dela.
“Nós chegamos com 900 famílias, que aos poucos foram indo para outros acampamentos e assentamentos, mas aqui continuamos a luta. Foi muito difícil no início”, relembra a moradora, hoje professora aposentada e dirigente da Regional Grande São Paulo do MST.
Segundo ela, a principal dificuldade em estabelecer esse território foi a falha de assistência do Estado às famílias, que precisaram passar pelo processo de loteamento e estruturação do local por conta própria e com poucos recursos financeiros, ainda que a permanência fosse um direito.
“A parte que eu mais gosto é ver a classe trabalhadora se organizar. Você vai conversar com um camarada que não tem o diploma de universitário, mas fala exatamente as matrizes do [filósofo alemão Karl Marx]. Vivendo dentro de uma comunidade, você vê a evolução de cada um ali no dia a dia, o quanto a pessoa suporta de sofrimento e o quanto ela é forte”, conta Rosângela.
Muitas das famílias da Comuna Irmã Alberta viviam em outras periferias ou nas ruas de São Paulo, algumas até migrantes de zonas rurais. No espaço, cultivam leguminosas, folhas, frutas, grãos, além de criar pequenos animais.
No entanto, a comunidade ainda aguarda a regularização fundiária, apoiando-se na função social que a propriedade deve cumprir, conforme diz a Constituição Federal de 1988. O processo ainda está emperrado.
“Essa área aqui eles consideraram muito cara, porque nós estamos na boca da rodovia Anhanguera, o condomínio Alphaville tá ali pra trás… Então, nós nunca conseguimos concluir o processo de conquista, mas mesmo assim resistimos às tentativas de despejo e estamos aí há 21 anos”, conta David Zamory, 36, coordenador da Regional Grande São Paulo do MST.
Aproximação com a cidade
Fundado em 1984, o MST se notabilizou em todo o Brasil na luta contra o latifúndio e pela distribuição de terras, com boa parte de seus esforços e ações em zonas rurais. No entanto, fugindo do imaginário popular, o movimento também atua em áreas próximas à cidade de São Paulo, maior centro urbano da América Latina, solidificando um ideal de aproximação da luta rural com a população que vive nas cidades.
Além da Comuna da Terra Irmã Alberta, o MST trabalha com outros 2 espaços na região metropolitana: o Assentamento Dom Tomás Balduíno, localizado na Fazenda São Roque, em Franco da Rocha; e o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Dom Pedro Casaldáliga, em Cajamar, município que fica a 40 quilômetros da capital paulista.
O movimento enxerga a aproximação aos centros urbanos como o primeiro passo para a luta por uma reforma agrária verdadeiramente popular. Essa movimentação é uma forma de tentar amplificar as vozes e propagar sua ideologia, já que facilita ao MST conseguir desmistificar estigmas por meio de ações que integrem a população na luta pela soberania alimentar.
“A gente precisa de uma reforma agrária envolvendo o conjunto da população e não somente o trabalhador rural. A partir daí, a gente começa a desenvolver várias coisas para se aproximar das cidades. Nos últimos anos, o MST se deu conta que não vamos conseguir mudar a estrutura fundiária brasileira se quem mora na cidade não entender a importância da luta”, explica David.
Juntos, os 3 locais produzem cerca de 10 toneladas de alimentos por ano, sendo que parte da produção fica com as comunidades e o restante é comercializado por meio da Cooperativa Terra e Liberdade. Por semana, são em torno de 100 cestas escoadas, num volume de 60 kg de legume, 60 kg de fruta e uns 80 maços de hortaliças e temperos.
“Através dos grupos de consumo, a gente vai abrindo um trabalho político mesmo. Porque a gente entrega, dialoga e o pessoal acompanha a produção. Não é mais só um consumidor alienado, mas alguém que sabe o que está consumindo e tem uma consciência da agroecologia”, conta David.
Alimentos produzidos em outras regiões do Estado de São Paulo e do País também chegam nos lares paulistanos em eventos como a Feira Nacional da Reforma Agrária, ue costuma reunir milhares de pessoas, além dos serviços de comercialização de produtos como a loja Armazém do Campo.
De acordo com o militante, trazer o movimento rural para dentro das cidades é uma forma de indicar caminhos para a sociedade no combate à fome no Brasil. Um estudo divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), aponta que somente no Estado de São Paulo cerca de 6,8 milhões de pessoas estão passando fome. O número total de insegurança alimentar leve, moderada ou grave atinge 56% da população de 44 milhões de habitantes do Estado.
“Não somos nós que vamos acabar com a fome. Tem que ser uma política de Estado e a sociedade tem que cobrar, porque o Estado burguês e capitalista não vai fazer por conta própria”, diz David.
Uma das principais reivindicações do MST é a manutenção do cinturão verde que existe na região metropolitana para abastecimento agroecológico, a fim de utilizar algumas destas áreas para produção de alimentos e moradia popular – hoje, elas são tomadas por plantações de eucaliptos e galpões de distribuição de empresas multinacionais.
“É muito duro. Nós fomos a terrenos com a terra muito desgastada, é uma terra que foi muito explorada, até por mineração. Então, é um terreno muito difícil de trabalhar, mas agora estamos conseguindo. Depois que você lida por anos com a mesma terra, ela começa a melhorar”, aponta Rosângela.
Apesar dos esforços, o MST é alvo constante de ataques por grupos conservadores. Atualmente, por exemplo, está em curso uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada para investigar a atuação do movimento a fim de encontrar eventuais irregularidades. No entanto, recentemente o deputado federal e relator Ricardo Salles (PL-SP), admitiu que os trabalhos da CPI perderam a força e que o relatório final pode vir a ser reprovado. A expectativa é de que o texto seja submetido a votação nesta semana.
Sementes para o futuro
Em todas as práticas do MST, o diálogo e articulação se fazem presentes. Rosângela define militantes como ‘estrategistas de primeira linha’, uma vez que estão em constante movimento, tanto em defesa de seus territórios quanto de ataques à estrutura capitalista da sociedade. De acordo com o próprio grupo, os pilares de atuação são a luta pela terra, pela reforma agrária e pelo socialismo.
“As nossas práticas são bem formativas para o sujeito entender que somos uma classe social e precisamos ocupar o poder no Brasil, ocupar o nosso espaço. Os trabalhadores sem teto são a maioria, mas no Congresso são os ruralistas. Isso tem que mudar e é por isso que lutamos”, reforça Rosângela.
Dentro das comunas é realizado um trabalho de educação para os jovens e crianças que vivem no local, além dos que estão em comunidades próximas ao Morro da Mandioca. O projeto leva o nome de Ciranda Infantil Luiz Beltrame, espaço de convivência, socialização e aprendizado que visa promover o ensino de forma horizontal, sobretudo no período da primeira infância, valorizando a criatividade das crianças durante todo o processo de aprendizagem.
“A educação é também a criatividade do ser humano. A escola é o único lugar que você vai e que você não é obrigado a se sustentar ou ter lucro. É onde a gente pode usar toda nossa criatividade para viver o lado humano”, aponta Rosângela.
Outro ponto interessante em relação ao funcionamento da ciranda é o estímulo à presença e participação familiar nas aulas, integrando membros e visando entender as particularidades de cada família para indicar formas de superarem as maiores necessidades educativas e construir um ambiente favorável ao desenvolvimento.
André Santos, Thiago Borges, Vitori Jumapili“É um espaço que não é um ‘depósito de crianças’, como é vista a creche. A ciranda é um espaço em que a criança tem o conhecimento do seu poder, suas decisões e visão de mundo. Contamos muito com os valores das crianças, e elas nos trazem coisas maravilhosas”, conclui.