Por Samuel Ravih. Edição: Thiago Borges. Fotos: Vitori Jumapili
Há trajetórias que nascem no cuidado com o outro e se expandem até se tornarem luta coletiva por dignidade. A de Nani Cruz é uma delas.
Mulher indígena nascida em Ilhéus (BA), enfermeira aposentada, Nani é mãe solo de quatro filhos e hoje presidente do CEPROCIG (Centro de Promoção e Resgate à Cidadania Grajaú Paulo VI).
Ao longo de seus 66 anos, ela traçou uma jornada entre as ruas do Grajaú (Extremo Sul paulistano) e as articulações que influenciam a política urbana de muitos estados do Brasil por meio da Central de Movimentos Populares (CMP).
“Eu gosto do desafio. Quanto maior ele é, mais você descobre que tem força”, diz Nani Cruz.
Essa consciência política de Nani começou a se formar ainda na juventude. Aos 17 anos, ela trabalhava no Brás em oficinas de costura, como catadeira e rematadeira, com longos períodos em troca de valores não condizentes, sem carteira de trabalho assinada, em condições quase análogas à escravidão. Ela também foi empregada doméstica por oito anos, como tantas outras mulheres negras e periféricas.
Foi no bairro do Bixiga, em São Paulo, participava da Paróquia Nossa Senhora da Achiropita, onde participou do “Grupo da Amizade”, que promovia acolhimento para jovens no mundo do trabalho. Lá em 1988, Nani fundou a Pastoral do Negro e protagonizou o primeiro casamento de liturgia afro dentro da Igreja Católica em São Paulo.
Mas a grande virada de sua história aconteceu uma década depois, no Grajaú.
Da necessidade nasce a luta
O ano era 1998. Recém-divorciada, Nani precisou se mudar para o Grajaú, onde teve sua casa vandalizada por um grupo de crianças.
Ao buscar entender a situação, conheceu a realidade de outras mães solo como ela, que precisavam deixar as crianças sozinhas para trabalhar. A partir desse encontro, em 2002 ela fundou o CEPROCIG.
O projeto começou acolhendo crianças para reforço escolar, alimentação e cuidado no trajeto entre escola e casa. A organização chegou a atender 120 crianças por dia.
- Nani Cruz em ação de promoção de saúde no CEPROCIG (acervo pessoal)
- Primeira colheita da horta do CEPROCIG – acervo pessoal
Durante os dois primeiros anos, o CEPROCIG foi sustentado pela própria comunidade, que colaborava doando bolachas, sucos, pacotes de macarrão e o que mais pudesse contribuir com o cuidado coletivo.
Mas quando perdeu o espaço cedido pela igreja, Nani reformou três cômodos da própria casa para manter o projeto funcionando. Ela conta que nem mesmo a pressão da criação dos filhos por ser mãe solo se comparou às dificuldades enfrentadas a frente do Ceprocig.
“Eu sofri muito para criar meus filhos sozinha, mas nunca chorei por eles o que eu chorei pelas crianças daqui.”
Com a chegada de computadores doados pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o projeto precisou de um novo espaço e se estabeleceu na rua Torquato Tapajós, onde segue até hoje.
Foi nesse endereço que as pautas de saúde e moradia ganharam força, uma vez que o Ceprocig começou a oferecer formações de prevenção à gravidez e infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), bem como a identificar que a maioria das crianças estavam em situação de vulnerabilidade habitacional.
Para ampliar sua atuação nestas duas frentes (saúde e moradia), o Ceprocig se filiou à Central de Movimentos Populares (CMP). A iniciativa projetou Nani a fazer parte do grupo de representantes do estado de São Paulo na coordenação nacional da organização.
Caminhos da resistência
Com o distanciamento social causado pela pandemia, o CEPROCIG precisou suspender o atendimento às crianças e mudou o foco da infância para a moradia.
Junto ao Conselho Municipal de Habitação (CMH), Nani lutou pela aprovação do programa Pode Entrar, uma política pública construída junto aos movimentos sociais por moradia que tem como premissa facilitar o acesso à casa própria para famílias de baixa renda.
A partir da militância dela, 1.008 unidades habitacionais devem ser entregues por meio do programa na zona Leste de São Paulo. Algumas das beneficiárias do programa são pessoas adultas que foram atendidas pela organização quando crianças, o que para Nani é a prova de que a luta tem frutos de longo prazo.
Nesse caminho, ela também viu mães mudarem práticas violentas com as crianças após vivências no projeto enquanto voluntárias se descobriram educadoras.
“Você pode ser pedagogo e não ser educador. Não adianta ter faculdade se não sabe sentar e falar com a criança dentro do olhar dela.”
Nani defende a renovação constante nos movimentos populares. Ela pontua que lideranças mais experientes, incluindo ela mesma, precisam sempre dar espaço também para novas vozes e novas ideias.
“Enquanto eu respirar, pode ter certeza que eu vou estar na luta. Mas quero ver que os mais novos vão estar também.”
No próprio CEPROCIG, ela já começou a preparar pessoas para dar continuidade ao seu trabalho, considerando a escuta ativa e o aprendizado mútuo com as novas gerações. E alerta: “A extrema-direita está avançando por causa dos rachas que temos entre nós mesmos.”
Sentido de vida
O que move Nani é o compromisso com o coletivo e a certeza de que a transformação é possível, ainda que construída passo a passo.
Enquanto um mulher indigena, Nani conta ainda há muita discriminação, o que acredita ser consequência da ignorância de um país que, em sua maioria, desconhece suas origens.
“Quem não conhece sua própria história vive na escuridão”, afirma.
Como solução, um dos caminhos sonhados por Nani é a criação de um programa reparatório totalmente voltado à saúde das mulheres indígenas e negras.
Apesar da longa jornada, Nani cultiva momentos de autocuidado e prazer. Pratica pilates, curte o neto Davi, de 10 anos, e reserva um dia na semana para ficar sozinha, refletir sobre sua trajetória e recarregar a energia.
“A felicidade é muito interna. Você não vai achá-la ao seu redor. Ela está dentro de você.”
- Em manifestação de movimentos populares – acervo pessoal