Do protesto com trouxas de roupa à creche conquistada: a trajetória de Dona Glória no Jardim Herplin

Do protesto com trouxas de roupa à creche conquistada: a trajetória de Dona Glória no Jardim Herplin

Neste Julho das Pretas, conheça a história da moradora do Extremo Sul de São Paulo que luta há mais de 40 anos por moradia, educação e dignidade em bairro periférico

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Tempo de leitura: 9 minutos

Colaboração de Adriana Novaes. Edição: Thiago Borges. Fotos: Vitori Jumapili

Um abaixo-assinado de 1.200 famílias por vaga em creche. Um galpão “invadido” com permissão do dono. Um protesto com roupas sujas na porta da Prefeitura. Essas são cenas que marcam a trajetória de Glória Atibaia.

Hoje, aos 76 anos, ela é conhecida como Dona Glória, uma referência que ultrapassa gerações na luta por direitos no Jardim Herplin, em Parelheiros, distrito do Extremo Sul de São Paulo.

“Quero ser lembrada como alguém que deu o melhor de si pelo bem comum”, diz.

Este é o primeiro perfil de líderes comunitárias negras e periféricas produzido em celebração ao Mês da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha.

Raízes de luta

Dona Glória, antes de ser chamada de “dona”, foi criança de interior. Nascida em 15 de agosto de 1948, em Pirajuí (SP), ela lembra das dificuldades da infância.

“Naquele tempo era tudo sofrido. Não é como hoje. Para ter o mínimo, a gente trabalhava na roça”, conta.

Aos 18, deixou tudo e veio para São Paulo. Aqui, começou como empregada doméstica e morava na casa da patroa. Depois trabalhou em outras funções, enquanto morava no Jabaquara.

Em 1979, casada e com o primeiro filho, mudou-se para o Jardim Herplin, após o marido comprar uma casa. Mas o bairro não tinha água encanada, transporte ou asfalto.

“Só mato e lama. Para pegar ônibus, era preciso andar muito”, recorda-se.

O despertar da liderança comunitária

A precariedade da época despertou em Dona Glória o espírito de luta. Ela participava de protestos, organizava abaixo-assinados e mobilizava a vizinhança para cobrar ações da Prefeitura. “Muitas vezes, voltávamos andando de madrugada”, diz ela.

No início, o marido implicava com sua atuação, mas depois se acostumou – até porque as conquistas começaram a aparecer.

Uma ação marcante foi o protesto por água encanada. Com trouxas de roupas sujas, foram até a sede da Prefeitura. A repercussão forçou o início da canalização no bairro.

Em outra ocasião, no ano de 1996, Dona Glória viu um menino desmaiar de fome no ponto final de ônibus do Jardim Herplin. Ela largou o caminho para o trabalho e, com o filho de 11 anos, pediu alimentos de porta em porta.

A partir daí, a solidariedade virou missão.

Com apoio de outras mulheres, passou a contar com a ajuda do antigo Centro Cultural Santa Teresinha e do Grupo de Base de São Condado. Dessas ações nasceu o grupo Mulheres de Luta, que atua até hoje com assistência social e fortalecimento comunitário.

“O grupo Mulheres de Luta é um grupo de mulheres pobres, mas com coragem e consciência. Tiramos leite de pedra. Vamos atrás”, aponta.

“Fiz tudo isso sem cargo. Não preciso ser presidente, só preciso lutar.”

Dona Glória mostra trabalhos realizados na associação (foto Vitori Jumapili)

Dona Glória mostra trabalhos realizados na associação (foto Vitori Jumapili)

Política do dia a dia

Sem creches, muitas crianças do bairro passavam fome.

Uma freira cuidava de algumas nos fundos da igreja, sem estrutura. Indignadas com a situação, Dona Glória e mulheres do bairro decidiram agir. Com permissão de um morador, usaram um galpão e pediram que o dono dissesse à Prefeitura que o espaço havia sido “invadido”, forçando uma resposta oficial. Em três dias, elas recolheram 1.200 assinaturas de famílias reivindicando creche.

A Prefeitura pediu que parassem, alegando falta de estrutura, mas elas seguiram firmes. Buscaram a mídia e bateram à porta da administração municipal incansavelmente. A mobilização gerou repercussão por dois meses.

A então prefeita Marta Suplicy (PT) determinou a solução: em 2004, foi construída a creche Força e Ação, nome em homenagem ao grupo.

Essa relação com a política institucional é prática.

Em 2011, durante o mandato do então governador Geraldo Alckmin (na época, no PSDB), o grupo recebeu apoio da primeira-dama do estado, Lu Alckmin. Hoje, Alckmin (no PSB) é vice-presidente da República.

Com esse apoio, o grupo passou a oferecer oficinas de padaria, artesanato, corte de cabelo, apoio psicológico e articulação de vagas em moradias emergenciais. Ainda hoje, ela atende de 30 a 40 famílias por mês.

Para a assessora Melissa, do gabinete do vereador Sansão Pereira (Republicanos), a militante é parceira ativa na triagem de casos para moradia popular. “Quando há vagas no programa Pode Entrar, Dona Glória nos encaminha. É uma parceria importante”, diz a assessora.

Antes de ser vereador, Sansão era bispo da Igreja Universal, mas isso não é um problema para Dona Glória.

“Sou da umbanda e achava que ele teria preconceito. Mas sempre me respeitou. Na pandemia, ele mandava suprimentos. Chegávamos com o carro cheio. Fizemos sopa e arrecadamos 400 marmitas por semana.”, diz ela, que afirma não se alinhar a partidos.

“Me viro bem com o Lula, da esquerda, e com o Sansão, da direita. A gente analisa quem vota nas coisas boas. E na eleição, a gente corre pra cima!”, diz ela, rindo.

Legado e continuidade

Dona Glória sabe que sua trajetória é marcada não só pela pobreza, mas pelo racismo estrutural.

“Para nós, que somos pobres, já é difícil. Mas para quem é negro, é ainda mais. A gente já nasce com desvantagem. Viemos da escravidão, e depois disseram que estávamos livres, mas como é liberdade se saímos sem nada, sem estudo, sem salário pelo tempo que trabalharam à força?”, questiona.

Ela não romantiza a luta, que se faz necessária dia após dia.

“É por isso que a maioria das periferias ainda hoje tem tão pouco. É onde estão os que foram deixados para trás. A gente luta por tudo. E para os negros, essa luta é ainda mais pesada. Porque, desde a escravidão, começamos do zero, com as mãos atadas. Parece que a gente está sempre na base da pirâmide, porque nosso tempo foi roubado. E até hoje a gente corre atrás dele.”

Em frente à sede do grupo Mulheres na Luta, no Jardim Herplin (foto: Vitori Jumapili)

Em frente à sede do grupo Mulheres na Luta, no Jardim Herplin (foto: Vitori Jumapili)

Hoje, aos 76 anos, Dona Glória é viúva, mãe de dois filhos e avó de um neto. Ela já pensou em parar com as atividades de militância, mas o desejo de ajudar motivam a seguir em frente.

“Dona Glória, junto com a Felícia da Chácara do Conde, me ajudou a conseguir auxílio-aluguel. Foram um anjo na minha vida”, diz Alexsandra, que perdeu a casa durante obras de canalização no bairro.

Com duas crianças pequenas e sem apoio, ela recorreu ao grupo liderado por Dona Glória. Hoje, Alexsandra é voluntária do Mulheres de Luta. “Faço isso por gratidão. Ela mudou minha vida.”

Recentemente, Dona Glória formalizou o grupo Mulheres de Luta e passou a presidência para a nora, Raimunda Mota, permanecendo como vice.

Ela cuida da saúde com apoio de amizades na medicina e toma remédios diariamente para tratar de uma infecção bacteriana adquirida após comer uma salada contaminada. Também cultiva a fé com orações e banhos espirituais.

E finaliza, bem-humorada:

“Aqui no Herplin tem suor, lágrima e dinheiro meu. Eu brinco: se o Jardim Herplin me devolvesse tudo que investi, eu já teria comprado uma BMW zerada.”

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