“Reset Brasil”: grupo de teatro nos transporta à guerra contra colonização na periferia da zona Leste

“Reset Brasil”: grupo de teatro nos transporta à guerra contra colonização na periferia da zona Leste

Viajamos de trem do Centro para o Extremo Leste em espetáculo teatral do Estopô Balaio, que abre uma fenda temporal para narrar a resistência. Confira em mais uma edição da coluna "De Lupa na Arte"

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Fotos: Cassandra Mello

Tentar remontar as imagens, cheiros, sabores, sons, mirações e sensações! Dizer algo sobre “Reset Brasil”  é algo como tentar contar um sonho para alguém. Aqui arrisco, como quem vai no rastro de uma flecha lançada ao horizonte.

O novo espetáculo teatral do Coletivo Estopô Balaio se inicia dentro de uma cobra vermelha – o trem que percorre do Brás até o Extremo Leste de São Paulo. Ouvimos vozes anciãs e novas contarem, junto com a paisagem em deslocamento, um lugar. É Ururay, antigo aldeamento sobreposto a São Miguel Paulista, território para uma importante resistência indígena em período colonial.

Enquanto o percurso é feito e ouvimos a descrição de onde a cobra vermelha nos regurgitará, corpos atuantes se deslocam no vagão. Quem não é espectador se torna, quem não está com os fones oferecidos pela produção observa pessoas indígenas dentro de um trem esperando chegar em um destino.

Uma das atrizes tem grafado em seu braço “NÃO A PL 490”, o projeto de lei do marco temporal. Fui assistir um dia depois que o projeto foi aprovado pela Câmara de Deputados. O trem caminha. A ideia de civilização está estagnada há muito tempo.

Ao descer, somos recepcionades por um levante em curso. A dramaturgia propõe flechas que são lançadas para narrar histórias em sobreposição: as vivências de moradorus que formam esse espaço no hoje e a história do cerco de Piratininga no período colonial, uma dobra no tempo, uma espiral evocada pela dramaturgia e encenação.

As histórias começam a se tocar: 1562, ano que surgiu na região de Ururay o cerco de Piratininga, uma das maiores resistências dos povos nativos contra a colonização portuguesa; e 2023. Anos sobrepostos, uma luta contínua contra as investidas coloniais.

20 pessoas atuam e mostram humanidades pulsantes. Algumas revelam uma relação íntima com o bairro, engajadas em criar através da teatralidade em constante deslocamento pelas ruas uma fissura no tempo.

Há um dado de quem se relaciona intimamente com a natureza, sobretudo povos originários do continente africano e de Abya Yala*, que é a noção da própria relação e a própria intimidade.

Quando o corpo de atuantes se borra com o corpo de moradorus, ou quando a paisagem começa a contar a história, podemos ver o que o pesquisador Ailton Krenak diz quando fala que a noção de humanidade nos afasta do restante da natureza. Ou seja, é possível nos relacionarmos com as montanhas, com os rios como parentes, como amigos, é possível falar com eles, e sobretudo é necessário escutá-los.

São Miguel de Ururay, esse território sobreposto que o grupo cria, se tornou uma entidade que encarnou em mãe que atua junto ao filho, em mãe que perdeu o filho e pede justiça, em pai presente ensinando as filhas a bailar, pai passando o samba pra frente, filha menina criança dizendo com orgulho junto da mãe a origem Pankararu.

A encenação é entrecortada de depoimentos desses moradorus. Quando ouvimos essas histórias o que ouvimos na verdade é o próprio território falar, narrar uma trajetória e apontar caminhos. É uma relação de intimidade com o espaço em sobreposição.

Quem também é convocado para o presente é o antigo Piquerobi, personagem histórico, líder que lutou para expulsar os colonizadores e que em “Reset Brasil” se torna uma espécie de símbolo de resistência às investidas coloniais.

Não nos enganemos

A sobreposição do tempo é um feitiço, ka’a timbó**, que se torna palpável pela palavra e pelo corpo.

Quando passamos por uma viela que sofre todas as vezes que a chuva vem em abundância, lembrando com força d’água que ali há um rio soterrado, uma grande cobra preta, a ponto de forçar a arquitetura a elevar as entradas das casas para que a água não invada a intimidade do lar.

Quando andamos em uma viela memória de um rio, uma atriz convida a imitar uma floresta e enchê-la de sons da mata: “Duda, vamos reflorestar!”, ela diz para uma criança atriz. Andamos e um feitiço é posto. É possível visualizar a caminhada na viela ao mesmo tempo que vislumbra o que um dia o espaço poderia ter sido.

Por dizer em criança, a infância na peça é levada a sério, boa parte das pessoas atuantes são crianças que brincam e encenam e colocam em dúvida nossa capacidade de elaborar linguagem com idiomas originários, nos recebem flexionando a linguagem com “sejam bem vindes!”, questionam o sistema de racialização e seguram em nossos braços para nos guiar na travessia da passarela que a cobra vermelha rasteja por baixo.

Há ainda as crianças que não atuam acompanhando a peça que já viram outras vezes e dizendo as falas antes das atrizes, se vendo nos atores.

Não nos enganemos com a doçura do açaí servido ou com a gentileza da rezadeira que abre os caminhos pra pisar em uma terra ancestral nos oferecendo um caldo benzido, ou com a cervejinha servida entre sorrisos numa roda de samba. Há um anúncio de guerra! Uma guerra sendo narrada em 1562 e uma sendo vivida em 2023, ou a guerra de 1562 sendo vivida ainda em 2023.

Em curso, segue um projétil de metal contra povos originários dessa terra e os trazidos de África. Em curso, segue um projétil tensionado em um arco, feito de sangue, resistência, feitiço e sonhos contra as tentativas de apagamento e aniquilação.

De certo, algo passou batido pela retina dos olhos e pelo que o ouvido pode captar. Às vezes, saímos de um sonho levando um punhado de sensações que tentamos juntar em um sentido. Aqui arrisquei!

Rafael Cristiano é designer da Periferia em Movimento, ator e dramaturgo. Formado em design gráfico pela FMU em 2012. É Ọmọ Òrìṣà de Ossanyn. Tem interesse em arte e em morrer velhinho

*Abya Yala: é uma denominação histórica e política do continente americano na língua kuna, que significa “terra em plena maturidade”.

** Ka’a Timbó: termo em Tupi que significa “fumaça da mata”, se refere aos atos de incensar, ou defumar, ou ainda outros ritos que precisem da fumaça vinda da queima de ervas.

Resumo: No espetáculo, o público embarca em um trem no Brás rumo a São Miguel Paulista. Nesse trajeto, descobre que o Brasil sumiu do mapa e quando desembarca é recepcionado por um levante indígena no Jardim Lapena. Aos poucos vai descobrindo que o antigo aldeamento Ururay – nome original da região pantanosa que abrange os bairros do Jardim Romano, Itaim Paulista e São Miguel Paulista, além de outros da Zona Leste e Alto Tietê – ainda resiste e planeja um novo cerco. Moradorus, crianças e artistas vão se revelando a partir de suas ancestralidades: indígenas, vindos de África, de Abya Yala, benzedeiras, pajés e do Nordeste brasileiro

Ficha técnica – Direção: Ana Carolina Marinho. Dramaturgia: Juão Nyn. Direção de Movimento e Preparação Corporal: Rodrigo Silbat. Diretora Assistente: Maíra Azevedo. Direção Elenco Infantojuvenil: Carol Piñeiro. Direção Musical, Edição e Mixagem “Trem-Ato”: Rodrigo Caçapa. Direção de Arte: Mara Carvalho e Juão Nyn. Elenco: Dandara Azevedo, Dunstin Farias, Jaqueline Alves, Jefferson Silvério, Jéssica Marcele, Keli Andrade, Laís Farias e Silvana Farias. Elenco Infantojuvenil: Anny Beatriz, Anny Victoria, Eduarda França, Eduarda dos Santos, Gabriely Vitória, Gi Godoy, Julya Pereira, Kim Andrade, Lua Brites, Pedro Henrique, Ryan Peixoto e Suemy Dagmar. Percussionistas: Josué Bob e Thiago Babalotim. Flautista: Giovani Facchini. Operação de Som: Jomo Faustino, Devão Sousa e Emerson Oliveira. Efeitos [Arte Laser]: Diogo Terra. Artistas Visuais [Artes Muros]: Felipe Urso, Morales, Ricardo Cadol, Ana Kia, Rote, Vini Meio, Ignoto, Auá Mendes e Ju Costa. Participações Especiais: Socorro, Márcia Gazza, Olga, Ângela Alves, Fernando Alves, Didão e Page Rubens. Cenotécnico: Enrique Casa. Figurinos: Mara Carvalho. Adereços: Aline Dayse. Costureira: Pamela Rosa. Artes Gráficas: Daniel Torres. Contrarregras: Lisa Ferreira, Rodrigo Vieira e Wesley Carrasco. Assessoria de Imprensa: Nossa Senhora da Pauta. Assessoria Jurídica: Paulo Rogerio Novaes e Aline Dias de Andrade.  Secretaria: Lisa Ferreira. Mídias Sociais: Gabriel Carneiro. Fotografia e Câmera> Cassandra Mello. Produção e Direção de Produção: Wemerson Nunes [Wn Produções]. Realização: Coletivo Estopô Balaio e Cooperativa Paulista de Teatro.

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