Texto: Paula Sant’Ana. Fotos: Vitori Jumapili. Edição: Thiago Borges
Quando falamos em periferias, muitas imagens vêm à mente. As características das casas, crianças brincando na rua, o asfalto, comércios… As memórias são associadas a partir das nossas vivências no território. Mas antes de chegarmos ao que é hoje, muitas pessoas ajudaram a construir, reconstruir e promoveram lutas para isso.
Sem o mesmo espaço nos museus tradicionais, as quebradas criam seus próprios centros de memória para documentar momentos importantes da história: movimentos sociais, greves, personalidades marcantes e muito mais fazem parte da construção de acervos populares.
“A gente via muitas histórias das famílias. Família italiana, portuguesa, alemã, espanhola e o ‘progresso’ que trouxeram para Guaianases. Quando a maioria de nós vai estudar história, ciências sociais, geografia, a gente começa a debater: ‘Onde é que estão as histórias dos trabalhadores, dos nossos pais?’. A gente não via a história deles ser narrada”, conta a pesquisadora Renata Eleutério, 38 anos.
Fundadora do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Guaianás (CPDOC Guaianás), sediado na zona Leste de São Paulo, a cientista social destaca a importância da pesquisa para manter as recordações vivas.
“Tem a importância do centro de memória, mas tem a importância da gente fazer a pesquisa, a produção mais enfática, de falar sobre nós também, fazer uma reflexão”, diz Renata.
Criado em 2014, o CPDOC Guaianás é organizado por um coletivo de pesquisa composto por cientistas sociais, historiadories, entre outras áreas, visando a pesquisa e a preservação de patrimônios tanto materiais quanto imateriais, além de registrar, evidenciar e difundir as memórias e narrativas da classe trabalhadora. A ênfase é nos bairros de Lajeado, Guaianases, Cidade Tiradentes e São Mateus.
“Pra algo ser preservado, ainda mais numa quebrada, tem várias necessidades: de construir, reconstruir, estabelecer, instalar coisas que a gente precisa. A preservação do patrimônio precisa fazer sentido. Se ela não tiver um sentido de sobrevivência e evolução dessa sobrevivência, a gente não consegue fazer essa atividade”, destaca o historiador e professor Adriano Sousa, 36 anos.
Adriano tem pesquisa direcionada a São Mateus, também na zona Leste de São Paulo, e chega para somar com o CPDOC em 2018.
Para conferir o acervo e mais sobre o trabalho do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Guaianás, acesse o site aqui ou este link. Você pode seguir os perfis no Instagram @cpdocguaianas e no Facebook (CPDOC Guaianás) e entrar em contato via [email protected].
Histórico de lutas
Do outro lado da cidade, em Perus (zona Noroeste), o Centro de Memórias Queixadas (CMQ) mantém um acervo sobre a luta operária na Companhia de Cimento Portland Perus, que chegou à região em 1926 e mudou a vida do território.
De início, a fábrica pertencia ao grupo canadense Drysdale & Pease, mas foi comprada por João José Abdalla, conhecido como “o mau patrão”.
Por conta das péssimas condições de trabalho, Abdalla travou incontáveis lutas com a justiça. Isso gerou uma série de crises como a Greve de 7 anos, promovida entre 1962 e 1969 pelos “Queixadas” – apelido que remete a uma espécie de porco-do-mato adotado pelos operários da fábrica.
“É a maior greve que a gente tem conhecimento da história sindical do Brasil. Eles, reconhecendo a importância do que tinham feito, já erguiam essa ideia de que tinha que ter um centro de memória do trabalhador”, conta a jornalista Sheila Moreira, 41 anos.
Após diversas greves e crises, a fábrica fechou em 1987. Nas décadas seguintes, foi ocupada por movimentos locais com o intuito de dar um uso público, com espaço cultural e até universidade. Mas o imóvel pertence até hoje à família Abdalla. Esse movimento de reapropriação da fábrica trouxe à tona outras lutas do bairro como, por exemplo, a de moradia, assim surgindo o Recanto dos Humildes.
“Quando a gente tem o episódio do Recanto é muito importante porque tem mulheres à frente da luta pela saúde, educação, etc. Aí a gente tem mulheres à frente de movimentos populares e isso não é uma coisa muito falada”, destaca a neta do líder Queixada e mãe da Flora, que está prestes a nascer.
Neta de Sebastião Silva de Souza, um dos grevistas, Sheila Moreira está no CMQ desde o início, inclusive ajudando a escrever o edital para a criação do centro. O projeto foi aprovado em 2019, ano em que seu Tião faleceu.
Por conta da pandemia, o trabalho começou on-line. Em março de 2022, foi iniciada a atuação em espaço físico. Hoje, o eixo de trabalho se divide nas duas frentes: consultas on-line e visitas presenciais.
O centro de memórias fica dentro da Biblioteca Padre José de Anchieta, local de afeto para muita gente. “Sendo uma moradora do Recanto, sempre tive uma relação com a biblioteca porque aqui sempre foi um espaço seguro”, conta Erika Barbosa, 34 anos, que chegou no bairro aos 8 anos, vindo com sua família em busca de moradia.
Erika é mãe de três, estudante de biblioteconomia e ciência da informação. Ela está desde o início no CMQ, atuando com articulação e produção.
Pensando na importância da mulher, ela relata os principais motivos da criação do podcast Mulheres no Front: “A intenção é contar histórias protagonizadas por mulheres porque a gente fala que elas sempre têm pra contar, mas nunca têm a oportunidade de dizer”.
O Centro de Memória Queixadas – Sebastião Silva de Souza está localizado na rua Antônio Maia, 651 – próximo à estação de trem Perus, na linha 7-Rubi, funcionando de segunda a sábado, das 8h às 17h. Você pode consultar o acervo e informações importantes no site aqui, seguir os perfis no Instagram (@cm_queixadas) e Facebook (Centro de Memória Queixadas). Agende sua visita aqui.
Acervo da construção
Indo para a parte Sul do mapa, o Centro de Memória das Lutas Populares Ana Dias nasce para resgatar memórias das periferias da zona Sul de São Paulo, com foco nas histórias das mulheres.
Não por acaso leva o nome de Ana Maria do Carmo, mais conhecida por Ana Dias, companheira do líder operário metalúrgico Santo Dias e que se envolveu em diversos coletivos e lutas da região.
“A gente vê o território se construir, reconstruir e lutar pelos seus direitos. Mas a gente também sente, em alguma medida, que o que é feito pelas mulheres tá ali na história, mas em um ‘segundo’ papel”, relata Vitória Viana, 24 anos, estudante de Letras na USP e moradora do Jardim Sandra, no Capão Redondo.
Do mercado ao gás, entenda por que tá tudo caro (e como mulheres periféricas lutaram contra isso nos anos 1970)
A ênfase do acervo é a história de Santo Dias, ações que a sociedade Santos Mártires fazia no território (reuniões, encontros, Fórum em Defesa da Vida), outras ações de organização que aconteciam e também o Acervo da Caminhada Pela Vida e Pela Paz, que acontece anualmente desde 1979.
Para salvaguardar as memórias da região do Campo Limpo, Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela, entender a demanda é essencial. E o Centro Ana Dias trabalha com recursos mais voltados ao digital.
“Uma parte foi uma ação física desses espaços, indo lá e levando as coisas para digitalizar, e outra parte foi pensar num espaço que fosse fácil de acessar e que pudesse armazenar muitos dados ao mesmo tempo. Por isso a gente usou o Google Drive”, conta Vitória.
Além dos registros on-line, a iniciativa também criou o podcast Memórias Quebradas, em 2020, pensando em atrair o público jovem.
“Nosso principal foco, depois dessas colheitas, foi pensar em como divulgar isso de forma acessível, que conecte com a juventude e que a gente possa colocar a gente como ponto central”, explica a educadora.
Para acessar o conteúdo do Centro Ana Dias, você pode acessar o Drive. O projeto recebe pedidos por meio do e-mail [email protected] e tem perfis no Instagram (@centroanadias) e Facebook (Centro de Memória das Lutas Populares Ana Dias). Além disso, aqui neste link você encontra alguns projetos.