“O Grajaú ficou órfão. Nossa matriarca Adélia foi uma mulher insurgente”.
É dessa forma que a professora e escritora Lucimeire Juventino começa seu relato sobre Adélia Prates, líder comunitária que construiu sua trajetória no Extremo Sul de São Paulo.
Nascida em 20 de janeiro de 1947, em Valparaíso (SP), Adélia faleceu em São Paulo no último sábado (27/4), aos 78 anos de idade.
Da infância com pobreza, machismo e racismo entre o interior paulista e da Bahia, onde foi criada, ela chegou aos 19 anos à capital para trabalhar em casas da elite. Foi na cidade em que aprendeu a ler e escrever após os 20 anos. Também se casou e veio morar no Grajaú quando “tudo ainda era mato”.
É neste território que Adélia começou a agir politicamente: na luta pelo pão e contra a inflação da carne, do fechamento de avenida para evitar atropelamento à ocupação de escola por melhores condições de ensino, em plena ditadura militar ela e outras mulheres cavaram os alicerces para que as lutas nas periferias ganhassem força nas décadas seguintes.
“Adélia nos embalou e ensinou caminhar nos deixando um legado de resistência política e cultural, lutou por direitos das mulheres em um dos períodos perversos de violência institucionalizada, que foi a ditadura militar”, lembra Lucimeire.
Em 2019, Adélia foi a primeira entrevistada de “Matriarcas”, série de reportagens idealizada e apresentada por Lucimeire Juventino, com produção e distribuição da Periferia em Movimento. Relembre abaixo:
Pioneira
Adélia começou a trabalhar aos 7 anos de idade. Considerada “endemoniada” na época, segundo a mesma disse, já na velhice compreendeu que o adjetivo foi dado a ela porque nunca se conformou com a situação em que vivia.
Na quebrada paulistana, sem luz, água, asfalto e nem pão francês de qualidade, Adélia se juntou a outras mulheres para lutar pelos mesmos direitos de quem vivia na região central. Quando viu que o poder estava com as mulheres, não teve dúvidas: “A gente tinha que mudar as coisas, nem que fosse só no Grajaú”, disse ela, à Periferia em Movimento.
Ato do Dia da Mulher no Grajaú, em 2016, com a Associação de Mulheres do Grajaú. Foto: Adriano Mendes
A articulação começou no Clube de Mães da igreja católica. Com outras companheiras, mobilizou a mulherada para fazer mutirão por moradia, urbanizar favelas e falar do direito ao próprio corpo. Ela se articulou com o poder público para construir políticas públicas.
Uma das fundadoras e primeira presidenta da Associação de Mulheres do Grajaú, aberta oficialmente em 1982, Adélia sofreu um baque no ano seguinte com o feminicídio de sua irmã Delvita pelo então companheiro. Delvita deixou um filho de cinco anos e estava grávida de quatro meses quando foi assassinada.
Adélia apontou a responsabilidade das autoridades diante do então secretário da Segurança Pública, Michel Temer, acompanhou as investigações até a captura do criminoso – que ficou apenas 04 meses preso – e não esmoreceu mesmo diante da soltura.
Em 2021, com o aumento da inflação e da fome em plena pandemia de covid-19, ela reforçou à Periferia em Movimento a necessidade de voltar a lutar contra a carestia. “Eu acho que, através do celular, a gente tinha que fazer essa campanha, ir até onde está mais barato (…) Minhas pernas não permitem andar muito, mas não podem calar minha voz”, disse ela.
Para Adélia, é necessário que as mulheres se mobilizem ainda hoje para que os direitos não sejam retirados. Os casos de violência e feminicídio continuam, assim como os ataques a conquistas históricas.
Para Lucimeire, que pode conviver com ela e ajudou a contar sua história, fica a lembrança da última conversa que tiveram. Falaram da importância de entregar “flores em vida”, de revisitar e saber de onde viemos, quem abriu os caminhos. Adélia enviou a ela uma foto das mulheres reunidas na associação. Um registro de união e amizade.
“Adélia Prates sempre acreditou que a luta não é apenas resistência presente, mas também memória e aprendizado para o futuro”, finaliza Lucimeire.
E aqui, fica também nossa homenagem póstuma a uma referência que, felizmente, também pudemos entregar “flores em vida”.
Adélia Prates, presente!