Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano
Tristeza, medo, ansiedade, insegurança, apreensão. São muitas as palavras utilizadas para descrever a preocupação que se abate sobre a população do Jardim Pantanal, na zona Leste.
Depois das chuvas fortes em fevereiro deste ano e da enchente que tomou o bairro por mais de uma semana, pessoas passaram a temer pela perda de suas casas em uma região com quase 50 anos de ocupação – proposta feita pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) para “resolver” o problema.
As famílias receberiam de R$ 20 mil a R$ 50 mil de indenização – valor insuficiente para comprar um novo imóvel.
“Isso gerou certo clima de adoecimento em relação à saúde geral de uma população que é historicamente marginalizada, em uma região que é historicamente desassistida de recursos públicos”, aponta Vagner Moura, de 39 anos.
Ele cresceu no Jardim Pantanal, onde sua família permanece, mas atualmente mora em São Mateus.
“As regiões que têm a menor aplicação dos recursos do orçamento municipal são onde as pessoas, além de não serem cuidadas, ainda são sujeitas a esse tipo de discurso diante de um momento delicado, que necessitaria de solidariedade, acolhimento, resgate e subsídios. Então, nesse momento, ao invés de acolher, o prefeito ameaça”, completa Vagner, membro do Movimento das Comunidades Populares, que integra a Frente de Luta do Jardim Pantanal.
Em nota à Periferia em Movimento, a Prefeitura diz que estuda três alternativas para solucionar os alagamentos na região, o que incluiria obras de contenção a um valor de até R$ 2 bilhões. A gestão municipal não cita remoções, mas sim em “devolver a área de várzea ao rio” (confira resposta na íntegra no final do texto).
“Perdi tudo na enchente e não sei a quem recorrer. E agora, PEM?”
Para Gisele Brito, é preciso ter responsabilidade com as medidas propostas para que essas políticas de enfrentamento não se caracterizem como racismo ambiental e nem reforcem a manutenção de condições já precarizadas.
“Todo investimento que for feito para eliminar esses riscos e fazer adaptações precisa levar em consideração a justiça climática”, explica a jornalista, que é mestre em Planejamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo – FAUUSP.
“Recuperar um rio sem levar em consideração o que vai acontecer com as pessoas, que são parte da natureza e do meio ambiente, e removê-las, não é justiça climática. Você na verdade está revitimizando essas pessoas”, completa Gisele, que atua como coordenadora da área de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto de Referência Negra Peregum.
Cidade desigual
Vagner avalia que é visível a segregação geográfica em São Paulo, já diz que as condições atuais do bairro estão muito aquém do ideal e compara a qualidade dos serviços públicos em diferentes áreas da cidade fornecidos no Jardim Pantanal com o que é encontrado em áreas nobres da cidade.
“Não é novidade que aquela região de Pinheiros, Fradique, Oscar Freire tem altos investimentos públicos, privados e de infraestrutura. Não é novidade que as pessoas que moram ali têm outra classe social (…) Ao passo de que a gente no Pantanal ou aqui em São Mateus, vive em outro mundo. O serviço deveria ser o mesmo para toda rede, mas o prefeito investe de maneira diferenciada nesses territórios. Por quê isso?”, questiona Vagner.
Esse desequilíbrio é resultado do racismo ambiental histórico que rege São Paulo.
Segundo Gisele, a expansão da cidade se apoiou em um plano de marginalização da população negra alforriada e de migrantes tropeiros, que passaram a morar próximo dos rios – enquanto as elites buscavam os lugares mais altos da cidade, como a avenida Paulista, por exemplo.
“Desde a ideia da expansão, esses terrenos são destinados para uma população que o Estado e o mercado entendem que merece educação, saúde, segurança, longe de mosquitos e cheiros ruins. Isso sempre levou em consideração a questão ambiental”, pontua Gisele.
A proposta de remoção de populações dessas áreas reforça a segregação socioespacial e amplifica as desigualdades, já que a depender do CEP os investimentos públicos podem ser mais ou menos generosos.
“Se o rio Pinheiros, que está à margem da avenida Faria Lima e tem o metro quadrado mais caro de São Paulo, alagasse dois metros com as mudanças climáticas, o governo não iria oferecer um auxílio aluguel. Ele iria pagar um valor adequado. E mesmo assim, dificilmente a primeira opção seria tirar as pessoas de lá”, afirma Gisele.
Enfrentamento
Em resposta às declarações de Nunes, foram convocadas manifestações com a intenção de contestar os prejuízos sociais, econômicos e ambientais resultantes da negligência da gestão municipal na região do Jardim Pantanal.
Além de protestar contra Nunes, a Frente de Luta do Jardim Pantanal reivindica a regularização fundiária prometida para a região e cobra melhorias em infraestrutura. As ações são uma alternativa para tentar promover a interrupção de qualquer ideia de remoção e garantir um futuro com maior dignidade.
Vagner diz que atualmente o processo de remoção está ‘em aguardo’, com uma declaração oficial a ser divulgada em breve. Enquanto isso, a Frente de Luta do Jardim Pantanal articula-se em outras atividades, integrando conselhos participativos e mobilizando, atendendo e acolhendo a comunidade.
- Manifestações de população do Jardim Pantanal (divulgação)
- Manifestações de população do Jardim Pantanal (divulgação)
“A gente assiste isso nos efeitos climáticos. Com a forma predatória de produção de vida, seja na produção, seja no consumismo, não vamos resolver as questões climáticas. A comunicação alternativa precisa estar precisa estar a serviço desse debate que hoje é a centralidade da nossa luta”, diz Vagner.
Para Gisele é necessário combater o racismo, porque é o racismo que permite que uma população preta, pobre e periférica esteja vulnerável a esse tipo de situação.
“A primeira coisa que a gente tem que fazer é dizer que um território negro não pode ser um território vulnerável. Não é normal e nem aceitável sob nenhuma justificativa, inclusive econômica. A segunda coisa é conseguir uma distribuição reparatória dos recursos”, observa Gisele.
A especialista aponta que, nas periferias e áreas vulneráveis, não vivem somente pessoas negras, mas que essas áreas não são chamadas de periferia só porque estão geograficamente longes do centro da cidade, nem pela falta de infraestrutura, mas porque são lugares de maioria negra.
Gisele ressalta que, apesar do prefeito usar o alto custo como justificativa para não investir nas obras de melhoria, historicamente o poder público despejou dinheiro para que as cheias do rio Pinheiros não atrapalhassem quem vive em Pinheiros, Vila Olímpia e outros bairros elitizados.
“Agora, por que não querem gastar no Jardim Pantanal? Porque lá está marcado para ser um território negro, e o território negro não pode ser tão melhor do que era uma senzala [para eles]. Os recursos precisam ser utilizados por quem mais precisa”, conclui.
O que diz o poder público
A Prefeitura de São Paulo manifestou-se por meio de nota enviada à reportagem da Periferia em Movimento, e declarou que:
“A Prefeitura de São Paulo possui o Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) em que já desenvolveu 100 projetos para mitigação de riscos geológicos e hidrológicos nas áreas mais críticas da cidade. A previsão é que as primeiras obras sejam contratadas no primeiro semestre de 2025. Ao todo, estima-se um investimento de R$ 1,5 bilhão na primeira fase de intervenções em 125 áreas.
Além do trabalho de diversas secretarias, a elaboração do PMRR envolveu a própria população, cujas contribuições foram colhidas em Consulta e Audiência Públicas. A partir das residências mapeadas pelo plano, a Secretaria Municipal de Habitação oferece atendimento às famílias por meio de benefícios como Auxílio Aluguel, Verba de Apoio Habitacional, Auxílio Mudança, concessão de nova moradia, ou indenização. Para casos de urgência, a pasta também conta com o Cartão Emergencial, concedido ao titular da moradia atingida, em parcela única de mil reais.
Especificamente para o Jardim Pantanal, a gestão municipal estuda três alternativas para solucionar alagamentos que há décadas afetam os moradores em uma das regiões mais complexas da cidade por estar abaixo do nível do Rio Tietê e sofrer com ocupação irregular.
As três possibilidades contemplam a recuperação da região e avaliam a construção de reservatórios para a contenção das cheias e reassentamento de famílias, entre outras medidas, devolvendo a área de várzea do rio e a recuperação ambiental. O valor das intervenções vai de cerca de R$ 1 bilhão a aproximadamente R$ 2 bilhões.
Durante o período de fortes chuvas, as equipes de pronto atendimento prestaram suporte aos moradores, oferecendo itens de necessidade básica e acolhimento temporário na região. Na ocasião, 117 pessoas passaram por alojamentos emergenciais, cerca de 25 mil munícipes foram cadastrados e 3.077 famílias receberam cartões emergenciais no valor de R$ 1.000 para despesas urgentes, além de itens de primeira necessidade, como colchões, cobertores, kits de higiene e limpeza e cestas básicas”.