Por André Santos. Fotos: Pedro Salvador. Edição: Thiago Borges. Design: Rafael Cristiano
“O turismo de base comunitária é esse que a gente faz pensando no coletivo, com parcerias da comunidade, que envolve uma ‘teia’ e que não se faz sozinho. Isso está trazendo possibilidades de sobrevivência, geração de emprego e renda e ao mesmo tempo um novo olhar para o lugar em que vivemos, além de autoestima, pertencimento e cuidado com o meio ambiente”.
O relato de Lucimeire Juventino, moradora de Parelheiros (extremo Sul de São Paulo), é uma síntese da importância do turismo de base comunitária para o segundo maior distrito em extensão territorial da capital paulista.
Lucimeire é proprietária do Rancho Ateliê, espaço que promove a cultura e história negra do bairro, integrando oficinas, passeios guiados e hospedagem em meio à natureza.
O distrito, que possui a maior parte de sua área coberta por reservas ambientais da mata atlântica, conta com o Polo Ecoturístico de Parelheiros, iniciativa da Prefeitura para fomentar o turismo na região de forma ecológica e não predatória, integrando visitantes à cultura local e promovendo trabalhos de conscientização, sustentabilidade e desmistificação sobre a região.
O roteiro é gratuito, acontece aos finais de semana e conta com visitas guiadas a espaços sustentáveis e vivências rurais. Confira aqui.
“O turismo de base comunitária é parte protagonista no enfrentamento ao turismo de massa. Turismo de massa visa ao capital financeiro sem levar em consideração os impactos ambientais e sociais. Já o turismo de base comunitária é um segmento que permite maior inclusão social, promovendo geração de renda, qualidade de vida, tendo em vista que terá trabalhos próximo de casa sem necessidade de deslocamentos longos”, explica Marivaldo Lopes, morador de Parelheiros e fundador da Parelheiros Turístico, portal que divulga boa parte das programações desenvolvidas na região.
Circularidade e fortalecimento local
Um dos pontos destacados por Marivaldo é a geração de renda local e a importância de trabalhar no mesmo território onde se vive
Foi a partir dessa linha de pensamento que Marlene Pereira, chef de cozinha e agricultora, fundou o Restaurante Marlene há 35 anos. Uma das primeiras a empreender no local, Marlene conta que a necessidade de uma mãe estar mais próxima de suas crianças foi o que a motivou para dar esse passo.
Hoje, com o restaurante já consolidado como uma das principais referências da região, a chef de cozinha prioriza a contratação de mulheres que residem no território para que assim tenham a oportunidade de estarem mais próximas às suas famílias, reforçando os laços com a comunidade e fomentando a geração de empregos.
Além disso, como parte da valorização do que se produz em Parelheiros e também de forma de apresentar a qualidade dessas produções a visitantes, Marlene compra parte dos ingredientes das refeições da agricultora familiar local, enquanto outra parte é de produção própria do restaurante.
O mesmo acontece com outros empreendimentos envolvidos com o Polo Ecoturístico de Parelheiros, que prezam pela economia circular como importante instrumento de fortalecimento da economia local.
“O Restaurante da Marlene é uma casa não só de servir feijão, arroz e batata frita. É uma questão cultural mesmo, de receber o turista e dizer que nós temos um empório com as coisas da região, temos cachoeiras, temos aldeias indígenas, temos produtos maravilhosos, temos unidades produtivas, temos bastante coisa para fomentar aqui”, conta.
Marlene avalia que é essencial fazer a manutenção das culturas locais, alimentares e ambientais, para que assim as novas gerações continuem a ter o mesmo cuidado e carinho pelo território. Por isso, indica que o turismo de base comunitária tem papel fundamental dentro desse contexto, sendo uma importante ferramenta de educação social, além de repassar conhecimentos ancestrais que são importantes pilares para a região desenvolver-se de forma sustentável.
“O restaurante da Marlene se conectou primeiro com os antigos moradores. A maioria já é falecida, mas esses moradores antigos me mostraram a cultura local, o jeito de fazer os alimentos, o jeito de comer, o jeito de cultivar as frutas nativas. E como eu já vim da Bahia com gosto por estas frutas que eu amo, frutas do Cerrado, da Caatinga, da Mata Atlântica, eu me encantei pelo bioma, pelas cachoeiras… Se eu não estivesse em Parelheiros, eu estaria na minha cidade lá na Bahia, lá em Ipupiara. Por quê? Porque aqui nós ainda hoje temos uma circularidade de conhecimento”, avalia.
Sustentabilidade
Patrimônio ambiental de São Paulo, o distrito de Parelheiros está inserido dentro de uma grande área de preservação da Mata Atlântica.
Este é um fator preponderante para a manutenção de grande parte de sua vegetação nativa, além de possibilitar uma rica biodiversidade e extensas áreas de produção agrícola, sendo essencial para a vida na cidade de São Paulo.
Sua rede de rios abrange três bacias hidrográficas: Capivari, Guarapiranga e Billings. As duas represas abastecem aproximadamente 25% da população da Região Metropolitana.
“Parelheiros está para São Paulo como um pulmão está para o corpo humano. Baseando-se nessas necessidades de preservação, foi criado o Polo de Ecoturismo, que aumenta a renda dos produtores rurais e aumenta a preservação ambiental, e sem preservação não tem turismo”, avalia Marlene.
O Polo de Ecoturismo de São Paulo abrange uma área que corresponde a 28% do território do município e conta com diversas opções de trilhas, cachoeiras, rios e lagos.
No entanto, com o passar dos anos torna-se cada vez mais difícil resistir aos avanços do capitalismo predatório em cima de uma região com tantas riquezas naturais.
Em outubro do ano passado, a Periferia em Movimento denunciou o crescimento de loteamentos irregulares abertos por grilagem de terra na região de Parelheiros, fato que acendeu um sinal de alerta na população local, que passou a procurar formas de defender suas heranças culturais e territoriais.
“Nós estamos numa região em que, mesmo com todos os problemas e ameaças, ainda é a região mais preservada da cidade. Estamos a cerca de 10 km da Serra do Mar. Lugar onde existe rio de águas limpas”, observa Lucimeire, que também é pedagoga, historiadora das africanidades no Brasil e guia de turismo devidamente cadastrada no Ministério do Turismo.
“A gente precisa existir aqui sabendo que vai haver continuidade, sentar-se à mesa, compartilhar o alimento e separar as sementes para plantar. Eu cresci vendo os antigos guardar sementes e ainda guardo, mas agora é mais difícil ter sementes que não são modificadas. A gente tem procurado caminhos, como a parceria com os povos indígenas da região”, continua.
O ecoturismo de base comunitária é um importante aliado contra o avanço do turismo predatório e da especulação imobiliária na região.
A ideia é que a partir dos trabalhos desenvolvidos, e sobretudo do despertar de um senso de coletividade e pertencimento da população e de visitantes, crie-se um sentimento em unidade que passa, invariavelmente, pela defesa dos territórios – em especial aqueles que estão inseridos em áreas de preservação.
“O objetivo é promover a educação ambiental e compreensão dos termos sustentabilidade levando em consideração não somente os impactos ambientais, mas econômicos e sociais para a comunidade. Esperamos que a sociedade consiga compreender o significado do desenvolvimento sustentável e praticá-los, de forma a minimizar os impactos negativos que interfiram no turismo e cultura local, importância do desenvolvimento e do turismo sustentável para esta região que é um patrimônio ambiental da grande São Paulo”, pontua Marivaldo.
Apesar dos avanços, Lucimeire aposta na oralidade como forma de perpetuar as práticas e tradições que acompanham o território há centenas de anos. No Rancho Ateliê, por exemplo, são promovidas rodas de conversas e chamamento para oficinas de turismo de base comunitária, justamente para trazer o modo de vida da comunidade para um lugar de valorização, mostrando o que já é feito e buscando ampliar essa rede cada vez mais.
“Nem sei quando me tornei contadora de história, eu achava que isso era natural porque todos da minha família contavam e contam as nossas histórias, e outras famílias negras próximas de nós tinham o mesmo costume, diziam que ouviram dos antigos daqui. Minha bisavó, pai e avô nunca leram tudo o que diziam num livro, cantavam ladainhas com palavras de grupos linguísticos africanos. Hoje sei que são tradições afrodiaspóricas, e fazem parte da nossa identidade cultural”, comenta Lucimeire.
Herança ancestral e desmistificação
Sacerdote do Asé Ylê do Hozoouane, terreiro de Candomblé localizado no Jardim Santa Fé, em Parelheiros, Luiz Antonio Katulemburange aponta que o turismo de base comunitária contribui para a sustentabilidade do templo religioso e ajuda a combater o racismo e a intolerância religiosa, que infelizmente ainda perduram.
“Além da sustentabilidade, nos ajuda a desmistificar o Candomblé, mostrar que o negro também tem seu papel e é tão bom quanto os outros. É muito importante para nós que somos a referência negra da região”, diz Katulemburange.
Durante a visita, Katulemburange explica com paciência e bom humor os elementos do terreiro, como o altar, os instrumentos musicais e as vestimentas. Ele fala sobre os orixás, as entidades que regem o Candomblé, e sobre a importância do respeito à natureza e aos ancestrais.
Geralmente visitantes entram no espaço com alguns receios, mas muita curiosidade e respeito pelas tradições. O templo, além de apresentar elementos do Candomblé e promover a religião, oferece serviços gastronômicos – que demandam agendamento prévio.
“Aqui, o turista chega com pé na frente e outro atrás, e depois da visita é todo mundo querendo tirar foto comigo, todo mundo querendo um abraço, entendeu? Porque desmistificou, eu expliquei o que é”, observa o sacerdote.
“Uma coisa que eu digo sempre na visita monitorada é que o preconceito das pessoas de hoje não é culpa das pessoas de hoje, é uma coisa perversa, uma cultura perversa que vem desde o Brasil-Colônia de Portugal. E cabe a nós acabar com isso hoje, porque se ficarmos nos escondendo, se não nos mostrarmos, ninguém vai saber que existimos”, pontua.
Katulemburange conta que existem planos para a construção de um museu que contará a história do Asé Ylê do Hozoouane desde África até os dias atuais, e também da região de Parelheiros, mas que ainda não existe previsão – apesar de o espaço já estar pronto, para que o projeto saia do papel faltam recursos financeiros.
Além disso, Katu, como é conhecido, avalia que sente-se um pouco deslocado dos demais roteiros presentes na Rota Ecoturística, uma vez que o fluxo de visitas ao terreiro tem sido cada vez menor.
“Espero que chegue uma empresa que ‘nos venda’, porque até agora somos nós mesmos”, pontua.
Vale pontuar que o roteiro que promove visitas gratuitas a espaços de sustentabilidade e vivências culturais é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Turismo, com apoio da SPTuris.
Lucimeire aponta que é importante que se tenha cada vez mais ofertas de atividades que conectem a população à suas ancestralidades e contem as verdadeiras histórias de Parelheiros, que não estão nos escritos oficiais, com um discurso respeitoso, sem estereótipos ou marcadores racistas, pautado na pesquisa em memória, patrimônio.
“Quando ouvimos narrativas honrosas e verdadeiras sobre o nosso povo, desenvolvemos sentido de pertencimento e evitamos apagamentos históricos. O afroturismo nos permite ofertar o lazer e ao mesmo tempo valorizar nossa cultura, nossa história, e facilita o letramento racial”, conclui Lucimeire.