Perrengue em SP: Atraso em pagamentos pela Secretaria de Cultura prejudica artistas das periferias, que devem até aluguel

Perrengue em SP: Atraso em pagamentos pela Secretaria de Cultura prejudica artistas das periferias, que devem até aluguel

Levantamento mostra redução de 18% na equipe da pasta, gerando acúmulo de trabalho e demora para liberar projetos. Para vereadora Elaine do Quilombo Periférico, “desmonte” abre caminho para terceirização das políticas culturais na cidade

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Tempo de leitura: 10 minutos

Por Thiago Borges. Revisão: Aline Rodrigues. Arte: Rafael Cristiano. Matéria alterada às 13h21 para atualização de dados

Portas fechadas para a leitura. Foi assim que 2024 começou em uma periferia da cidade de São Paulo. Enquanto aguardavam o pagamento da Prefeitura paulistana para tocar as atividades, integrantes de uma biblioteca comunitária tiveram que parar todos os projetos, ficaram sem salário e até atrasaram o aluguel de casa.

“Temos poucas opções de financiamento, e a única que a gente tem nos gera ansiedade, transtornos, até adoecimentos”, diz uma pessoa do grupo, que preferiu não se identificar.

Além de emprestar livros, o coletivo faz rodas de leitura com crianças da comunidade e em parceria com escolas locais. Em 2023, a iniciativa foi uma das 20 selecionadas na primeira edição do Fomento de Apoio às Bibliotecas Comunitárias, programa da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) da Prefeitura de São Paulo. O resultado do edital saiu em outubro passado, mas a grana caiu na conta apenas em março deste ano. Agora, é preciso refazer o planejamento, retomar a articulação com o território e conquistar o público de novo. “A gente celebrou [a seleção], mas depois ficou refém da situação”, completa a pessoa.

O perrengue não é exclusivo das bibliotecas comunitárias e tem afetado agentes culturais de diferentes linguagens que atuam na cidade de São Paulo, principalmente nas periferias. Uma das razões para a demora em liberar o recurso, que se estende por meses, é a falta de gente com conhecimento técnico na SMC para encaminhar os processos burocráticos.

Protesto realizado por agentes culturais em março de 2024 (imagem: reprodução Brasil de Fato)

Precarização

De 2015 a 2022, a Secretaria de Cultura perdeu 25% da equipe. Entre pessoas que se aposentaram, faleceram ou foram exoneradas e não tiveram substituição, o número de profissionais na pasta caiu de 1.541 para 1.157.

Já o dado atualizado mostra que, em março de 2024, havia 1.253 pessoas trabalhando na secretaria – 18,6% a menos que nove anos atrás.

A perda de servidoras, servidores e servidories no período foi amenizada com a recente contratação de 10 pessoas como “residentes” para desempenhar funções técnicas, mas ainda é insuficiente.

Os dados fazem parte de um levantamento realizado pela mandata coletiva Quilombo Periférico (PSOL), integrante da Subcomissão de Cultura da Câmara Municipal. A vereadora Elaine Mineiro, titular da mandata, observa que essa diminuição vem acontecendo em todas as áreas – a Prefeitura teve uma queda de 6% no funcionalismo, passando de 132 mil para 124 mil no período de 2015 a 2022. Porém, no caso da SMC, a falta de recomposição da equipe precariza o trabalho e compromete a qualidade do que chega à população.

O gabinete da vereadora recebe relatos de pessoas da SMC que trabalham até as 23h para dar conta da alta demanda. Há casos de pessoas que acumulam a gestão de equipamentos culturais com o acompanhamento de dezenas ou  até centenas de projetos em execução.

“A questão dos pagamentos é uma coisa grave, mas não é o único problema. Se você olha para os programas culturais, todos eles têm déficit de funcionários para fazer esse trabalho [burocrático]. Isso vai afetar os técnicos da Cultura, mas também a política pública entregue para a população”, observa Elaine.

Há um impacto sobretudo nas periferias, em que programas de iniciação e formação artística (como o Piá e o Vocacional) ou de gestão cultural (como o bem sucedido Programa VAI) não atendem aos próprios objetivos principais, que consistem em criar vínculos com o público e capacitar agentes culturais.

Vereadora Elaine Mineiro, do Quilombo Periférico (PSOL)

Na gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), uma série de programas culturais novos foram lançados, como é o caso do fomento às bibliotecas comunitárias ou o edital de múltiplas linguagens. Porém, Elaine nota que a expansão louvável e historicamente defendida pelos movimentos culturais não é acompanhada pela garantia de mais pessoas para tocar os projetos.

Em média, no ano de 2023 a SMC fez uma 1.139 notas de empenho por mês. Com uma equipe jurídica de 10 pessoas, isso significa que cada pessoa precisava olhar de 5 a 6 contratações a cada dia, segundo o levantamento.

Empenho é o nome dado ao comprometimento de parte do recurso público para o pagamento de um projeto ou atividade, por exemplo.

A média de idade de quem trabalha na secretaria é 53 anos, sendo que pelo menos metade tem essa idade ou mais. A tendência majoritária é de profissionais com idade entre 40 e 70 anos de idade. A faixa etária aponta para um gargalo futuro, que é a aposentadoria de parte da equipe em comparação à forma de contratação de novas pessoas para os cargos.

Segundo o estudo, 33,12% estão em cargos comissionados – que são ocupados por indicação. Por outro lado, pessoas nessas funções têm menos tempo de experiência que o quadro efetivo – são 65% das pessoas da equipe com até 3 anos de experiência na função.

Receio e luta

“Se não fosse política de cultura, a gente faria na raça, mas seria bem mais difícil se manter atuante por tantos anos”, diz uma integrante de um coletivo de cultura popular recentemente contemplado pelo Fomento à Cultura da Periferia.

O que era comemoração virou angústia. Foram quase 6 meses de espera pelos recursos. Com o dinheiro em conta, agora precisam refazer o planejamento de atividades.

“A desorganização dificulta o acesso. E o ônus é de quem tá na ponta fazendo e com o medo de sofrer retaliação. Eles estão errados, mas ainda assim a gente não sabe até que ponto reclamar vai recair sobre nós mesmos”, desabafa a integrante, que preferiu não se identificar. “A Prefeitura atrasa e a gente fica refém, porque não tem muito mais o que fazer além de protestar”, completa.

Agentes culturais têm se reunido periodicamente para discutir as políticas do setor na cidade de São Paulo e denunciar o estado atual.

“A situação é de absoluto descaso”, aponta o produtor cultural Zé Renato, que faz parte da Frente Única dos Trabalhadores da Cultura (FUTC). Ele aguarda o pagamento de um projeto contemplado pelo Fomento ao Forró desde outubro do ano passado.

“O meu projeto é um, eu quero muito fazê-lo e espero receber o dinheiro porque preciso. Mas enquanto movimento, a situação diz respeito à outra ordem, porque a Secretaria está colapsando” – Zé Renato.

Zé Renato alerta que existem os projetos aprovados em 2023 não contratados, e que isso implica num gargalo estrutural para a Prefeitura abrir novos editais – o que pode fazer com que muitos programas não aconteçam em 2024, mesmo com dinheiro em caixa.

Ao mesmo tempo, a execução da Lei Paulo Gustavo, criada para atender o setor diante da emergência da pandemia, continua sendo adiada – o município recebeu quase R$ 87 milhões do Ministério da Cultura para socorrer artistas.

Terceirização

Para a Elaine do Quilombo Periférico, o cenário atual faz parte de um projeto amplo com objetivo de terceirizar a cultura de São Paulo:

“Uma das poucas vezes em que a Aline Torres [ex-secretária, exonerada na última semana para concorrer a vereadora nas eleições deste ano] esteve na audiência da Subcomissão de Cultura da Câmara, ela falou que não faltavam funcionários na SMC, mas sim que era necessário olhar para outras formas de gestão, que é a terceirização” – Elaine Mineiro

A administração de Aline à frente da SMC ficou marcada pela tentativa de terceirizar a gestão das 20 casas de cultura, atualmente sob controle da Prefeitura. Desde 2022, agentes culturais das periferias denunciam e lutam para impedir que os equipamentos passem para organizações sociais.

Em maio do ano passado, o Tribunal de Contas do Município (TCM) barrou o edital ao avaliar que ele não atende a uma lei específica, que determina a participação de cada território na gestão dos espaços.

“Mas o projeto de terceirização tá claro, tá colocado e a SMC não se constrange de assumir”, aponta Elaine. “E quando não se tem equipe, a aposta da Secretaria são programações curtas e grandes eventos, em vez da formação de público, da fruição, do incentivo à economia solidária e da cultura para que os coletivos tenham viabilidade”.

A reestruturação da secretaria, inclusive com a ampliação de profissionais, foi uma das principais demandas apresentadas na elaboração do Plano Municipal de Cultura, publicado em 2016 e que ainda não saiu do papel.

[Transparência]: A Periferia em Movimento também passou por atrasos nos processos de contratação e pagamento de projetos pela SMC. Reforçamos, no entanto, que a publicação desta reportagem não parte de um interesse particular ou institucional, mas sim considera o interesse público e e relevância jornalística para abordar a questão. 

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