Editorial da Periferia em Movimento. Foto em destaque: Julia Cavalcante
“Vamos às atividades do dia
Lavar os corpos, contar os corpos e sorrir
A essa morna rebeldia”
Versos de “Lion Man”, do rapper Criolo
Da janela virada pra rua, é possível ver um horizonte que se encerra a poucos metros: é tomado por casinhas amontoadas, com tijolos vermelhos aparentes.
A molecada insiste em botar o pipa no céu, enquanto uns com mais idade dão grau raspando a placa das motos no asfalto. Adultos seguem a vida: mercado, açougue, feira, trabalho e conversa jogada fora na calçada. As máscaras estão ali: escondendo bocas e narinas, ou não – no queixo, no bolso, na bolsa. E se não fossem essas máscaras, caseiras, estampadas, poderíamos dizer que nem existe pandemia.
“Lavar os corpos, contar os corpos e sorrir”
É por outra janela em que vemos o mundo, apesar dela ser bem menor: tem 13 polegadas, cansa as vistas e geralmente a visualização é lenta pois depende da conexão da internet. Pelo computador, trabalhamos, acompanhamos o que outras pessoas veem de suas janelas também e nos atualizamos da situação pandêmica que vivemos.
E enquanto escrevemos, nos aproximamos de 100 mil vidas perdidas por covid-19 no Brasil.
100 mil histórias.
100 mil pontos de vista.
100 mil amores de alguém.
Caraca. Quantas conhecidas e quantos conhecidos seus foram infectados ou até morreram por causa dessa doença? “Toca a vida”, diz o ocupante da cadeira presidencial.
Por aqui, faltam lágrimas e palavras.
A Periferia em Movimento nasce das ruas para fazer jornalismo de quebrada, mas está enclausurada. E mesmo fechados em casa na maior parte do tempo, nós não deixamos de fazer perguntas.
Desde o dia 12 de março, quando a pandemia de coronavírus foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), já publicamos mais de 70 reportagens. Logo de cara, lançamos 16 perguntas sobre o impacto nas periferias:
Em busca de respostas
Após a infeliz confirmação do primeiro óbito da doença no País, publicamos um manifesto de filhos e filhas de empregadas domésticas pelo direito dessas trabalhadoras cumprirem a quarentena em suas casas, assim como os direitos de quem trampa na área. Retomamos o assunto meses depois.
Falamos da urgência da Renda Básica, das dificuldades para solicitar o auxílio onde não pega celular e a enrolação do governo federal para pagar os R$ 600. Apontamos as falhas 3 meses depois e a luta para tornar esse benefício como algo permanente. Trouxemos relatos e fotos de trabalhadores que não ficaram de quarentena.
Abordamos as redes de proteção às mulheres, entre LGBTs e povos indígenas, além do risco da pandemia ser usada como justificativa para violência policial.
Falamos de meios para agir em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes e o que fazer em casos de violência doméstica – duas situações que tiveram um aumento de caso nesses meses.
Também abordamos os impactos nas ocupações por moradia, na educação pública – agora à distância, na cultura periférica e entre os trabalhadores da assistência social.
Trouxemos os relatos de quem está vivendo a fé sem sair de casa e do alerta de uma artista periférica brasileira confinada na França.
E produzimos e veiculamos vídeos para promover o cuidado entre quem tá na militância, com dicas para aumentar a imunidade, cuidar do corpo, entreter as crianças , quando as grávidas devem procurar o hospital e como cuidar dos idosos.
Além disso, apresentamos a visão das quebradas com propostas e a cobrança de maior transparência. E não deixamos de nos posicionar quando necessário.
E falamos da morte, sim. Desde o adeus à distância até as fases do luto e um guia para garantir seus direitos nesse momento tão difícil. Relacionamos também à banalização da vida, que “normaliza” qualquer situação, seja o genocídio pela bala ou pelo vírus
Normal pra quem?
As marcas no rosto e as dores no corpo revelam o cansaço da “subida” na curva de casos de covid-19. Chegamos no chamado “platô” e, do alto da pilha de corpos, não enxergamos a descida.
Nesse cemitério elevado, a vista plana pode dar a sensação de aparente estabilidade. O “novo normal” da classe média é frequentar academia, shoppings e butecos diante de mais de 1.000 mortes diárias. O busão tá lotado, a resenha tá rolando e os governantes fazem videochamada pra decidir a volta às aulas presenciais.
O noticiário, antes dominado pelo coronavírus, dedica só parte do tempo para o assunto. Não é mais novidade. Da cloroquina que “cura” aos atestados de óbito “forjados”, a prateleira de narrativas tem versões personalizadas.
No mercado das verdades, escolha a sua e seja o que (seu) Deus quiser.
140 dias? 150?
Já perdemos a conta da vida na clausura. Depois de todo esse tempo, não temos perguntas novas. Repetimos velhos questionamos enquanto ecoam os versos da canção…
Redação PEM“Sua rainha tá ciscando, já era!
O país tá no abandono, já era!
O planeta tá morrendo, já era!
Vai cair o rei”
1 Comentário
[…] A curva de mortes e de casos de covid-19 no País ensaia uma queda depois de semanas em um platô de cadáveres. Na cidade de São Paulo, o impacto é maior entre a população negra e nas […]