Agentes culturais acusam Prefeitura de “desmontar” programas que formam artistas nas periferias de SP. Gestão nega

Agentes culturais acusam Prefeitura de “desmontar” programas que formam artistas nas periferias de SP. Gestão nega

Grupo acusa gestão Ricardo Nunes de promover mudanças na contratação e precarizar trabalho nos programas Vocacional, PIÁ e PIAPI

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Companhias de dança e teatro, artistas visuais, da música ou da literatura… Nas últimas décadas, para além do pioneirismo do hip hop, a cena cultural periférica de São Paulo se mostrou diversa e efervescente em diferentes linguagens.

A mobilização de agentes culturais nas quebradas revelou talentos e deu origem a políticas públicas bem sucedidas, como o Programa VAI e o Fomento à Cultura da Periferia. Além de movimentar a economia e a política, festivais, saraus e feiras literárias entraram no calendário da cidade e contribuíram para mudar o imaginário social graças ao esforço coletivo de milhares de pessoas.

Porém, esse cenário pode estar ameaçado, segundo agentes culturais: programas de base, como o Vocacional, estariam sendo “desmontados” pela Prefeitura de Ricardo Nunes (MDB).

“Esse é o pior ataque que já sofremos”, destaca José*, trabalhador da cultura que teve o nome alterado para preservar sua identidade.

Há mais de sete anos, o profissional atua como artista orientador do Programa Vocacional na zona Leste paulistana.

Troca de processos com o grupo Idendidade Oculta (Foto: Divulgação)

Troca de processos com o grupo Idendidade Oculta, em 2015 (Foto: Divulgação)

Criado em 2001 pela então prefeita Marta Suplicy, o Vocacional realiza processos artísticos com pessoas a partir dos 14 anos em Artes Visuais, Audiovisual, Circo, Dança, Literatura, Música e Teatro.

Já o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), existente desde 2008 , promove a formação cultural para crianças e adolescentes dos 6 aos 13 anos. E mais recentemente, o Programa de Iniciação Artística Para Primeira Infância (PIAPI) faz o mesmo com bebês e crianças de 0 a 6 anos e suas famílias.

Com mais de 86 mil pessoas beneficiadas na história, os três programas são vinculados à Supervisão de Formação Cultural da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SMC) e realizam encontros semanais em 241 equipamentos públicos, como casas de cultura, centros culturais, CEUs entre outros.

É nessas formações que muitas pessoas se conhecem e criam os próprios coletivos – muitos seguem na ativa, como é o caso do grupo de teatro Identidade Oculta, que completa 20 anos de trabalho no Grajaú (Extremo Sul).

“A gente tem grupos artísticos periféricos que estão até hoje consolidados e que começaram no Vocacional, depois ganharam [o edital do] VAI, Fomento à Periferia (…)”, diz o agente cultural da zona Leste. “Mas nos últimos dois anos, não temos visto mais a formação de novos grupos”, continua José, que é porta-voz de um grupo de agentes culturais descontentes com as mudanças realizadas.

Isso aconteceria por conta do sucateamento dessas políticas públicas, segundo militantes da área.

Com medo de represálias, essas pessoas denunciam a “descaracterização” dos programas por meio da página “Desmontar o desmonte”, no Instagram.

Por meio da assessoria de imprensa, a SMC da Prefeitura de Ricardo Nunes diz que está fortalecendo o programa. Segundo a pasta, os programas ampliaram o atendimento ao público em mais de 50%, que passaram de 7.319 em 2021 para 11.045 em 2025 – sendo 2.565 no PIAPI, 4.960 no PIÁ e 3.520 no Vocacional.

Além disso, a secretaria diz que o número de artistas que atuam na orientação e articulação aumentou de 321 para 379 entre 2021 e 2025.

Quais são as mudanças, afinal?

Os três programas seriam alvo de desmonte da própria SMC, segundo o manifesto publicado neste site.

José, o porta-voz do grupo, ressalta que cada gestão municipal tenta imprimir a própria marca aos programas.

O momento mais crítico, até então, havia ocorrido durante o governo de João Doria (PSDB). Na época, André Sturm era secretário de Cultura. Ele diminuiu o tempo das ações do Vocacional para seis meses (em geral, se estendem por 10 meses) e reduziu para 100 profissionais contratades em um ano (o número chegou ao pico de 300 no governo de Fernando Haddad).

No início do segundo mandato de Nunes, reeleito com apoio de bolsonarisas da extrema-direita, os programas passaram por transformações mais profundas.

Publicados em fevereiro, os editais para credenciar pessoas para articulação e orientação de público surpreenderam artistas com uma série de alterações.

Uma delas é a mudança na forma de contratação, que agora ocorre por sorteio.

Casa de Cultura M'Boi Mirim

Casa de Cultura M’Boi Mirim

Nas últimas edições, as candidaturas eram avaliadas por uma banca com representantes da SMC e da sociedade civil, que atribuíam notas com base na experiência e em dinâmicas de grupo. As vagas eram ocupadas por pessoas com maior pontuação, enquanto agora basta cumprir todos os requisitos para concorrer.

A avaliação presencial foi extinta, enquanto a parte burocrática teve novas mudanças.

Agora, artistas precisam comprovar 420 horas de experiência artístico-pedagógica em, no máximo, quatro documentos. Se antes eram aceitos portfólios fotográficos e atuação em projetos comunitários, atualmente os documentos precisam ser emitidos por organizações com CNPJ aberto. A experiência anterior trabalhando no Programa Vocacional fica limitada à carga horária máxima de 210 horas (metade do exigido para credenciamento).

Para José, essas medidas excluem a participação de artistas das periferias no processo seletivo, já que muitas dessas pessoas construíram suas trajetórias em coletivos informais e no próprio Vocacional.

“No geral, querem substituir quem trabalha no programa, diminuir, descaracterizar a política pública com tendência a prejudicar o artista periférico. Muita gente desanimou e desistiu de concorrer ao processo”, completa José.

Os novos editais também reduzem a duração dos contratos para até seis meses e as horas mensais de trabalho, o que segundo José pode enfraquecer vínculos com o público e a continuidade da formação, pontos essenciais nas periferias.

A insegurança no trabalho aumenta com penalidades por atrasos de 15 minutos e restrições à autonomia de artistas.  “A gente não pode se expressar contra isso porque estamos ameaçados”, destaca José.

Além disso, diminuem a 2% as cotas para artistas trans e não permitem a cumulação de ações afirmativas étnico-racial, pessoas com deficiência, migrantes e pessoas trans.

Outro risco trazido pelo grupo é a possibilidade de abrir novas turmas conforme a demanda dos equipamentos culturais, o que poderia justificar a diminuição dos programas, que atuam formando novos públicos.

E recentemente, a página “Desmontar o desmonte” denunciou o remanejamento de R$ 2,5 milhões do Vocacional e do PIÁ para a realização da Virada Cultural, conforme publicado no Diário Oficial de 16 de abril. O recurso deve reduzir a contratação de cerca de 100 artistas nos programas.

Segundo a SMC, “as mudanças de editais visam ampliar a transparência, descentralizar o acesso e garantir equidade e eficiência, especialmente nos territórios periféricos”. A secretaria também nega que houve remanejamento de recursos dos programas para a Virada Cultural e que os programas têm orçamento de mais de R$ 17 milhões para este ano.

Cansaço

Casa de Cultura do Itaim Paulista (Foto: André Santos)

O grupo de agentes culturais acionou o SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de São Paulo) e o mandato do vereador Celso Gianazzi (PSOL). Na primeira tentativa de impugnar o edital de contratação, a supervisora Ligia Jalantonio não acatou ao pedido.

“O contrato de seis meses possibilitará uma avaliação pela gestão do programa, de modo que a prorrogação do contrato não será realizada com aqueles que não estiverem correspondendo aos princípios do programa e às atribuições do contrato. Esta estratégia visa aprimorar o serviço prestado à população”, justifica Jalantonio em parecer publicado no Diário Oficial de 7 de março.

Ao levar o caso à justiça, a juíza de primeira instância também deu parecer favorável à SMC. O parlamentar do PSOL está recorrendo a essa decisão, mas o porta-voz de agentes culturais que atuam nos programas é pessimista.

“Eles querem nos vencer pelo cansaço. A realidade é essa”, diz José*.

 

A resposta da Secretaria de Cultura

Procurada pela Periferia em Movimento para comentar a situação, a assessoria de imprensa respondeu às solicitações da reportagem com uma nota enviada na tarde de sexta-feira (25/4). Confira abaixo, na íntegra:

“A Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SMC) informa que não há desmonte nos programas de formação artística mencionados. Pelo contrário. A atual gestão ampliou em mais de 50% o número de vagas no PIAPI, PIÁ e Vocacional, que passaram de 7.319 em 2021 para 11.045 em 2025, sendo 2.565 no PIAPI, 4.960 no PIÁ e 3.520 no Vocacional. O número de educadores também aumentou, de 321 em 2021 para 379 em 2025. Até hoje, mais de 86 mil pessoas já foram beneficiadas pelos programas. O orçamento previsto para esse ano é de mais de R$17 milhões para os programas, sendo R$3,47 milhões para o PIAPI, R$8,5 milhões para o PIÁ e R$5,75 milhões para o Vocacional. 

Atualmente, as atividades acontecem em 241 equipamentos em linguagens interdisciplinares no PIAPI e PIÁ, e em linguagens definidas no Vocacional: audiovisual, artes visuais, circo, dança, literatura, música e teatro. 

As mudanças de editais visam ampliar a transparência, descentralizar o acesso e garantir equidade e eficiência, especialmente nos territórios periféricos. Não houve remanejamento de recursos dos programas para a Virada Cultural”.

Arte de capa: Rafael Cristiano

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