Retomada: Pessoas periféricas se reencontram com identidade e se reconhecem indígenas

Retomada: Pessoas periféricas se reencontram com identidade e se reconhecem indígenas

Movimento de retomada da identidade cresce em todo Brasil e autodeclaração aumenta quase 90%, com participação de juventude periférica. Confira na reportagem especial deste 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas

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Por André Santos. Fotos: Vitori Jumapili. Edição de texto: Thiago Borges

Você se considera indígena? 

Essa pergunta foi feita pela primeira vez no Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mais recente, realizado em 2022. E os resultados revelam um aumento de 88,2% no número de pessoas que se autodeclaram indígenas no Brasil.

Hoje, essa população chega a 1.693.535 pessoas (0,83% do total do País). No Censo de 2010, foram contabilizados 896.917 indígenas em território nacional.

Além da mudança na metodologia, outro ponto que colabora para que tamanha ascensão é uma movimentação orgânica e popular de retomada de identidades, que atinge sobretudo uma juventude situada em contexto urbano e periférico.

“De 2020 para cá, me parece que começa um levante, que está chegando e acontecendo. É uma onda que está emergindo, e é quando eu começo a ir atrás de coisas, a fazer pesquisas, a entender, achar fotos do meu avô e falar: ‘pera aí, esse avô aqui não é branco’”, conta Ynã Oru, 38 anos, artista plástico e performancer.

Morador do Tucuruvi, na zona Norte, mas criado na zona Leste de São Paulo, Oru passou por uma retomada Kariri (povo original do Nordeste brasileiro mas que hoje se dispersa por diferentes partes do País). Entender a própria identidade enquanto pessoa racializada é algo que começou ainda na infância. Vindo de uma linhagem bastante miscigenada, com avó cigana e avô “caboclo”, sempre ouviu comentários sobre possuir uma “beleza exótica”.

“Eu cresci sendo adjetivado de ‘tupiniquim’, então tudo que eu fazia virava isso. É algo que você vai carregando e que você não sabe nomear, não entende, não sabe lidar, e vai maturando essas coisas que vão jogando em nós. Era já um demarcador que as pessoas projetavam em mim”, relembra.

Outra pessoa que passou por experiências semelhantes é Juà Pytã, 24, produtore cultural e arte educadore. Cria de Poá, cidade na região metropolitana de São Paulo localizada no Alto do Tietê, Juà passou por uma retomada Payayá (povo que está disperso entre os estados de São Paulo e da Bahia). Mas esse caminho foi complexo e doloroso.

Durante sua trajetória, também passou pelo processo de ser tipificado por outras pessoas ora como preto, ora como branco, gerando assim uma demanda emocional bastante complexa e ocupando uma espécie de ‘não lugar’.

“Nessa casa mesmo, eu lembro várias vezes de estar no banheiro, me olhando no espelho e pensar: ‘O que você é? De onde você veio?’, chorando mesmo. Nessa época eu comecei a sentir que eu precisava fazer alguma coisa, se não eu poderia chegar no fundo do poço se eu continuasse indo no que as pessoas falavam e não tomar uma posição sobre o que eu sei sobre mim”, diz Juà.

Reconhecimento

Assim como aconteceu com Oru, Juà também encontrou algumas respostas a partir de sua família. Elu passava parte de suas férias em Mirassol, uma cidade que se localiza no Noroeste de São Paulo, a 453 quilômetros da capital.

Foi lá o ponto de partida para o processo de entendimento racial. Além das vivências com o bioma local, sobretudo com os rios, ouviu por diversas vezes de seu avô materno sobre a origem indígena da família.

“Chegou uma hora em que eu fiquei ‘peraí, eu não sou branco, não sou preto’, e meu avô sempre me falou que a gente é indígena, mas se os indígenas só vivem na mata, então o que eu sou?’. E aí fiquei nessa pira de ir atrás, tentar entender e conhecer pessoas que já estavam nesse corre” – Juà.

A virada de chave para Juà aconteceu a partir do acolhimento de um terreiro de umbanda em Guarulhos, onde passou a ter contato com outras pessoas racializadas com questionamentos e vivências similares. A partir dessas trocas, passou a entender-se como uma pessoa indígena.

Depois, Juà encontrou outras pessoas jovens, de diferentes regiões de São Paulo, que também passavam pelo processo de retomada de identidade, e juntes formaram o Acervo Pindoretá, coletivo que promove a criação artística de corpos originários.

“Quando a gente não tem uma rede de apoio, de pessoas que nos escutam, entendem nossa realidade e nos acolhem, fica muito difícil de a gente se acolher também. Nós somos seres coletivos, mesmo que as pessoas não entendam que a gente está o tempo todo dependendo do outre para nossa própria construção. Quando a gente está em um ambiente que tem pessoas que te incentivam a falar sobre você, sobre sua história e quem você é, isso nos dá a oportunidade de florescer e ser quem somos”, conta Juà.

Coletividade

Estar em comunidade é, de fato, algo importante para passar por esse estágio de construção de identidade. As trocas com pessoas que estão em processo similar, além de propiciar segurança e conforto emocional, também são importantes para gerar reflexões novas e encontrar respostas para situações cotidianas, além de que esses encontros formam comunidades e estreitam relações, sobretudo no contexto urbano.

“Provavelmente a sua narrativa é diferente da minha, mas elas se conectam em alguns lugares. Essa força misteriosa que começa fazer o levante acontecer faz a gente se encontrar, se ouvir, e de repente a gente está gerando outras aldeias, de outras formas. Nos reconhecendo, nos permitindo ser ouvidos e gerando uma outra importância de coletividade, porque se na minha narrativa, de profundo apagamento, eu não tenho como chegar a uma liderança ou a um mais velho, quem vai ‘abençoar’ esse indígena? É também uma contracolonialidade a gente estar se reagrupando e gerando outras teias de escuta onde a gente se reconhece” – Oru.

Essa organização é preponderante porque, para além da rede de apoio, formam-se diversas coletividades que atuam em prol desta população. Esses grupos promovem e fomentam culturas originárias, além de ocupar um espaço que por muitos séculos foi negado pela sociedade.

A ocupação desses lugares é preponderante para que, por exemplo, sejam elaboradas políticas públicas para essa população, já que a tendência é de aumento no número de pessoas que entendam o processo de retomada identitária.

“Nossos encontros são a colonialidade que deu errado, porque por mais que tentem nos destruir, apagar, invisibilizar e tirar o direito de a gente se reconhecer, nós estamos nos reencontrando. Esses fluxos de vida estão se reencontrando. Não importa se a gente tá no centro da capital da maior metrópole dessa chamada América Latina, ou se a gente está em outros lugares. O reencontro está acontecendo, e ele é muito importante pra gente não se sentir só”, comenta Oru.

Terra indígena

Antes da invasão portuguesa, todo o território hoje nacional era originário. Desta forma, ainda que hoje a cidade de São Paulo possua mais de 12 milhões de habitantes e extensão territorial de 1.521 km², antigamente diversos povos habitaram o mesmo espaço que hoje é ocupado por incontáveis prédios, vias pavimentadas e pouquíssimas áreas de preservação ambiental.

Mesmo depois de todas as tentativas de apagamento e extermínio, é louvável a presença indígena nesses locais. No entanto, apesar de ser um enorme símbolo de resistência, sob uma ótica popular a presença desses povos em contexto urbano soa como algo antinatural para muitas pessoas.

“É muito complicado e desafiador se afirmar indígena na cidade, porque parece que a gente está falando uma coisa de outro mundo. É quase um título, e um título fantasiado, romantizado. Ninguém é indígena nessa esfera da colonialidade. Então eu tomo muito cuidado em dizer, mas é esse conflito constante. Por que não ser? Por que tantas camadas assim?”, questiona Oru.

Ainda assim, após diversos processos, esse imaginário de que indígenas não estão presentes em contexto urbano começa a cair por terra.

Ainda de acordo com o Censo do IBGE, indígenas estão presentes em 86,7% dos municípios brasileiros. A cidade de São Paulo, por exemplo, conta com 19.777 pessoas que se autodeclaram desta forma. O número corresponde a um aumento de 52,3% em relação ao registrado em 2010, quando 12.987 pessoas foram contabilizadas.

“O grande desafio é viver diariamente questionando o sentido da minha relação com esse território, que ainda é originário, mas que está numa configuração que nos afasta disso que, para mim, é nossa semente, que é nossa relação com a terra, com o céu, com o mar e com os rios. Por mais que a gente esteja rodeado de concreto, essas coisas se relacionam com nós. Meu quintal é cheio de biomas de resistência que estão estourando o concreto e vivendo. Como diz o Ailton Krenak, a vida é uma pulsão que sempre vai dar um jeito de romper e de existir. É esse processo, mas ainda dói”, comenta Oru.

Quebrada originária

O monoculturismo que foi idealizado no Brasil a partir do imaginário da branquitude imposto após a colonização é violento para existências que fogem dos padrões seguidos por esta sociedade.

Nós vemos diversas formas de tentar perpetuar ideais centrados nas vivências de origem europeia, como a religião cristã, que geralmente desconsideram por completo toda a pluralidade de corpos e de ideias.

Portanto, qualquer existência que fuja desses padrões sociais tende a ser questionada, em maior ou menor escala, seja no âmbito racial, de gênero, sexualidade e das mais diversas pluralidades que a humanidade pode proporcionar, fator que contribui para que essas pessoas sintam-se, por vezes, deslocadas.

“Incatalogável é uma palavra importante pra isso tudo. A gente se abre e possibilita verdadeiramente receber essas pluralidades, que são imensas. Quando a gente entra em uma floresta, a gente vê a quantidade de cores, formatos, folhas e espécies. A retomada não é só ancestral, é uma retomada de espaço, prática, pensamento e ruptura. Quando eu entro na bioma recebo muitas respostas desse processo, porque vejo uma quantidade imensa de tudo. Se nós pertencemos a esse bioma, a gente também vai ser infinito de possibilidades”, diz Oru.

Um fator que contribui para que essa retomada de espaço aconteça é a oralidade, uma das formas mais eficazes de manter memórias vivas e evitar o apagamento de ancestrais que ocuparam esta terra antes de nós.

Dentro desse contexto, as periferias têm papel importantíssimo, visto que a oralidade daqui  é fortemente presente, seja a partir de histórias que são repassadas ou até pelos dialetos que cada região adota.

“A oralidade é muito importante para a preservação de qualquer memória. Quando a gente fala da quebrada, especificamente, eu sei de coisas que aconteceram aqui décadas atrás por conta desses relatos”, comenta Juà, que conclui: “Quando a gente reconhece a quebrada como um lugar originário, a gente vê que tem nossa própria forma de se comunicar. Isso não acontece em nenhum outro lugar porque é a forma que a gente se construiu aqui. Cada território vai ter sua forma de se comunicar, de trocar, e aqui não é diferente”.

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