Carine, uma menina negra de três anos, ficou triste porque uma coleguinha branca da escola disse que seu cabelo era feio.
Em muitos colégios esse caso poderia passar batido, mas não onde a professora Cristiane Palheta dá aula – o Centro de Educação Infantil (CEI) Parque Cocaia, localizado no Grajaú, Extremo Sul de São Paulo.
“A coleguinha não falou por implicância, e sim porque sentia mesmo isso. Não significa que é racismo, mas a reprodução das referências que se tem”, explica Cristiane.
A educadora mediou uma conversa entre as duas crianças sobre a beleza de cada uma e envolveu toda a turminha no assunto.
“É difícil desconstruir isso porque todo o modelo de beleza que se tem é de uma mulher branca, loira, de cabelos longos, e mesmo no ambiente educacional essas questões não são discutidas”, diz Cristiane.
A falta dessas referências em escolas onde até 80% dos estudantes são negros ou pardos incomodou Cristiane, que começou a confeccionar bonecas pretas e indígenas para gerar identificação entre seus alunos e combater o racismo desde a infância.
É sobre esse trabalho que vamos falar em mais uma reportagem do “Cultura ao Extremo”, projeto realizado com apoio do programa Agente Comunitário de Cultura da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que tem o objetivo de mapear e visibilizar as manifestações culturais no Extremo Sul.
Para saber mais e participar também, clique na imagem abaixo ou responda ao questionário no final da matéria.
Quem sou eu?
Cristiane, 30 anos, nasceu em Castanhal (PA), município com 186 mil habitantes. Aos 10 anos, ela e as duas irmãs mais velhas foram trazidas para São Paulo pela mãe, que trabalhava como doméstica para juntar dinheiro e buscar os filhos deixados com parentes no Norte do País.
Apesar da origem, foi em São Paulo que Cristiane firmou sua identidade. Com antepassados negros e indígenas, aqui ela não era reconhecida como afrodescedente por conta dos cabelos e lábios finos.
“Porém, até então eu também não me reconhecia como indígena. Grande parte da minha família se parece comigo, mas ninguém sabia direito sobre nossas raízes nem admitia porque até hoje no Pará existe uma imagem ruim do índio. Ninguém quer ser indígena”, explica.
Também devido à conotação ruim que a imigração dos povos andinos ganhou na cidade, Cristiane muitas vezes era chamada de “boliviana” por conta de sua aparência.
Muitos questionamentos de Cristiane começaram a ser respondidos em 2004, quando ingressou na faculdade de Pedagogia.
A experiência nas salas de aula foi essencial para o conhecimento interior de Cristiane, que contou com outro fator importante: a vivência no Extremo Sul de São Paulo.
Criada na Vila Califórnia (zona Leste), durante a graduação ela encontrou o atual marido Robson Oliveira – mais conhecido como Robsoul, rapper e professor –, com quem se casou um ano antes da formatura e se mudou para o Jardim Shangrilá, no Grajaú.
O interesse por saber mais sobre a ancestralidade e a existência de terras indígenas tão próximas de casa motivaram uma visita de Cristiane à aldeia Tenondé Porã, em Parelheiros. Lá, foi acolhida, se integrou às atividades da comunidade e recebeu um nome guarani: Jaxuka Mirim.
Foram quase três décadas para Cristiane afirmar sua identidade.
De volta às salas de aula, onde muitos dos estudantes eram negros e pardos, ela queria diminuir esse processo de descoberta entre seus alunos.
Entretanto, como abordar assuntos tão complexos com crianças de até três anos idade em um sistema de ensino que prioriza as referências europeias?
“O currículo escolar é totalmente eurocentrista, os livros de formação tanto para professores quanto para alunos só trazem pessoas brancas, então não era possível que uma criança construísse uma identidade positiva de sua etnia com base nisso”, diz ela.
Quem somos nós?
O Brasil tem duas leis (a 10.639, de 2003, e a 11.645, de 2008), que determinam o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nas escolas.
Entretanto, na prática, a leis ainda não são cumpridas ou se resumem a atividades nos dias do Índio ou da Consciência Negra.
Segundo a ONG Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), que promove o Prêmio Educar pela Igualdade, os melhores resultados são obtidos em ações individuais de professores como Cristiane.
Com a falta de brinquedos de referências indígenas ou africanas, a educadora resolveu fazer ela mesma: foram meses assistindo vídeos na internet, pesquisando hábitos e símbolos, e desenhando croquis até confeccionar com retalhos de pano uma bonequinha guarani.
Quando a boneca ficou pronta, Cristiane levou à Tenondé Porã para receber a aprovação da Jerá Guarani, uma das lideranças femininas da aldeia.
“Eu não queria me apropriar indevidamente dessas referências. Também tomei cuidado em fazer bonecas indígenas com grafismos específicos de cada povo, nada genérico, porque buscamos justamente combater esses estereótipos”, diz.
Em 2012, Cristiane levou a boneca para o CEI pela primeira vez. Contou histórias, deixou que as crianças brincassem, mas ainda estava insatisfeita. Com o próprio dinheiro, comprou outros brinquedos guaranis e fez bonecas maiores e pretas, além das indígenas.
Em 2013, uma colega apresentou a Cristiane as bonecas Abayomi, feitas com pedaços de roupas pelas mães para acalmar os filhos nos navios negreiros durante o translado entre a África e o Brasil, onde serviriam como escravos.
Desde então, as bonecas passaram a acompanhar histórias sobre princesas e guerreiros africanos, apresentando outros parâmetros para os pequeninos.
Apesar da aceitação pelas crianças, a professora já enfrentou resistência de pais, responsáveis e educadores de outras escolas. Além disso, sem apoio do poder público, ela depende da doação de retalhos ou tira dinheiro do próprio bolso para comprar os materiais que precisa.
“Minha maior conquista é trazer uma outra referência para as crianças, que podem escolher uma boneca parecida com elas”, conclui. “As bonecas são um instrumento de luta contra o racismo”. Carine, a menina do começo da matéria, agradece.
Tudo sobre…
Cristiane Jaxuka e as bonecas Abayomi
Região de atuação: Extremo Sul de São Paulo
Linguagens: Artesanato, Oficinas
Temas abordados: Arte e cultura, Educação, Culturas afrobrasileiras, Culturas indígenas
Público principal: crianças (nas escolas), jovens e adultos (nas oficinas externas)
Critérios para participação das oficinas: Nenhum
Com quem se articula: Artistas locais, Escolas públicas e particulares, Movimentos sociais
Como se mantém: Recursos próprios
Maiores dificuldades enfrentadas no dia a dia: Conhecimento sobre gestão e falta de tempo para dedicação ao trabalho
Contatos: pelo e-mail ([email protected]) ou Facebook
2 Comentários
[…] Meu coleguinha que, apesar de mais claro que eu também era uma criança preta, diante de seu medo canalizou em mim a evidência para livrar-se dos risos que poderiam machucá-lo em algum momento diante da assimilação dos macacos às pessoas pretas. Eu não entendi isso naquela época, mas mesmo assim não foi isso que mais me machucou. O que me machucou de fato foi olhar pra única pessoa que eu sentia que poderia fazer alguma coisa para me proteger da dor do racismo e nada fez. O que me machucou foi o silêncio da professora. […]
[…] Meu coleguinha que, apesar de mais claro que eu também era uma criança preta, diante de seu medo canalizou em mim a evidência para livrar-se dos risos que poderiam machucá-lo em algum momento diante da assimilação dos macacos às pessoas pretas. Eu não entendi isso naquela época, mas mesmo assim não foi isso que mais me machucou. O que me machucou de fato foi olhar pra única pessoa que eu sentia que poderia fazer alguma coisa para me proteger da dor do racismo e nada fez. O que me machucou foi o silêncio da professora. […]