Patrimônio vivo do Hip Hop, Dorothy trança conhecimentos e memórias da cultura marginal

Patrimônio vivo do Hip Hop, Dorothy trança conhecimentos e memórias da cultura marginal

Reconhecida pelas ruas como Doutora em música, rapper, sacerdotisa em polir coroas (trancista), produtora cultural, dançarina, musicista e arteira, ela contribui com grandes traquinagens para o movimento em São Paulo desde 1989. Conheça Dorothy neste perfil!

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Reportagem de Elisabeth Botelho. Fotos por Vitori Jumapili. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano. Distribuição: Vênuz Capel

Numa terça-feira de agosto, o tempo estava fechado e frio no Grajaú, no Extremo Sul da cidade de São Paulo. A equipe da Periferia em Movimento estava esperando a chegada de Dorothy quando ela é vista andando com uma sacola nas mãos, após a volta do Centro para comprar cabelo para suas clientes.

A viagem ao Centrão é uma prática desde os seus 11 anos de idade. Foi lá que Dorothy ressignificou o papel da trança em sua vida e descobriu uma nova família, o Hip Hop. O movimento é o compromisso de vida de muitas pessoas periféricas e a trança é a arte ancestral que dá espaço à existência, afirmação de identidade e força. Ambos transitam em São Paulo, em cada beco e viela, no centro e na favela.

E Dorothy faz parte da disseminação da cultura marginal. Conhecida por lutar em prol do Hip Hop desde 1989 e por ser uma das primeiras trancistas no movimento a fazer barulho na cidade de São Paulo, ela é citada por artistas que participaram da sua trajetória como patrimônio cultural e por viver intensamente os 5 elementos dessa cultura: DJ, MC, graffiti, breaking e o conhecimento.

“Sou uma vírgula e reticência. Eu sempre quero mais”

“Eu sou a maloqueira mais famosa do País, que ama becos e vielas, gosta de comer comida de favela. Não tem comida gourmet mais gostosa do que você comer a comida de uma cozinheira da favela. Não tem cerveja mais gostosa do que a que você toma vendo um campeonato de várzea. Não tem coisa mais legal do que você ver um maloqueiro doido igual o Criolo vencer” – Dorothy

Dorothy é o vulgo artístico recebido do rapper Thaíde para Doroteia de Souza. Com 47 anos, ela nasceu em Santana, na zona Norte. Ela já viveu em duas realidades que formaram a sua identidade e bagagem de vida. Uma foi em Higienópolis, bairro rico da capital, durante a sua infância e adolescência; e a outra, nas quebradas e no Centro de São Paulo.

Filha de Ana Maria, ativista do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, ela perdeu a mãe em 1988. Então, foi morar com a avó Alice de Souza no trabalho, ainda na infância. Dona Alice foi empregada doméstica por 55 anos na casa de uma família tradicional paulistana.

Por conta do relacionamento que a patroa tinha com a sua avó, lá Dorothy viveu oportunidades que contribuíram para o seu conhecimento, como estudar em escolas particulares e aprender balé e piano. Anos depois, a patroa destinou toda a herança para a sua avó, já que não possuía descendentes. Dona Alice investiu no que achava melhor para a família: os estudos.

“Eu não era bolsista, então a pressão era maior, mas sabia muito bem o meu lugar. Eu sabia que era neta da cozinheira, sobrinha-neta do motorista”, conta Dorothy.

“Meu primeiro amor é a trança e a primeira família que eu construí foi o Hip Hop”

Na cronologia, a trajetória de Dorothy passa ao mesmo tempo pelo o movimento Hip Hop e a arte das tranças nos cabelos. Mas o início de tudo foi numa ida à galeria no Centro de São Paulo com a sua tia, em 1986.

Naquela época, ela já era autodidata e trançava os cabelos de suas tias e de si própria, mas não sabia bem ao certo o que fazia. Dorothy acreditava que estava inventando algo e que aquilo era um dom vindo de seus ancestrais. A partir do contato com a galeria, se apaixonou e viu que aquilo poderia ser uma profissão.

Desde então, ela já assinou capas de revistas, trabalhou em salões renomados e chegou a lugares em que a arte de suas mãos abriu caminhos. Por meio da trança, encontrou uma forma de existir, resistir e criar.

“Já é dentro da escola que te ensinam a ser uma subalterna. Por mais que você tenha estudado, você vai ser a nossa subalterna. E é isso que as minhas tranças e o Hip Hop me trouxeram, de não ser uma subalterna e acreditar no que realmente você gosta”

Arte que faz a cabeça

Aos 20 anos, Dorothy se mudou pro Grajaú e começou a movimentar a cena do Hip Hop da região com toda a bagagem de sua recente formação em Música, adquirida na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e nas vivências pelo Centro de São Paulo. O preconceito de quem não compreendia sua arte também era presente e latente.

“Trançar cabelo no Grajaú era um ato marginal. A sociedade do Grajaú, ao começar a ver eu trançando o cabelo da garotada, chamava a polícia pra mim.”

Na quebrada, conseguiu precificar a trança por um valor menor, já que tinha uma renda fixa no centro. Nesse tempo, criou identidades e levantou autoestima de muita gente, incluindo artistas renomados do Hip Hop, como os rappers Sabotage, Criolo, Rael e Msário, o DJ Kiko e o grafiteiro Niggaz.

A arte das tranças sempre esteve muito ligada à arte das ruas.

Em frente à casa de Dorothy, a molecada fazia fila para trançar os cabelos enquanto ela ouvia Dub (subgênero do Reggae) no trabalho. Ali já estava acontecendo um movimento cultural.

O Sabotage, que morava na região, era um desses meninos. No início, Dorothy conta que o rapper não falava uma palavra enquanto ela o trançava, mas as idas à sua casa acabaram virando um momento para ele se aproximar do conhecimento por meio dos livros, lidos pela sua irmã.

No Grajaú, ela desenvolveu o design nas tranças. E tudo que criava no território, replicava no Centro. Na época, o território era um laboratório de MCs e surgiram diversos nomes na cena vindos do distrito. E para Dorothy, também era um espaço onde ela criava, lapidava e desenvolvia a arte na trança.

Dorothy olhando para o céu. Foto: Vitori Jumapili

“Fechei meu ciclo”

A trança é a fonte de renda para muitas mulheres que procuram sua independência financeira, buscam se encontrar profissionalmente em algo que amam e para deixar a sua marca no mundo. É também sobre a autoestima da mulher e das crianças. Porém, a função ainda não é reconhecida como uma profissão.

“O Sindicato dos Cabeleireiros não aceitava as trancistas. Trança não é um penteado. Não são eles que vão me ensinar minha profissão, sou eu que vou reivindicar o Sindicato e a Associação de trancistas no país”, diz Dorothy, que defende a existência de um CNAE personalizado para trancistas no cadastro como MEI (Microempreendedor Individual). Hoje, para ter os direitos assegurados pela formalização, deve-se colocar como cabeleireires. Confira o abaixo assinado em prol desse reconhecimento aqui.

A arte de trançar sustentou a família de Dorothy e provocou desconfortos positivos na comunidade, além das suas mãos serem sagradas e abençoadas por Deus. Ao responder sobre o legado, ela reforça que todas as meninas do Grajaú que começaram a ter o seu espaço e sua independência a partir da arte. Um exemplo é a presença e o desfile da marca Mile Lab na São Paulo Fashion Week de 2021.

Olhar de Dorothy. Foto: Vitori Jumapili

“A Mile estava com a [trancista] Mestiça, toda a estrutura do Fashion Week estava de trancista. A minha irmã ligou pra mim e disse: ‘Olha isso aqui! [mostrou os bastidores do manifesto “Fluxo Milenar”]’. Eu passei mal de emoção… Um dos produtores disse: ‘faltou você’. E eu respondi: ‘Eu to aí sim, tem um monte de eu aí’”.

Um dos presentes que a trança trouxe para a multiartista foi ver toda a sua família trançada num jantar de aniversário de sua tia. No início, algumas pessoas da família tinham preconceito com a profissão que Dorothy havia escolhido.

“Ir no jantar e ver minha família trançada também foi outro presente. Todos trançaram os cabelos, as velhinhas, as novinhas … Os 80 anos foi da minha tia, mas o presente foi o meu. A minha tia falou: ‘eu tô bonita de trança?’. Ai eu falei: ‘Ah não, isso é aceitação’”, lembra, sorrindo.

“Eu tinha certeza que íamos fazer história!”

“[Em uma conversa com a amiga e rapper Sharylaine] Agora eu posso falar, é oficial, eu sou ‘old school’. Ela começou a rir e falou: ‘Dorothy, o seu sonho era ser igual a você’”.

Dorothy trouxe referências de fora para o movimento Hip Hop, foi articuladora para que artistas tivessem acesso aos bailes e produção musical que faziam a cena na época, contribuiu na moda periférica com a arte de trançar cabelos, ensinou, militou e não virou a estatística que o sistema queria.

Recentemente, o Hip Hop recebeu uma homenagem pelo 50 anos de existência no mundo e Dorothy comenta que o que aconteceu no Viaduto do Chá no último fim de semana (19  e 20 de agosto) foi um sonho de 30 anos atrás – e com destaque à presença das mulheres.

“Antes, éramos 3. Hoje estamos em quantas!? Tem hora que pergunto, mas quanta mulher que é meu Deus! Porque eu sempre fui criada por homens [no movimento Hip Hop].”

Hoje, ela faz parte da Frente Nacional das Mulheres do Hip Hop, onde recentemente foi homenageada pela importância na construção do movimento, e da Frente Parlamentar Cultura Hip Hop Futuro SP. Também participou da construção do decreto para declarar o Hip Hop como patrimônio cultural imaterial no Estado de São Paulo. Autodidata em inglês, alemão e italiano, ela não para: atualmente, estuda Políticas Públicas.

“A riqueza da gente não é carro caro, não é destacar ‘nós tá rico!’. A riqueza é cada vez mais sabedoria, resgatar pessoas e tocar dentro da mente e coração delas”

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1 Comentário

  1. Precisamos honrrar e reconhecer em vida! Maravilhosa em tudo. Diva inspiração 🙌🏾🙏🏽🌻

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