Em busca da perfeição, “irmãs elástico” se apoiam para viver de ginástica na terra de Rebeca Andrade

Em busca da perfeição, “irmãs elástico” se apoiam para viver de ginástica na terra de Rebeca Andrade

Há quase 2 décadas, as guarulhenses Júlia e Juliana Reis expressam audácia em movimentos acrobáticos. Modalidade, que ainda não é olímpica, tem mais dificuldades de conseguir financiamento. Confira no terceiro perfil de atletas da quebrada que publicamos neste ano de Olimpíada!

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Por Marcelo Lino Jr. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano

A sincronia é fundamental para diferentes modalidades da ginástica. Qualquer movimento errado, um passo em falso, pode ser crucial para a pontuação. Fora do tablado, não é diferente. As cobranças e expectativas da família, da equipe, do treinador aumentam a pressão de quem é atleta. Manter o equilíbrio é fundamental para chegar à perfeição.

Júlia (de laranja, à esquerda) e Juliana (de vermelho, à direita), ocupam topo do pódio

Júlia (de laranja, à esquerda) e Juliana (de vermelho, à direita), ocupam topo do pódio

Mas crianças não praticam esporte com segundas intenções, pelo menos no início. É simplesmente a paixão e o vício naquilo que te faz tão bem – e que parece virar parte da gente. As irmãs Júlia e Juliana Reis, respectivamente com 24 e 25 anos, levam a vida nos movimentos da ginástica desde os 5 e 6 anos de idade. Júlia é artista circense e encontrou no circo o jeito de transformar a acrobacia em arte. Juliana é professora de ginástica e atua no Atlético Clube Paulistano, localizado no Jardim América, em São Paulo, onde tenta passar o que aprendeu com mais sabedoria.

“Na época que treinava, eu ‘trabalhava’ muito mais do que eu trabalho como professora hoje em dia”, desabafa Juliana, mas com bom humor. “Eu não curtia muito por causa desse professor que era babacão com a gente. É muito comum gritar com as crianças, brigar, enfim. Todo mundo normaliza muito isso dentro do esporte“, desabafa Júlia, enquanto se lembra das broncas e cobranças de seus antigos professores.

O desenvolvimento teve início no centro de treinamento de ginástica Bonifácio Cardoso, localizado na Vila Tijuco, em Guarulhos (região metropolitana de São Paulo). De responsabilidade da Prefeitura, o equipamento esportivo atrai as crianças para a prática do exercício – inclusive, foi lá que a campeã olímpica Rebeca Andrade também começou.

Assim como a conterrânea que deve representar o Brasil na disputa do pódio da Olimpíada de Paris, as irmãs Jus se destacaram rapidamente nas aulas e chamavam a atenção do corpo técnico.

A conexão entre as duas era a principal virtude: uma desafiava a outra a ir além nas acrobacias, nos malabarismos e na arte dos movimentos – tudo isso enquanto se divertiam.

“Minha mãe sempre queria por a gente pra fazer alguma coisa, né? Ela viu um anúncio para um teste de ginástica no jornal e perguntou se queríamos ir”, conta Juliana. “Aí a gente foi, fez o teste e passou”, completa.

Moradoras do Parque Santos Dumont, as duas atravessavam Guarulhos até o ginásio para encarar uma rotina de treinos mais intensa que a de pessoas adultas.

“Assim que a gente entrou, era uma coisa mais tranquila, íamos 2 ou 3 vezes na semana”, lembra a artista Júlia. Contudo, o que era divertido virou realmente uma espécie de trabalho. As competições e a busca pela perfeição exigida pela ginástica viraram parte do cotidiano.

“A gente treinava todos os dias, das 17h às 22h, isso quando não passava do tempo. Muitas vezes dava 22 e a gente estava lá, sem pausa”, termina a professora Juliana.

Com 7 anos na época, Júlia estava com a irmã na equipe infantil de ginástica artística, mas sucumbiu à pressão e chegou a desistir dos treinos. Afinal, a cobrança não era somente pela a execução dos movimentos, mas pela perfeição.

“Eu não curtia muito por causa desse professor que era babacão com a gente. É muito comum gritar com as crianças, brigar, enfim. Todo mundo normaliza muito isso dentro do esporte, aí chegou um dia que eu não queria mais“, desabafa.

Mas a coordenadora do ginásio, Ana Cecília, achava aquilo “um desperdício” e dizia para a mãe: “traz ela pra acrobática, talvez ela goste”. Em 2008, Júlia voltou, entrou na modalidade com Juliana e ambas se entregaram.

Apoio: Uma na outra

Júlia em apresentação circense (arquivo pessoal)

Júlia em apresentação circense (arquivo pessoal)

Quem já assistiu às competições de ginástica, sabe da plasticidade e beleza dos movimentos executados, que exigem muita força, flexibilidade e paciência. Desde o início das Olimpíadas modernas, em 1896, a ginástica está presente com diversas modalidades e estilos.

A ginástica acrobática não é uma delas.

A modalidade ainda não é olímpica, o que reflete diretamente na realidade das irmãs guarulhenses. Aqui no Brasil, a luta é conseguir disputar campeonatos regionais, já que patrocínios ou apoio de organizações e do próprio poder público são quase nulos.

“A única coisa que a gente tinha era o ginásio, que era de graça. Mas qualquer outra coisa a gente tinha que pagar taxa: de competição, coluna, uniforme, viagem, tudo”, afirma Juliana.

Sem espaço nos Jogos Olímpicos, outros objetivos entraram na mente da dupla, que foi uma das pioneiras em competições internacionais da modalidade.

“Quando chegou 2011, não tinha seleção brasileira, não tinha campeonato. Existia campeonato mundial, mas o Brasil nunca tinha participado, até que falaram que fariam uma seletiva”, relembra Juliana.

A modalidade delas era também realizada em dupla – um menino (base) e uma menina (volante). Então, as irmãs se enfrentaram pelas 2 vagas para o Mundial de 2012, em Orlando (EUA).

“E aí a gente conseguiu! Fomos viajar juntas pro primeiro Mundial”, lembra Juliana. “É como se fosse um show, mesmo. Um espetáculo. É muito legal assistir”, diz Júlia.

Se para quem pratica esportes de alto rendimento a busca por apoios já é difícil, para atletas de base a luta é ainda mais ingrata.

Fora o Ginásio, a Prefeitura de Guarulhos nunca se comprometeu com a viagem da dupla a campeonato algum. “A gente foi no arrasto, fazia apresentações de zumba e vendia ingressos; fazia bingo, vendia rifa, vendia um monte de coisa, fazia a família toda vender chaveiro”, elas riem.

Para chegarem ao Mundial de 2014, em Paris, ou aos jogos Pan-Americanos de Toronto, em 2015, quem “patrocinou” a viagem foi o próprio trabalho das irmãs e da família. Com uma ótica no bairro onde moravam, o casal João Paulo e Eliana de Freitas ajudaram as filhas ao máximo para valorizar o talento das meninas.

Quando não tinham como contar com a ajuda financeira da família, elas se viravam, iam até a avenida Paulista, região central de São Paulo, ou paravam em pontos de ônibus da própria cidade de Guarulhos para fazer suas espetaculares acrobacias e pedir um trocado para juntar na viagem.

“A gente ficava na frente do MASP o domingo inteiro com uma caixa de som fazendo acrobacia. E durante a semana, treinos de 5 horas por dia”, conta Júlia

Com o trampo, elas juntaram dinheiro suficiente para levar toda seleção brasileira de Ginástica Acrobática para a Taça do Mundo, disputada em Lisboa (Portugal), onde passaram 1 semana.

Naquele ano, Juliana já havia entrado na faculdade de Educação Física, em que integrava o time de atletismo, e passou de competidora para professora. Ela ajudava nos treinos de Júlia para a competição.

“Eu tava aprendendo, então mais observava e corrigia algumas coisas. Mas eu sei que no começo eu reproduzia algumas atitudes negativas”, lembra. Para Júlia, por sorte,  “ela era de boa”.

Exageros

Lembra que começamos o texto falando sobre pressão? Na ginástica, são muitos os relatos casos de abusos psicológicos mundialmente conhecidos.

Em 2016, por exemplo, na Olimpíada do Rio, Nile Wilson, ginasta medalhista da delegação britânica, deu uma forte entrevista: “Nós ficamos quietos, fazemos o que eles mandam. Somos nós que ganhamos aquelas medalhas e, ainda assim, somos tratados como pedaços de carnes que recebem o mínimo”.

Mesmo com as dificuldades para se tornar uma atleta no Brasil, os treinadores não deixavam as falhas e os erros passarem batidos.

Juliana no topo de movimento, em apresentação no sambódromo (arquivo pessoal)

Juliana no topo de movimento, em apresentação no sambódromo (arquivo pessoal)

“Chorar no treino era a pior coisa que você podia fazer. E se alguém chegasse pra falar ‘calma, tudo bem’… Nossa, era uma bronca traidora”, lembra Juliana.

Essa cobrança, muitas vezes excessiva, é refletida nas irmãs como algo exagerado, porém não deixou mágoas no coração das atletas. Mas todo o desenrolo deu muita experiência para elas. Hoje, tentam carregar em si o que tiveram de positivo e não repetir padrões negativos.

“Eu passei por muitos técnicos e o que eu sempre tentei fazer é pegar o que aprendi de bom para mim e reproduzir”, diz Juliana.

No circo, Júlia faz o que ama e o que sabe sem a pressão de buscar medalhas e primeiros lugares. “Não tem ninguém aqui te julgando, dando nota, você não vai perder nada”, conta, toda contente. Atualmente, a artista trabalha em vários espetáculos, mas iniciou no Universo Casuo, do ex-palhaço do Cirque du Soleil Marcos Casuo, onde aprendeu nomes e um novo objetivo para as acrobacias.

“Aqui é arte, não é competição. Eu tive que desconstruir esse lugar de ser perfeita porque eu tenho que ganhar. O que importa pra mim é como eu transmito o que eu estou fazendo”, termina.

Sem se preocupar com um corpo ideal, broncas de pessoas adultas e juízes dando notas, as irmãs seguem amando a ginástica.

 “Esporte forma caráter e a pessoa para vida”, diz Júlia. A professora Juliana completa: “Na escola, faz a diferença. Para a disciplina do adulto, faz diferença. Então faz qualquer coisa, se mexe, que vale a pena”.

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