“O boxe me salvou”: Como o encontro da “nobre arte” apresentou novas perspectivas para Caíque Julião

“O boxe me salvou”: Como o encontro da “nobre arte” apresentou novas perspectivas para Caíque Julião

Jovem morador de Guarulhos, pugilista iniciou trajetória nos ringues ainda adolescente, participou de competições e hoje é professor. Confira no primeiro perfil de atletas da quebrada que publicamos neste ano de Olimpíada!

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Por Marcelo Lino Jr. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano

Do Metrô Penha, na zona Leste de São Paulo, até o Jardim Tranquilidade, em Guarulhos, são aproximadamente 12 quilômetros. Mesmo assim, o pugilista Caíque Julião, de 26 anos, se via na indecisão entre pegar um ônibus ou voltar a pé para conseguir comprar um lanche. Afinal, precisava repor as energias gastas no seu treino de boxe, que acontecia em São Caetano do Sul, região do ABC Paulista.

O ano era 2015. Atravessar a Selva de Pedra, treinar pesado e ainda ter que andar 3 horas parecia loucura, “uma burrice”, nas próprias palavras. Mas essa loucura foi repetida algumas vezes, já que a  tal ”burrice” é melhor do que ficar de barriga vazia!

“Era bom que já perdia o peso, já fazia o ‘cardio’. Eu pensava: ‘nunca mais vou fazer isso’. Aí, passava uma semana e eu, com fome, fazia de novo”, lembra Caíque, sorrindo.

Ele completa: “Eu sempre sonhei em ser campeão mundial! Quando a gente começa forte, a gente quer ser o melhor, meu!”

O sacrifício não foi em vão.

Atualmente, pugilista é professor em Guarulhos (foto: Marcelo Lino Jr.)

Até então, Caíque treinava no projeto Boxe na Praça, que acontecia em uma base da Polícia Militar em Guarulhos, mas que foi encerrado.

Mestre Arivaldo Pereira, lenda do pugilismo brasileiro conhecida como “Ari do Boxe”, chegou a Caíque por meio do projeto e o convidou para treinar e competir na AGB – Associação Guarulhense de Boxe.

Com grandes aparições, o então aluno foi chamado para treinos em São Caetano com atletas da Seleção Brasileira, conseguiu uma ajuda para bancá-lo com o dinheiro das passagens e foi treinar!

Atualmente aos 71 anos de idade, Ari do Boxe, presidente da AGB, segue vendo oportunidades para jovens no esporte. Ele lamenta que o projeto Boxe na Praça tenha acabado e sabe da burocracia para fazer algo dessa magnitude acontecer.

“Antes, tinha um Sargento lá da PM que apoiava isso, porque o projeto era pros meninos da comunidade de São Rafael (em Guarulhos). O Carmo (do “Boxe na Praça”) fazia acontecer com sua própria energia, nas folgas, e não contava com muita ajuda. A gente ajudava com o que podia. Mas houve uma troca de comando na corporação e eles tiraram o projeto”, aponta o Mestre – que insiste em chamar jovens para ingressar em sua academia e brilha os olhos quando comenta de seu pupilo: “Lutar está no sangue de Caíque”.

Trajetória vencedora

Por acaso, em 2012 a Marilu Julião, mãe de Caíque, chega um dia em casa com uma ficha de inscrição e um papel com os dizeres: “Treinos de Boxe Gratuitos – Boxe na Praça”.

A folha se referia às aulas da chamada “nobre arte” oferecidas em uma base da PM  na Praça Nossa Senhora. Aparecida, no Jardim Vila Galvão, em Guarulhos. A região é próxima da comunidade São Rafael e outras quebradas da região.

Na mesma hora, sem respirar, o garoto de 13 anos correu direto para o local dos treinos, calçou as luvas e começou a mudança de vida! “Durão” para o futebol, rapidamente Caíque se identificou com a luta e virou um craque do boxe. Sem bola pra chutar, o movimento dos pés ficaram mais fáceis de aprender e a dureza agora é nas mãos, mas para dar socos essa é uma ótima qualidade!

Um dia, ao chegar em casa com o nariz enorme, “parecendo uma laranja”, sua mãe perguntou: “É isso que você quer mesmo?”.  Veio a resposta seca: “É isso, o que eu sei fazer agora é isso”.

Hoje em dia, Caíque sabe fazer mais, já que além de lutador é também professor de Educação Física. Mas, na época, o boxe levou o garoto para competir em Aracaju, Salvador, no Rio de Janeiro e em diversas cidades do Estado de São Paulo.

Foram 128 lutas amadoras (111 vitórias e 17 derrotas) e 2 lutas profissionais (1 vitória e 1 empate). As viagens e experiências fizeram-o conviver com diversos atletas excepcionais e criar memórias inesquecíveis, como o título dos Jogos Abertos de São Paulo em 2017.

Caíque também conseguiu uma bolsa de estudos graças ao boxe: “No primeiro ano que eu fui (para os Jogos Abertos), em 2017, eu fui campeão e me falaram que iam colocar o meu nome pra eu já começar a estudar.”

Quem tinha falado eram os membros da Secretaria do Esporte de Guarulhos. Com toda burocracia veio, em um primeiro momento, a frustração.

“Eles não colocaram. Eu até fiquei meio desanimado com isso, parei um pouco de treinar…”. Mas, no final, a promessa foi cumprida, muito graças ao esforço e insistência do Senhor Ari.

“Em 2018 eu fui representar de novo Guarulhos, fiquei em terceiro lugar e dessa vez me deram a bolsa. Eu comecei a faculdade em 2019 e hoje sou formado em Educação Física”, conta Caíque, cheio de orgulho e aulas para dar. “Hoje eu dou seis, sete, oito aulas seguidas!”.

De família grande, cheio de primos, Caíque ajuda sua família, mãe e irmãs, e cuida de seu bebê Malik, de 1 aninho, com o sustento que ganha nas aulas.

Apesar de todo o amor envolvido,  ter uma família extensa pode trazer traumas e repetição de padrões. Os espelhos, os exemplos que tinha em casa quando mais novo eram os primos mais velhos, que cresceram brincando na rua com Caíque. Nem todos tiveram algum esporte para se dedicar.

“Tive primo meu que foi preso, primo que cresceu comigo e morreu assassinado”.

Antes de pensar em ser campeão mundial, como sonhava no início, ou de se tornar o professor que é hoje, o futuro não chegava a ser uma preocupação, apenas uma incerteza.

“Sem o boxe eu não sei o que seria hoje, nem sei se estaria preso, como o meu primo estava. Nem sei se estaria morto também. O boxe me salvou”.

Rivais e prioridades 

Lembrando dos oponentes antigos, teve um algoz principal. Wanderson “Shuga” Oliveira hoje é bi-campeão dos jogos sul-americanos e enfrentou Caíque 5 vezes, saindo vitorioso em todas. Dando risada, despreocupado e leve, ele conta das derrotas sem qualquer mágoa ou raiva, mas reconhecendo a qualidade do algoz.

“Chegava na semifinal, na final, ele sempre ganhava de mim. Ele foi pra seleção porque ele era melhor do que eu na época (entre 2012 e 2018) e eu acho que ainda continua, né? (risos)”.

Mas o verdadeiro adversário pra quem está no boxe é conseguir apoio. É mais complicado que para atletas do futebol ou do vôlei.

Quem costuma ajudar pugilistas são os próprios treinadores, que nem sempre tem tantas condições financeiras, ou alguns amigos e parceiros. Na realidade, esse é o motivo principal que leva diversos grandes lutadores a largarem cedo suas carreiras.

Malik, filho do lutador (foto: arquivo pessoal)

Em vários momentos, Caíque contou com o apoio de um amigo que o conheceu no começo da sua carreira lá no “Boxe na Praça”. Hoje dono de uma empresa de segurança privada, o ex-PM Luiz Cardoso, o Luizinho, financiou Caíque sem nenhum contrato firmado nem nada do tipo.

Era na base do “preciso desse dinheiro pra comprar uma luva” ou “vou viajar para lutar e preciso pagar as refeições, o hotel… você consegue ajudar?”. Nada de marcas estampando roupas, fazendo publis, patrocínios caros, nikes ou adidas.

Hoje, as prioridades dele são outras. O caminho, então, é deixar um pouco as lutas sem apoio de lado e focar no trabalho como professor e na vida como pai. “Querendo ou não, minha vida mudou muito. E agora eu tenho um filho também, aí eu penso mais nele”, diz.

Sem título mundial, medalha olímpica, diversos cinturões ou milhões na conta, ele já é um vencedor.

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