Reportagem de Thiago Borges. Fotos: Pedro Ariel Salvador. Artes: Rafael Cristiano
A safra de morangos orgânicos vai ser menor este ano. Pelo menos no Sítio Bebedouro, na zona rural paulistana, próximo à represa Guarapiranga. Isso porque a agricultora Rose Duarte, 47 anos (foto abaixo), não conseguiu comprar novas mudas, que são importadas e vendidas em dólar. Somado à inflação, o preço saltou 80%. A alta generalizada também encarece as sementes, cujo pacote de 94 gramas passou de R$ 83 em novembro do ano passado para R$ 119 em maio. Sem falar na gasolina, essencial para buscar insumos e distribuir a produção.
A Periferia em Movimento conversou com Rose e outras pessoas da área para entender como a situação econômica e a crise climática têm impactado a cadeia da agricultura familiar na cidade de São Paulo. A capital paulista tem oficialmente 735 agricultores e agricultoras, segundo a Prefeitura. Mais de 500 desse total se concentram nos distritos de Grajaú, Parelheiros e Marsilac, no Extremo Sul, onde está a maior porção rural do município.
Nos últimos anos, o poder público tem estimulado principalmente a produção de alimentos orgânicos, cujas vendas têm se mantido durante a pandemia. Porém, a carestia pressiona a margem de lucro de quem planta e afeta a produtividade. É o que aponta Valéria Macoratti, dona da Nossa Fazenda (na região do Grajaú) e vice-presidente da Cooperapas, que tem 25 integrantes que produzem e entregam orgânicos de forma contínua, incluindo a Rose.
“A gente trabalha com uma tabela de preços de 2 ou 3 anos atrás”, diz Valéria. A cooperativa faz a venda coletiva da produção. O pé de alface da Cooperapas está tabelado em R$ 2,50; o abacate, R$ 5 o quilo. A dúzia de ovo caipira subiu de R$12 para R$ 15. O reajuste, entretanto, não é suficiente. “Há 2 anos, eu comprava o saco de milho [para alimentar as galinhas] a R$ 30. Hoje, tá R$ 105”, explica Valéria. Ela ressalta que as famílias que produzem alimentos absorveram o aumento nas contas de energia elétrica, no combustível usado em tratores e caminhonetes, além dos custos com manutenção de peças e IPVA, que também ficaram mais caros.
Com a preocupação das pessoas em comer melhor para aumentar a imunidade na pandemia, a procura por orgânicos aumentou, mas faltou assessoria e dinheiro para aproveitar a onda e investir na produção. “Eu mesma tentei acessar [a linha de crédito do Banco do Brasil] e me foi negado. Eles pedem tanto documento que você desiste. Mas quem é do agronegócio, tem todo financiamento pra comprar até trator que nem cabe nossa fazenda [de tão grande que é]”, denuncia Valéria.
Com faturamento mensal de R$ 60 mil, a Cooperapas está recebendo consultoria do Sebrae para se estruturar e enfrentar a crise. “Muitos produtores acabam produzindo menos, e com isso vendem menos, arrecadam menos”, conta ela.
É o caso de Rose, do Sítio Bebedouro. A propriedade tem 27 mil metros quadrados, sendo que 20 mil são de mata preservada. Boa parte do restante, que é disponível para cultivo, está inutilizada. Muito por conta da crise climática, que provocou chuvas além do esperado para o período de dezembro a fevereiro – o que impediu de plantar. “Estamos rezando para não ter uma grande geada”, diz Rose, que além de morangos, cultiva amora preta, hortaliças e plantas alimentícias não convencionais (PANCs).
Já a crise econômica afeta na qualidade de vida. Apesar de conseguir preservar uma margem de lucro de 30%, o poder de compra diminuiu muito. “Uma das coisas da sustentabilidade é que o ciclo se feche, porque se eu não tiver um ciclo que me permita férias e folga, por exemplo, meu filho não vai querer dar continuidade a isso”, explica Rose. “Aqui em Parelheiros, um agricultor que desista do manejo sustentável afeta diretamente a fauna e a flora, prejudicando o abastecimento de água para São Paulo”.
Fabio Abdala, 35, é um exemplo de quem saiu da roça. Por 5 anos, Fabio trabalhou no sítio que o sogro mantém durante toda a vida. A família, inclusive, iniciou a transição para a produção orgânica, que implicaria em reduzir o cultivo de 20 para 5 mil pés no mesmo espaço, além de outros custos de produção. Ano passado, no meio desse processo, Fabio recebeu uma proposta para assumir o sacolão de uma amiga no Recanto Campo Belo, na região de Parelheiros. Era uma ótima oportunidade de negócio.
Hoje, Fabio vende a couve-flor fornecida pelo sogro, que parou a transição para agroecologia; e outras hortaliças cultivadas na região, que têm qualidade melhor que as do Ceagesp. Porém, com uma circulação de 250 pessoas por dia, a produção local não dá conta do que a loja precisa – muito menos, se for de orgânicos. “Se for pra alimentar a população de um bairro, não tem capacidade”, diz ele.
De fato, a distribuição de orgânicos na cidade de São Paulo é um problema histórico. A maioria não consegue vender diretamente, por isso fornece para comércios que revendem os produtos. E boa parte desses estabelecimentos não está nas periferias nem são voltados à população mais pobre. Para otimizar o trabalho, a Cooperapas vende em quantidades maiores para unidades do Sesc, empórios da zona Oeste e restaurantes como o Arturito, da ex-Masterchef Paola Carosela. O Sítio Bebedouro, que também vende pela cooperativa, mantém parceria com um restaurante local e com a Quebrada Orgânica, iniciativa localizada no M’Boi Mirim.
Para democratizar o acesso, há 2 anos e meio Edmundo Pereira Junior, 50, e Sandra Santana Pereira, 48, abriram o Terra Brasilis – empório de orgânicos na avenida Atlântica, importante corredor localizado na região de Interlagos (zona Sul de São Paulo), onde a família vive desde que se mudou do Grajaú. Além do Sítio Bebedouro e da Cooperapas, Edmundo compra do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e de famílias que produzem no interior de São Paulo e Minas.
Para o comerciante, falta fomento do Estado para ampliar a produção, distribuição e principalmente o acesso à informação. “O orgânico, na verdade, é a comida que nossos avós comiam, sem pesticida, plantado no quintal”, diz ele, que acredita que há um mito criado em torno do preço dos alimentos: nem todas as camadas sociais conseguem comprar orgânicos plenamente, mas alguns produtos têm preço equivalente ou estão até mais baratos do que os convencionais. É o caso da banana prata orgânica, que custa em média R$ 7,20 o quilo.
Ainda assim, nos últimos meses caiu o gasto médio de quem compra no Terra Brasilis e, hoje, o negócio tenta manter o faturamento com mais eficiência e maior volume de vendas. Cerca de 80% das vendas são on-line e, dessas, 2 a cada 10 entregas são feitas em bairros periféricos, apesar da proximidade da loja física. “O dia que o cara que anda no ônibus que passa lotado aqui em frente comprar na nossa loja, nós teremos cumprido nosso papel”, diz Edmundo.
Distribuição difícil e tentativa de mudança
A zona rural de São Paulo é sobretudo periférica. Localizadas nas bordas do município, essas plantações são barreiras verdes para o avanço da mancha urbana. E, apesar de um número considerável de iniciativas de agricultura convencional (com uso de pesticidas) ou agroecológicas, a colheita não fica nas quebradas. É o que é possível verificar ao identificar no Sampa+Rural, mapeamento feito pela própria Prefeitura, que os principais pontos de distribuição de orgânicos ficam no centro expandindo.
Vale lembrar que, de acordo com dados de 2018 do Ministério da Saúde, o consumo regular de alimentos in natura é 33% menor entre pessoas negras quando comparadas a pessoas brancas. Na cidade de São Paulo, a população negra representa 37% do total. Esse índice é maior em 42 distritos e chega a 60% no Jardim Ângela (zona Sul), e ultrapassa a metade no Grajaú (56,8%), Parelheiros (56,6%), Lajeado (56,2%), Cidade Tiradentes (56,1%), Itaim Paulista (54,8%), Jardim Helena (54,7%), Capão Redondo (53,9%), Pedreira (52,4%) e Guaianases (51,5%).
Abaixo, os mapas mostram a dispersão territorial do número de unidades agrícolas (convencionais ou agroecológicas), de redes e estabelecimentos que distribuem orgânicos e, por último, a concentração de população negra no município de São Paulo:
Procurada pela Periferia em Movimento, a Prefeitura de São Paulo disse que pretende ampliar o acesso a orgânicos nas periferias com a criação dos Armazéns Solidários – uma rede de mercados populares com produtos diversos (alimentos in natura e processados, itens de higiene e limpeza) até 30% mais baratos. Sem data para implementação, essas lojas seriam voltadas a famílias cadastradas no CadÚnico ou com renda de até 2 salários mínimos.
Questionada sobre o suporte para quem produz, a Prefeitura mantém 2 Casas da Agricultura para prestar assistência técnica agrícola nas zonas Leste e Sul; e também é responsável pelo Ligue os Pontos, programa elaborado na gestão de Fernando Haddad (PT) e executado desde 2018 nas administrações de João Doria, Bruno Covas (ambos do PSDB) e Ricardo Nunes (MDB).
Atualmente, o programa diz que há 514 famílias produzindo entre Grajaú, Parelheiros e Marsilac. E desse total, 150 agricultores e agricultoras passaram a ser atendidos diretamente pelo Ligue os Pontos para melhorar a produção e a cadeia de distribuição. De maio de 2019 até junho de 2021, o número de quem iniciou a transição para a produção orgânica e agroecológica saltou de 41 para 70. O programa também auxiliou na regularização dos negócios: passaram 53 em 2019 para 69 no ano passado.
“A gente sabe que [a pandemia] foi difícil, não só pro produtor rural mas para a população em geral, aonde hoje a gente tem estudado as maneiras de tentar ajudar e reconectar não só os produtores mas toda a sociedade em si”, diz Hermizia Daniela Silveira, assessora técnica da Secretaria Executiva de Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Prefeitura.
A Prefeitura diz ainda que aumentou o atendimento técnico rural, com visitas e assistência nas propriedades. Com isso, o índice de produtividade teria aumentado de 4,3 para 6,3 entre 2019 e 2021 – o programa não especifica os critérios utilizados para essa medição.
Atualmente, o Ligue os Pontos estuda criar uma unidade de beneficiamento para gerar mais valor aos produtos locais, assim como a criação de uma Casa do Ovo para fomentar a produção de ovos e da elaboração de um plano de negócios para o cambuci, fruta nativa da Mata Atlântica e abundante na região.
Retomada da tradição
Para Edmundo, do Terra Brasilis, o caminho para garantir acesso ao orgânico é plantar em qualquer espaço disponível, como terrenos vazios e embaixo de torres de energia. “Isso em nada ameaça meu negócio, porque esse público já não vem até mim hoje (…) Acho que precisaria dessa revolução, do alimento sem agrotóxico produzido para a comunidade”, ressalta.
Valéria, da Cooperapas, tem colado em escolas e outros espaços públicos com a coletiva Orgânicos para Todes para promover oficinas de permacultura, abrir novos canteiros e ampliar o acesso a alimentos saudáveis por quem mora nas periferias. “As pessoas saíram da agricultura, mas a agricultura não saiu delas. Quando você percebe que pode se alimentar sem a imposição do que o mercado coloca, você vê que é livre”, diz ela, que aposta nas PANCs como taioba, ora pro nobis, peixinho e azedinha.
Essa herança da relação com a terra bateu forte na pré-vestibulanda Joellen Santos. A jovem de 21 anos é militante, estudante de um dos cursinhos populares da Uneafro e responsável pela manutenção da horta comunitária do grupo. “É uma coisa que herdei da minha mãe, porque desde sempre minha mãe planta, cuida, tem um envolvimento muito grande com plantas em geral”, diz ela, que até então nunca tinha visto um alface crescer. “Mais do que a gente se alimentar bem, é importante que a gente saiba de que forma que aquilo que a gente produz é cuidado”.
Em 2021, a Uneafro criou hortas nos núcleos de São Bernardo do Campo (no ABC), em Perus (noroeste de São Paulo) e em Poá (na região metropolitana), onde Joellen estuda. Todas as manhãs, ela rega a horta antes das 9h. Em dias quentes, precisa voltar à tarde para aguar de novo, além de adubar a terra, mexer resíduos na composteira e tirar folhas secas. Ao todo, 10 pessoas colaboram na manutenção da horta, que já rendeu alface, alecrim, manjericão, pimenta e berinjela.
A produção ainda é pequena dada a proporção que a fome tem ganhado nos últimos meses – apenas em Poá, a rede tem cerca de 1.200 famílias cadastradas para receber cestas básicas. Porém, o que é colhido já abastece kits orgânicos que são doados a 15 famílias, em média. Agora, Joellen aguarda para a colheita de milho.
Ainda no lado Leste da metrópole, paramos embaixo das linhas de transmissão de energia. Um terreno de 6 mil metros quadrados localizado em São Mateus abriga a horta Sabor da Vitória, cultivada pela agricultora urbana Terezinha dos Santos Matos, 55 (foto ao lado). No espaço, ela tem cenoura, abóbora, beterraba, limão, ervas e todo tipo de hortaliça – por mês, a plantação rende 2 mil pés de alface, couve, escarola, agrião, espinafre, entre outras.
Curiosamente, Terezinha veio para São Paulo para se livrar da enxada. “A gente saiu da Bahia, mas a roça não saiu da gente”, diz. Natural de Ribeira de Pombal (BA), há 26 anos ela e o marido deixaram a terra natal fugindo da seca e das dificuldades na roça. Na capital paulista, Terezinha trabalhou como doméstica, vendedora, gari e teve um petshop. Em 2010, foi convidada a participar de uma associação de agricultura urbana da região e começou a plantar. O que a princípio era para consumo próprio, logo se tornou um ganha-pão.
O começo foi difícil. Ainda hoje, boa parte das vendas continua sendo feita para clientes de classe média alta. “Não gosto nem de falar disso, porque não deveria existir. É muito doloroso dizer que só pode comer orgânico quem tem dinheiro”, diz ela. Há 5 anos, a Prefeitura iniciou uma feira de produtos orgânicos em Itaquera, as vendas de Terezinha aumentaram e seu marido também deixou o emprego fixo para auxiliar na Sabor da Vitória. Porém, há 2 anos, em meio à crescente demanda, ele fez uma cirurgia e precisou parar de trabalhar.
Ficou difícil para Terezinha conseguir contratar e manter mão de obra para ajudá-la. E, diante dos aumentos constantes, ela precisou desacelerar a produção e as entregas distantes. Para escoar os alimentos, há 6 meses a agricultora abriu as portas da horta Sabor da Vitória para a comunidade. É um trabalho de formiguinha, mas que já dá resultado: hoje, 30% das vendas são feitas para quem vive em São Mateus.
“A gente precisa fazer um trabalho para que a pessoa entenda que esse produto não tem veneno, que ele saiba da origem, quem foi que plantou”, diz ela, que garante a volta de quem compra. “O alface da feira vai tá estragado na geladeira no dia seguinte e o meu vai sobreviver por alguns dias. Essa é a diferença: além de consumir produto de qualidade, você tá ajudando o agricultor na sua cidade”.
Thiago Borges, Pedro Salvador, Rafael Cristiano
1 Comentário
Parabéns pela matéria e ótima fotos mano Pedro, me senti lá no quintal. Daora memu!