Dona Lurdes mantém um brechó há mais de 10 no Jardim Rosana, Capão Redondo, zona Sul de São Paulo. E há 05 anos, Vinicius Faustino, que tem 22, frequenta e consome as roupas que ela vende por lá.
“A gente recicla roupa na periferia”, diz o fotógrafo, que escolheu justamente o estabelecimento comercial próximo ao ponto final do busão como tema de uma das fotos vencedoras do Concurso Cultural Pense Grande Sua Quebrada, com o desafio de fotografar iniciativas transformadoras nos bairros periféricos de São Paulo. “Comprar roupa em brechó de periferia também é uma expressão política”, ressalta.
A foto do brechó ilustra a capa desta matéria. A legenda escolhida por Vinicius diz que “a periferia está se reinventando e agora com consciência ambiental e sustentabilidade. Cada vez mais vemos os brechós periféricos se tornando opção principal entre jovens da quebrada”. Será? A partir dessa provocação, a Periferia em Movimento quis entender de fato as percepções de moradoras e moradores de quebradas sobre moda.
Para o educador popular em economia solidária Alex Barcellos, integrante da Agência Solano Trindade, por um lado os brechós são alternativa de renda para muitos trabalhadores e trabalhadoras da quebrada. E, por outro lado, dão acesso a quem não tem possibilidade de comprar em grandes magazines.
Se surgem pela necessidades, em bazares de igreja ou associações de bairro, hoje os brechós nas quebradas também são uma oportunidade de discutir as relações de consumo.
“O quanto é importante conseguir pagar R$ 5 reais numa camiseta, R$ 10 num vestido? Isso tá relacionado à desigualdade da distribuição de renda (…) Você encontra coisa muita boa no brechó porque as pessoas estão deixando as roupas esquecidas nos seus armários, então é importante colocar pra circular”.
Alex Barcellos
Apenas no Brasil, onde a indústria da moda tem mais de 20 mil fábricas e emprega mais de 1 milhão de pessoas, foram produzidas 5,9 bilhões de peças no ano passado segundo o Instituto de Estudos e Marketing Industrial (IEME). Em todo o mundo, o consumo de peças aumentou em 60% nos últimos 15 anos.
Isso tem um impacto gigantesco. A indústria da moda é responsável por 10% de emissão dos gases causadores do efeito estufa, mais do que aviação e transporte marítimo juntos. Consome cerca de 20% da água residual do mundo e libera 500 mil toneladas em microfibras por ano nos oceanos. De acordo com a ONU Meio Ambiente, são desperdiçados US$ 500 bilhões por ano com roupas que são descartadas e vão direto para lixões sem sequer serem recicladas. Mais de 180 mil toneladas vão pro lixo só no Brasil.
USO CONSCIENTE
“Eu e minha mãe comprávamos no brechó por ser mais barato. A consciência que tenho hoje é por conta dos mais jovens começarem a falar dos brechós do Instagram, de que brechó é legal pra caramba”, conta a estudante Dani Vieira, que mora no Parque Alto, Extremo Sul de São Paulo. Dani faz parte do Coletivo Chita, criado por ela, Jessica Paixão, Day e José Ricardo, para discutir moda nas periferias, com oficinas sobre história, costura, customização, entre outras.
“Que auxílio podemos dar pra quem tá começando um brechó? A gente quer construir isso”, explica a produtora Jéssica, que mora no Grajaú e desde criança customiza as próprias roupas. “Ainda tem gente com preconceito com brechó porque diz que é ‘roupa de morto’, mas isso é falta de informação. Brechós estão crescendo porque tem uma onda de consciência. Temos que parar de produzir material e consumir o que já existe. Mercado de troca daqui uns anos vai ser maior do que essas marcas”, completa.
Em um cenário de perda de direitos trabalhistas e previdenciários, com mais pessoas sendo empurradas para a informalidade, Alex Barcellos bota fé que na base da sevirologia a população periférica vai precisar encontrar novos meios de se manter. “Vamos ter aumento de feiras, redes, circuitos. É preciso a gente se conectar ainda mais”, reforça ele. Um exemplo é o Festival Percurso, que em 2018 teve um movimento de R$ 68 mil nas barracas de roupas, acessórios e artesanatos.
De olho nessa tendência, Carlos Alberto Silva se juntou com o irmão e um amigo para fundar a HOTD. A empresa criada em 2017 em Itaquera, zona Leste de São Paulo, aposta no aluguel de roupas. Funciona como a Netflix, só que em vez de assinar para assistir filmes a pessoa paga pelas roupas. “As pessoas só usam com frequência um terço das roupas que tem, os outros dois terços ficam parados. Já aconteceu de você abrir o guarda roupa não ter nada pra vestir, mesmo com ele cheio de roupas?”, questiona.
Ao custo de R$ 59,90 por mês, o usuário tem direito a escolher 12 peças – 03 por semana, que são entregues e retiradas por um motoboy, sem a necessidade de lavar antes da devolução. Hoje, cerca de 100 clientes estão cadastrados e a HOTD tem 1.200 peças no armário, com atendimento em toda a região metropolitana de São Paulo. Com 06 pessoas na equipe, a perspectiva é de crescimento, com mais opções de roupas e mais usuários, expandir para outras metrópoles do País e até para o exterior.
“A gente tem desafio de quebra de paradigma das pessoas, que têm visão da posse da peça. E a gente quer vir com modelo novo, que traz economia, praticidade, comodidade, é mais sustentável”
Carlos Alberto Silva
Uma questão de identidade
Se os brechós atendem a um anseio mais imediato das pessoas, as grifes e marcas que surgem nas quebradas partem de um entendimento individual e do território. Nos anos 1990, o importante era colar com Nike, Adidas e outros logotipos internacionais. Mas busca pela própria identidade fez brotar iniciativas locais.
Da Lab Fantasma (criada pelo rapper Emicida e que hoje desfila na São Paulo Fashion Week), à icônica 1daSul (com a qual o escritor Ferréz disseminou o nome do Capão em camisetas e bonés cidade afora), o que estampa tem a ver com construção histórica de uma quebrada.
“A importância das grifes é se ver, ter uma marca que te represente”, observa Barbara Terra, articuladora da rede de empreendedorismo Nois por Nois, que atua a partir do Extremo Sul de São Paulo. “Quando eu era mais nova, tinha que comprar determinadas roupas pra me encaixar em determinados grupos e ser validada. A presença dessas marcas mostra muito a pluralidade do território”.
Gabi Bazílio se inspira na cultura afrobrasileira para criar as peças da Mocamba Ateliê. Sem pretensão de viver da moda, quando criança ela fazia roupas de boneca, cortava camiseta da escola e agora revive as práticas das avós materna e paterna, que sempre costuraram.
Tudo começou em 2016 na festa de Halloween da empresa de telemarketing em que ela trabalhava. Gabi decidiu que criaria a própria fantasia. Numa visita à loja, conheceu uma vendedora que falou a ela do curso “Despertando o Empreendedor”, da escola Empreende Aí. Durante a formação, Gabi se deparou com os tecidos africanos vendidos por imigrantes no Centro de São Paulo.
“Os tecidos africanos contam uma história perdida. Enxerguei isso neles, essa memória que é perdida, distante, porque tem um mar no meio”
Gabi Bazílio
As coisas foram acontecendo. Em 2017, comprou sua primeira máquina, participou de feiras com Nois por Nois e participou de um curso de modelagem na organização SBA Girassol, no Grajaú. Reformou dois cômodos na casa do avô e transformou em seu espaço de produção. Seu trabalho é lento e sob medida. Recentemente, começou a customizar em cima de peças de brechó ou de pessoas trazidas pelos próprios clientes.
As roupas da Mocamba não têm gênero definido. Os principais clientes são da cena artística da quebrada. Nem todo mundo tá acostumado a pagar mais caro por uma peça livre de exploração do trabalho e impacto ambiental. “A valorização do trabalho ainda é meio estranha. A gente pensa no preço final sem olhar o que tá por trás daquilo”, observa Gabi, que quer ampliar sua capacidade de produção.
Na mesma região, Milena Lima dá vida à Mile Lab, uma marca inspirada nela própria e no território. Depois de fazer um curso de corte e costura, ela começou a desenvolver alguns produtos até que foi chamada para um evento de moda promovido em 2017 pelo Projeto Possibilidades. “Era muito novinha, não entendia muito de como desenvolver e não demorou muito pra eu quebrar, apesar da visibilidade, de estar sempre em festas”, diz ela, que atualmente tem 21 anos.
Foram 02 anos com a marca parada. Neste período, Milena trampou da ponte pra lá e teve um contato mais próximo com os processos da indústria da moda. “Lá fora, você vai atrás do conceito, estrutura métodos para entender, enquanto aqui é muito orgânico”, conta.
Em julho deste ano, a Mile Lab renasceu. Pra marcar esse momento, Milena apresenta a coleção Marginal. Com moletons, camisetas, camisas, ela destaca a paleta de cores que enxerga todos os dias no Grajaú: laranja dos tijolos de casas inacabadas, o verde da vegetação e da represa Billings, o marrom da terra. “Pra marca Mile se manter em questão de identidade, ela busca compreender questão sociocultural do espaço”, explica Milena.
Atualmente, o público da Mile Lab é formado por poetas, músicos e artistas plásticos. Milena consegue viver com o trabalho na moda, mas acumula todas as funções – da criação e confecção até a compra de materiais, marketing, venda e entrega dos produtos. Além de ter mais gente trampando com ela, para o futuro pensa em cursos e oficinas sobre o assunto e, a longo prazo, criar uma escola técnica na região.
“A ideia é trazer formação profissional na área por meio de perspectiva periférica, ter esse potencial de profissionalizar na moda a partir da periferia”, conclui.
Este conteúdo faz parte do projeto #PenseGrandeSuaQuebrada , um esforço coletivo do Programa Pense Grande, iniciativa da Fundação Telefônica Brasil, em parceria com o Alma Preta, Desenrola E Não Me Enrola, Periferia em Movimento, Historiorama e Agência Mural com o objetivo de democratizar a linguagem e o acesso das juventudes periféricas ao ecossistema de #EmpreendedorismoSocial.
Thiago Borges
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