Na favela Sucupira, Dona Joana luta para manter moradias e evitar que crianças caiam no córrego
Missionária evangélica é reconhecida por liderar uma das comunidades mais antigas do Grajaú, Extremo Sul de São Paulo
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Tempo de leitura: 7minutos
Por Samara Almeida. Edição: Thiago Borges. Fotos: Vitori Jumapili
Ela bate de porta em porta, encara o poder público solicitando melhorias e também elabora projetos pensando em formas de segurar a mão de quem perdeu a esperança.
Na comunidade Sucupira, uma das favelas mais antigas do Grajaú, Extremo Sul de São Paulo, basta procurar por ajuda para alguém indicar um caminho: é na casa de Joana Rocha.
Aos 57 anos, Dona Joana é a liderança da associação local e referência para quem mais precisa.
“Mesmo quando eu paro um pouco, se alguém bate na minha porta com fome, eu vou lá na panela e separo uma marmita. Porque comida não deveria faltar pra ninguém. Assim como a água é essencial, a comida também é. E ajudar não tem cor, não tem classe, não tem gênero. É nossa obrigação como ser humano”, diz Dona Joana.
Este é o segundo perfil de líderes comunitárias periféricas produzido em celebração ao Mês da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha.
Luta na vizinhança
A história de Dona Joana se confunde com a da Sucupira e se formou lá atrás.
Nascida em Itabuna, no interior da Bahia e onde morou até o início da adolescência, ela veio para São Paulo em 20 de agosto de 1990, onde precisou cuidar sozinha da filha.
Foi na luta entre a Pastoral da Criança e a própria vizinhança que aprendeu o valor de caminhar junto.
Moradora da favela há 35 anos, fundou a Associação Comunitária em 2008 para atender de perto as 1.500 famílias que vivem na comunidade e que mais precisam sem depender de favores de fora.
No início, muitas pessoas duvidavam que ela sendo uma mulher negra poderia liderar a associação.
“No começo diziam: ‘Ah, se fosse um homem, a associação estaria melhor’. Mas cadê a iniciativa? E se não fosse eu pra tomar a frente?” questiona.
Não é de hoje que Dona Joana aprendeu a dar a cara pra bater.
Em 2010, quando a comunidade correu o risco de ser removida para virar um parque, ela reuniu um abaixo-assinado, foi pra Defensoria Pública e mostrou documento por documento para provar que ali não era só uma “ocupação”, mas uma vizinhança viva, com gente que luta por espaço.
A fé, diz ela, dá forças para continuar. “Eu acho que nasci com esse dom de fazer o bem. Meu descanso é ver o sorriso de uma criança, de uma família feliz.”
Hoje, além de lutar por melhorias básicas como a canalização do córrego Cocaia, ela se vira entre burocracias, pedidos de cestas básicas, fraldas, cadeiras de rodas e o projeto alimentício que toda terça-feira alimenta de 150 a 200 pessoas em situação de rua.
Tudo sem ajuda fixa de custo, como ela mesma gosta de lembrar: “Nós trabalhamos nós por nós”.
Conquistas
Onde antes tinha um campo de terra, hoje existe uma quadra nova, inaugurada em abril de 2023, para as crias do Sucupira jogarem bola sem cair na lama.
Onde havia ponte de madeira caindo aos pedaços, hoje passa carro sem medo de alagar. “Já vi criança cair no rio porque a ponte era estreita e podre. Foi uma luta arrumar aquilo” lembra.
Ao lado dela, o filho Gilmar Smith virou braço direito na coleta de abaixo-assinado, nas negociações com parlamentares e em reuniões que começam de dia e acabam de madrugada. Foi assim que ela conquistou parcerias.
Esse compromisso coletivo é o que faz a Sucupira seguir em frente, mesmo quando a falta de recursos aperta. Apoio fixo de verba não existe, mas não faltam rede de apoio e disposição.
“Tenho minha voluntária Eliane, que vai buscar as marmitas, carrega doações, faz tudo comigo. Meus filhos, minhas noras, meus netos, na hora de fazer festa, todo mundo vira a noite comigo embalando doce, cortando bolo de 50 quilos no Dia das Crianças. Apoio financeiro é pouco, mas mão de obra eu tenho graças a Deus.”
O momento de pausa
Nesses 16 anos de associação, há um pedaço da história de Dona Joana que fala alto sobre a realidade de quem é referência para todo um território.
“Teve uma época que eu tive realmente que largar tudo porque meu marido ficou desempregado. Eu tive que trabalhar [fora] pra manter a minha casa. Para mim, isso foi muito triste porque toda vez que eu chegava naquela cozinha, aquilo me cortava o coração. Eu lembrava da comunidade, lembrava das crianças. Mas era isso ou a gente não comia”, conta.
Foram anos dedicados a trabalhar fora, cozinhando para centenas de crianças de outra instituição. E cada marmita descartada por obrigação de lei era uma ferida aberta.
Mesmo assim, não se permitiu esquecer de quem precisava dela. Foi assim que, logo depois de deixar esse trabalho, reabriu a associação e retomou as ações.
Amor próprio
Nesse corre, a dona Joana também aprendeu, com o tempo, a se cuidar, entendendo a importância de estar bem para fazer o seu melhor.
“Antes eu ficava estressada, corria o dia inteiro, não comia, tremia de cansaço. Hoje não. Eu cuido de mim, do meu cabelo, da minha unha. Eu tenho que me amar primeiro. Se eu não me amar, como vou amar o próximo?”.
Mesmo como missionária evangélica da igreja Assembleia de Deus, ela separa o trabalho religioso do social.
“Na igreja, sigo as leis da Bíblia. Na associação, atendo todo mundo, sem olhar religião, cor, nada. O estatuto não tem raça, não tem corpo, não tem sexo. Se eu fosse misturar, não dava pra fazer muitas ações na comunidade, como a festa junina”, explica.
No fim das contas, Dona Joana sabe que a associação não é só um CNPJ: é o reflexo da força coletiva de quem acredita que a favela também é lugar de esperança.