Reportagem de Pedro Ariel Salvador. Edição: Thiago Borges
Texto originalmente publicado no UOL Universa, por meio do Selo Plural. Foto em destaque: Zô Guimarães/UOL
No último 28 de junho, dia do Orgulho LGBTQIA+, a manicure Ivoni Campos, 44, passou por um dos momentos mais emocionantes de sua vida ao comparecer no campus da Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos, zona Norte do Rio de Janeiro: ela participou da cerimônia de requalificação civil de seu filho Demétrio Campos, homem trans, que teve o nome corrigido na certidão de nascimento. Com o documento em mãos, no entanto, faltou o mais importante na celebração: a presença física de seu primogênito.
Demétrio se suicidou em 17 de maio de 2020. Para a comunidade trans, na verdade, ele foi suicidado, termo utilizado para se referir a situações em que a discriminação social, a transfobia ou homofobia, se tornam fatores que estimulam o ato de suicídio. Desde então, Ivoni transformou a dor da perda em força para ajudar outras pessoas como o filho. Em outras palavras, como costuma dizer a comunidade trans, se tornou uma “cis aliada” – pessoas cisgênero que se engajam na luta da população trans.
Depois que Demétrio faleceu ela assumiu as redes sociais do filho com o intuito de manter sua memória viva. Aos poucos, suas publicações e lives chamaram a atenção de mais pessoas trans, que a procuravam para pedir conselhos, ajuda ou mesmo conversar.
“As pessoas me procuram pelo WhatsApp, pela DM do Instagram do Demétrio, às vezes por questões de moradia, cesta básica, depressão. […] Há uns três meses atrás, eu encaminhei um menino para Casa Nem, no Rio de Janeiro, que a família dele era religiosa e tinha botado ele para fora de casa. Tinha um mês que esse menino estava na rua”, conta.
Assim que soube da situação do garoto, Ivoni solicitou o serviço de assistência social da Prefeitura, que prevê atendimento em até 15 dias úteis. Mas diante da urgência, Ivoni diz que precisou ameaçar um escândalo para conseguir um veículo que pudesse transportar o jovem do local onde ele estava em situação de rua até a casa da ONG que iria acolhê-lo. E conseguiu.
“Tem coisas que eu sou obrigada a tomar esse tipo de atitude porque as pessoas cis não se movimentam. Se elas não se movimentam nem pra ajudar outra pessoa cis, preta, pobre e periférica passando fome na cidade, você imagina com um homem trans, uma travesti preta, que não consideram nem como pessoas” – Ivoni Campos, ativista
Os pedidos de ajuda chegam de todos os lugares do país. Ivoni recorda de uma ligação que recebeu certa vez de “um menino do Nordeste” que já havia retificado seu nome e retirado as mamas, mas que a mãe ainda não o chamava pelo nome retificado, apenas pelo “nome morto”, como a comunidade considera o nome registrado no nascimento.
Ivoni ligou para a mãe do rapaz e teve uma longa conversa com ela. “A mulher chorou, chorou, chorou e eu falei pra ela: ‘olha só, se você não amar o seu filho, se você não cuidar dele, se você não respeitar ele, o mundo lá fora vai matar ele’”, lembra.
“Fui até um pouco drástica com ela, mas eu tive que falar. Falei para ela: ‘o meu filho se matou e não foi por causa da família dele. Foi por causa da sociedade. Eles (a sociedade) são ruins. Quando você deixa de acolher dentro do seu lar, você está jogando ao Deus dará, à própria sorte’. Até hoje, ela é minha amiga. E o rapaz me liga, eu pergunto da mãe e ela agora o respeita”.
Acolhimento: de casa para o mundo
Nascida e criada no quilombo Maria Romana, em Cabo Frio, Ivoni sempre buscou transmitir a Demétrio e aos outros dois filhos (Letícia, 22, e Lukas, 13) o espírito de empatia. “Eu não consigo ver uma situação e não fazer nada”, conta. Particularmente, a relação com Demétrio dentro de casa sempre foi boa e foi se modificando com o passar do tempo.
“Desde que Demétrio nasceu, era diferente. Vou falar a verdade: é muito difícil para uma mãe lidar com a realidade dentro do processo de transição. Para todas as mães é difícil. Não vem falar que não é, porque é. Mas quando eu vi Demétrio, com seus 15 ou 16 anos de idade, sofrendo… Eu tomei a atitude de ajudar ele”, conta.
No vídeo “Trans, negro e periférico”, de 2019, Demétrio conta sobre alguns dos problemas que tinha que enfrentar na juventude: “eu passei de uma mina assediada para um cara oprimido. [… ] A galera assediava, olhava de outra forma. E hoje, eu sou olhado como um cara que vai assaltar, agredir”.
Preto retinto, então com 22 anos, Demétrio vivia entre as periferias de São Paulo e Cabo Frio, onde a família mora até hoje. A mãe também enfatiza que ele precisou lidar com diferentes opressões que pioravam sua depressão.
“Os homens trans pretos retintos são os que mais sofrem. Eles sofrem antes da transição, sendo sapatão. E depois da transição, eles apanham da polícia, são desrespeitados dentro de locais públicos, de locais privados, no ambiente de trabalho. Então, é como se alguém te esfaqueasse várias vezes, todo dia um cortezinho. Foi exatamente o que aconteceu com o meu filho”, diz.
No ano em que Demétrio morreu, o primeiro da pandemia de coronavírus, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) registrou 23 casos de suicídio, sendo sete de homens trans e transmasculinos. Uma pesquisa mais antiga, feita em 2015 pelo projeto Transexualidades e Saúde Pública no Brasil, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e o Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, revelou que 85,7% dos homens trans já pensaram em cometer suicídio.
“Foram seis anos com meu filho lutando contra a depressão”, diz Ivoni. “Eu fui em São Paulo buscar Demétrio na pandemia, em 2020, na penúltima tentativa de suicídio dele. Quanto à depressão, é um tratamento constante. A depressão é uma doença que vai assolar o mundo”, lamenta.
Mãe de menino
Ivoni diz que demorou para acordar para a situação, mas quando ocorreu passou a defender o filho em diferentes situações. “Uma vez, eu levei Demétrio numa consulta em Macaé (RJ) e tinha um negócio que você tinha que botar o rosto na câmera para tirar foto. E a identidade do Demétrio estava diferente, porque isso vai mudando quando você começa a tomar hormônio. E a mulher [atendente] começou a chamar o Demétrio de ‘ela’. Olha, mas deu um brigueiro”.
Para Ivoni, todo profissional da saúde deveria, uma vez por ano, passar por um curso de reciclagem, aprender como tratar as pessoas e a ter empatia. “Eu já cheguei com Demétrio por tentativa de suicídio no pronto socorro, pro médico falar ‘é frescura, é fogo no rabo’. Isso não é uma maneira humanizada de tratar uma pessoa”, conta.
Desde 31 de março deste ano, uma nota técnica da Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro instituiu o direito ao uso e tratamento pelo nome social de pessoas trans em todas as unidades estaduais, além de prever capacitação de gestores e equipes de saúde do estado e dos municípios.
A solidão e a alegria da militância
Hoje, Ivoni é articulada com diversas entidades LGBTQIA+, como a Antra, a Casa João Nery, a Casa CHAMA, a Casa 1 (todas em São Paulo), a Casa Nem e a Frente LGBT do Rio de Janeiro. Ela também é a única mulher cis associada ao IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades), que atua em todos os estados do país e é formado por homens trans e pessoas não binárias.
Em Cabo Frio, o Ambulatório Municipal de Atenção à Saúde de Travestis e Transexuais recebeu o nome de seu filho graças à luta que ela empenhou. Futuramente, Ivoni pretende cursar uma faculdade de Psicopedagogia e abrir um espaço de acolhimento e atendimento psicológico e psiquiátrico para pessoas LGBTQIA+.
Porém, ela enfatiza que a militância também pesa. “Antes, quando eu não era aliada declarada nas redes sociais, as pessoas falavam comigo, conversavam comigo, me chamavam para festinha, para rolê. Hoje, eu vivo totalmente isolada. (…) Tem gente até que foge de mim”, diz.
Ao mesmo tempo, Ivoni tem procurado espaços para se fortalecer. Recentemente, ela participou de um processo chamado Roda Terapêutica das Pretas, em que aprendeu a se valorizar como mulher preta e quilombola e a controlar a ansiedade.
“Quando eu vejo um rosto preto com um sorriso, uma gengiva preta, é ali que eu vejo meu filho. Quando eu vejo um homem preto, trans, periférico, rindo e sorrindo, é ali que eu vejo o rosto do meu filho”, conta.
Ivoni Campos fez a retificacao pós mortem do nome do filho trans que se suicidou esse ano. (Foto: Zo Guimaraes/UOL)
