Por Thiago Borges
*Matéria atualizada na manhã e na tarde de 24/3/21 para incluir novas informações
Dia 31 de março de 2021. Na tarde daquela quarta-feira, mais de 140 famílias foram surpreendidas por funcionários públicos e guardas civis metropolitanos da Prefeitura de São Paulo, que chegaram para remover pessoas que ocupavam um terreno público em Cidade Tiradentes (Extremo Leste da capital). A ocupação, que começou com apenas 40 famílias de uma área pública, cresceu rapidamente nos 8 dias em que existiu. Moradores relatam que, além da remoção, também houve destruição de pertences e confisco de tábuas e telhas.
A agilidade entre a ocupação e o despejo pode ser justificada por um prática que tem se tornado mais comum no último ano: as “remoções administrativas”, que acontecem quando o poder público ou agentes privados retiram moradores de determinada área sem necessariamente ter uma ordem judicial para isso.
“São despejos, a nosso ver, ilegais. Muitas vezes usam o argumento do poder de polícia, como se o poder de polícia estivesse acima de direitos básicos das pessoas”, observa Irene Maestro, integrante do movimento Luta Popular, que articula e acompanha algumas ocupações por moradia.
“A ilegalidade e a violência são uma regra quando se trata do povo pobre e trabalhador. A gente tem um histórico muito grande de proteção da propriedade privada de latifundiários urbanos e rurais”
Irene Maestro, Luta Popular
Esse tipo de violação deve finalmente cessar. Na última sexta-feira (16/4), representantes participaram de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para denunciar a situação, barrar as remoções e pautar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os casos. Na tarde de quinta (22/4), o projeto de lei 146 de 2020 foi finalmente aprovado pela Alesp após ficar 1 ano em tramitação.
De autoria da deputada estadual Leci Brandão (PC do B) e coautoria de Jorge do Carmo e Maurici (ambos do PT), o projeto de lei proíbe qualquer tipo de despejo enquanto vigorar a pandemia. O texto aguarda ainda votação de destaques antes de seguir para sanção do governador João Doria.
Em todo Brasil, 9.155 famílias foram removidas de suas casas entre março de 2020 e fevereiro de 2021, segundo dados coletados pela campanha Despejo Zero. Mais 65.546 estão ameaçadas de ficarem sem teto no País.
As violações
Apenas em 2020, foram ao menos 630 famílias removidas “administrativamente” na região metropolitana de São Paulo, de acordo com levantamento consolidado pelo Observatório de Remoções do Laboratório de Justiça Territorial da Universidade Federal do ABC (Labjuta/UFABC).
Dos 17 casos de remoção, em 5 deles as ocupações foram totalmente despejadas: no terreno da Vitacon (centro de São Paulo) e no entorno do Parque da Aclimação, também na capital; na Terra da Liberdade (em Cajamar); e na ocupação Padre Leo Comissari e na área do DER (ambas em São Bernardo do Campo).
Em outras 12, as remoções foram parciais: no Acampamento dos Engenheiros, na Vila São Pedro, na rua dos Vianas e no Jardim Regina (todas em São Bernardo do Campo); na rua Flora Jaguaribe (em Osasco); no Jardim Aeroporto (Mogi das Cruzes); nos Campos Elíseos, no Parque Sapopemba, no Morro da Formiga e no Morro Pulman (na cidade de São Paulo).
Além disso, entre 2020 e 2021 outras 350 famílias sofreram tentativas de despejos, que conseguiram ser impedidos por moradores e redes de apoio. Esses casos aconteceram no Bananal e no Jardim Regina (em São Bernardo do Campo), na Favela da 22 (em Ribeirão Pires) e contra mais de 300 famílias que vivem no Buracanã, uma área da Universidade de São Paulo na zona oeste da capital.
O levantamento foi feito a partir de denúncias de movimentos e moradores, mas o número deve ser muito maior uma vez que há o desafio de identificar e mapear os casos, já que não têm ordem judicial e contam com pouca visibilidade.
O Observatório de Remoções nota que isso não é necessariamente uma prática nova e já registrou casos do tipo motivados por obras públicas e implementação de infraestrutura. Por outro lado, há um aumento desse tipo de remoção durante a pandemia de coronavírus, justamente quando a população está mais “vulnerável” e “ficar em casa” é uma das principais recomendações para evitar o contágio.
“Isso é mais uma expressão da política de morte que o Estado tem para com os mais pobres: seja morrer de fome, seja morrer de coronavírus, seja morrer de bala”, ressalta Irene, do Luta Popular.
Vazio de direitos
Com pouca visibilidade, essas remoções tendem a ser mais violentas e as Prefeituras não garantem atendimento ou assistência. A falta de segurança jurídica também tira a possibilidade de articulação para a defesa dos moradores, além da prática não permitir o diálogo e a participação, sendo que em vários casos sequer houve notificação. A remoção é viabilizada por meio de pressão psicológica sobre os moradores.
É o que aconteceu com a Terra da Liberdade, em Cajamar. A ocupação de um terreno privado que estava abandonado há mais de 20 anos durou apenas 3 dias. Mais de 200 famílias foram colocadas na rua. “Eles mandaram todo o operativo da guarda civil, com canil, com armas letais, armas não letais, numa situação muito difícil da gente conseguir inclusive se organizar pra sair”, diz Irene.
“São famílias fugindo do aluguel extremamente caro, da falta de emprego, da falta de de uma renda mínima”, observa Vanessa Mendonça, integrante do Luta Popular que acompanhava a ocupação. Algumas pessoas conseguiram se abrigar em casas de parentes, enquanto outras não tiveram mais contato com o movimento. Muitas delas foram parar nos Queixadas, ocupação existente há 1 ano e 9 meses na divisa de Cajamar com Perus, distrito na zona Noroeste da capital.
“A gente sempre fala que as pessoas não vão morar debaixo de uma lona porque não têm o que fazer. As pessoas vão morar debaixo de uma lona, sem água, sem energia, sem nenhum tipo de estrutura, porque elas precisam, porque elas necessitam”, encerra Vanessa, que defende o uso de imóveis abandonados para a política habitacional.
Outro lado
A Periferia em Movimento entrou em contato com as prefeituras de São Paulo, São Bernardo do Campo, Ribeirão Pires, Cajamar, Osasco e Mogi das Cruzes.
A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) da capital limitou-se a responder que a pasta “não realiza remoções administrativas. No entanto para essas famílias oferta o cadastro nos programas habitacionais do município respeitando a fila já existente”.
A assessoria de imprensa da Prefeitura de Cajamar confirma que havia 80 barracos na ocupação batizada como Terra da Liberdade e que o movimento Luta Popular foi notificado em 14 de novembro de 2020 para desmontar as construções. A administração aponta que “a ação foi realizada dentro das normas legais, sem qualquer excesso ou uso de forças, conforme corroboram testemunhas, vizinhos e a própria imprensa que acompanhou a ação”, que os todos saíram espontaneamente em seus carros particulares e não necessitaram de atendimento. Além disso, o município justifica a remoção sem ordem judicial alegando “que à sombra do Princípio da Supremacia do Interesse Público, encontra-se o poder de polícia da administração pública, que tem por objetivo rechaçar qualquer ameaça à ordem pública, ao meio ambiente e à ordem urbanística”.
Já a assessoria da Prefeitura de Mogi das Cruzes informa que “os desfazimentos de estruturas realizados em 11/03 no Jardim Aeroporto III foram feitos em imóveis ainda em construção” em área de proteção permanente (portanto, sem autorização para edificação), sem que quaisquer famílias fossem despejadas uma vez que as construção estavam inacabadas. Também informa que o secretário de Assuntos Jurídicos e Habitação, Sylvio Alkimin, acompanhou toda a ação in loco, atendeu todas as pessoas no local e se reuniu representantes. Diz ainda que novas ocupações impedem ações de regularização fundiária na área, que devem beneficiar 1.000 famílias.
E a assessoria da Prefeitura de Ribeirão Pires informa que “não houve qualquer ação desta administração em relação à reintegração de posse, pois trata-se de área particular”.
A Prefeitura de Osasco responde que recebeu denúncia de invasão em área pública e uma equipe enviada ao local constatou 10 moradias ainda em construção, sem pessoas habitando o espaço. “Por se tratar de invasão de área pública, foi realizada a demolição. Não houve remoção de famílias porque não havia ninguém morando no local”, diz a nota, assim como a não necessidade de atendimento social. Da mesma forma, a remoção não necessitou de ordem judicial, segundo a Prefeitura.
A reportagem será atualizada assim que obtiver um retorno da Prefeitura de São Bernardo do Campo, que até o momento não enviou resposta.
Thiago Borges
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