Texto e fotos por Paula Sant’Ana. Edição: Thiago Borges
Não foi em vão a luta para preservar a memória e o legado de Carolina Maria de Jesus em uma periferia de São Paulo. Na última quinta-feira (28/7), uma estátua de bronze em homenagem à escritora mineira foi inaugurada na praça Julio Cesar Campos, no centro de Parelheiros, distrito do Extremo Sul paulistano.
O local escolhido era uma reivindicação de familiares e coletivos de cultura da região, que desde o começo do ano se mobilizam para garantir que o monumento da autora de “Quarto de Despejo” estivesse na “sala de visitas” da região.
“A Praça de Parelheiros representa a Carolina. Quando chego aqui em Parelheiros, olho a farmácia Queiroz. A minha mãe, quando tinha dinheiro ela comprava remédio; quando não tinha, o Queiroz falava ‘pode levar’. Aqui antigamente tinha cinema mudo, mas a gente vinha ao cinema mudo e na época da semana santa passavam-se muitos filmes de Jesus Cristo, minha mãe não perdia. A gente vinha a pé lá do Florestal até aqui e ficava aqui na igreja assistindo aos filmes…”, lembra a professora Vera Eunice, filha de Carolina.
Inaugurada como parte das celebrações do Dia Internacional da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha, cuja data é 25 de julho, a estátua fechou uma série de 5 homenagens a personalidades negras organizada pelo Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) da Prefeitura de São Paulo.
Em dezembro de 2021, a do cantor e compositor Itamar Assumpção, no Centro Cultural da Penha. No mês abril, mais duas foram inauguradas: a da sambista e ativista Madrinha Eunice, na Praça da Liberdade, no dia 02; e a do também sambista e militante Geraldo Filme na Praça David Raw, no dia 21. Em 15 de maio, foi a vez de homenagear o atleta olímpico Adhemar Ferreira da Silva, com sua estátua na Avenida Braz Leme.
Essa maior exigência por representatividade em monumentos públicos se intensificou em julho do ano passado, quando um grupo de manifestantes ateou fogo na estátua de Borba Gato, bandeirante paulista que fez seu nome devido à escravização de povos indígenas e perseguição a quilombos nos séculos 17 e 18.
A inauguração
O evento teve início por volta das 10h, contou com a presença de figuras públicas envolvidas no processo de concretizar o tributo, além de pessoas que vivem de Parelheiros e demais periferias, coletivos do bairro e de quem segue e admira o trabalho da escritora.
Vera também destacou a importância dos coletivos para que o monumento fosse colocado na praça Júlio César de Campos, já que a ideia inicial da SMC era colocar a escultura no Parque Linear do bairro.
“Agradeço a Parelheiros, agradeço aos coletivos, aos professores, o prefeito. É uma infinidade de pessoas que vou ter que agradecer. Os políticos todos entraram na luta. Então gente, só o que tenho é agradecer a escultura, a estátua estar aqui em Parelheiros. Hoje é um momento muito feliz pra mim porque acompanhei e adorei a escultura.”
Para Lucimeire Juventino e Keila Pereira, do Comitê Carolina na Sala de Visitas, o respeito ao local reivindicado é uma vitória. “A inauguração da escultura no local que defendemos e conquistamos respeita não apenas a memória pessoal de Carolina, representada pela Vera Eunice, mas também a grandeza dessa escritora que sempre mereceu um lugar de destaque materialmente”, relatam.
“A importância de trazer para a periferia é exatamente fazer com que o centro vire onde a periferia está. Não seja o periférico mais, embora geograficamente, sim, mas não socialmente. Então acho que o monumento valoriza o espaço, a cultura valoriza o espaço e, por sua vez, a periferia deixa de ser pejorativa”, explica Néia Ferreira, artista responsável pela obra. A estátua de bronze possui os pés sem sapatos e Néia explica o motivo dessa escolha.
“Pensam alguns que os pés desnudos de calçados da escultura de Carolina Maria de Jesus como um inconveniente. Venho por meio dessas palavras escrutinar um pouco as ideias. Etnias africanas vestiam-se, ornavam-se inspirados no seu clima, na sua geografia e materialidades primevas ligadas às suas religiosidades. Constituindo, assim, para cada etnia suas características. Quando sequestrados, violados e escravizados, perderam essas origens? Não. As mantém no inconsciente, onde a qualquer instante elas são deflagradas. Calçaram-se. Foi um ato imitativo sob a influência da colonização, mas também sob a imposição dos seus violentadores para não calçarem-se. Dessa forma, acreditava-se manter os povos africanos subordinados e inferiorizados. Essa imposição é que é desqualificada, inferior e indigna, os pés descalços, não. Os pés descalços são simbólicos. Gera fragilidade e desamparo, mas não indignidade. Sinaliza simplicidade, rito e conexão.”
Após o momento de solenidades, a obra foi revelada para o público presente. Na sequência, o Slam das Minas SP ministrou uma série de batalhas de rima no palco, com letras e referências aos escritos e a história da homenageada do dia.
Paula Sant'Ana, Thiago Borges