Lembro quando voltava do trampo e da faculdade e havia uma pixação no início da avenida Belmira Marin: “Grajaú, onde começa a cidade”.
Conheço o trabalho da Cia Teatral Enchendo Laje & Soltando Pipa há um tempo. O grupo está localizado no Extremo Sul da cidade há 20 anos e vem ao longo do tempo pesquisando o território como propulsor de histórias a serem contadas, narrativas que alargam as dramaturgias do teatro brasileiro com o cotidiano e as elaborações estéticas e filosóficas das bordas da cidade – em específico essa, o Grajaú, o tal do distrito mais populoso da cidade de São Paulo.
O Grajaú, como a maioria (se não todos) os territórios periféricos, foi organizado e projetado por mulheres que chegaram quando não havia estruturas que garantissem os direitos das pessoas que habitavam ali. Quando não havia asfaltos, hospitais, prontos socorros, postos de saúde, creches e escolas. No período de ditadura militar no País e elas que compuseram os movimentos contra a carestia e a falta de condições de colocar a carne na mesa.
#Matriarcas: Mulheres que cavaram os alicerces para a luta nas quebradas
Bom, dessa vez o grupo de teatro nos convidou a adentrar nas histórias das Matriarcas do território, as mulheres que organizaram o Grajaú envolvidas na construção da Associação de Mulheres , que em suas diversas atividades conseguiram articular melhorias significativas pro bairro. Foram cinco mulheres escolhidas: Cidona, Adélia Prates, Ivanilda Mendes, Nalva Maria e Maria Villani.
- Grupo 011 celebra Maria Vilani (foto: Carol Leone)
- Cia Enchendo Laje apresenta história de Nalva Maria (foto: Carol Leone)
A ideia do coletivo foi a de convidar 4 diferentes grupos teatrais que tivessem uma relação com o território e com a pesquisa de teatro de rua: a Cia Madeirite Rosa, a Cia Os Desconhecidos, o Coletivo 011 e o Núcleo Pele, além da própria Cia Enchendo Laje.
A partir da escuta de uma dessas mulheres, foram criadas 5 cenas inspiradas na entrevista com a matriarca. As cenas criadas estão sendo apresentadas em um festival de teatro de rua chamado “Grajaú é a cidade”. A cada dia, 3 grupos apresentam, e cada edição é em homenagem a uma das matriarcas, que ao final é convidada a partilhar suas impressões das cenas e a dialogar com o público.
Aqui, acho importante dizer que faço parte de um dos coletivos convidados para a ação, o Núcleo Pele. Mas para além de não estar na cena criada, me atenho nesta apreciação a falar da ideia e da edição do festival como um todo, não focando nas cenas criadas, e sim na pluralidade delas e na organização do evento.
A rua começa a ser tomada como palco. São anunciadas as cenas e os grupos que irão apresentar. O teatro se inicia…
É bonito pensar na escolha por um festival que acontece no espaço público e democrático que é a rua – as histórias de formação do mesmo lugar onde agora se senta esse público curioso, onde a criançada corre, onde os bares tocam seus forrós, onde as escolas repousam no domingo para continuar na semana que se iniciará, onde os casais andam de mãos dadas, onde o comércio se agita no sábado e fecha no domingo.
- Cia Madeirite Rosa interpreta Cidona (foto: Carol Leone)
- Núcleo Pele homenageia trajetória de Ivanilda Mendes (foto: Carol Leone)
As mulheres são celebradas por sua contribuição na construção desse cotidiano que parece natural e vem contornando os finais de semana das quebradas pelo Grajaú.
O dia que prestigiei aconteceu na Praça do Estudante, que fica em frente à escola estadual Professor Jacob Thomaz Itapura de Miranda e ao pronto socorro Maria Antonieta, famoso no fundão do Grajaú. Ambos são conquistas da luta dessas mulheres, que assistem à interpretação de parte de sua história na rua.
A arte ganha um sentido muito potente nesse festival. A presença de uma matriarca ali nos faz assistir as peças e olhar pro seu rosto com lágrimas nos olhos ou em risadas.
O festival tem o nome de “Grajaú é a cidade”.
De alguma forma me lembrou muito a pixação que eu via sempre que voltava pra casa: “Onde a cidade começa”. Essa sentença ficou na minha mente depois.
O teatro que se relaciona com uma territorialidade periférica tem a capacidade de disputar as narrativas da formação de São Paulo, da construção da cidade e de sua história em constante movimento.
Viva as matriarcas vivas sendo homenageadas na praça pública que ajudaram a construir!
Asè pra Cia. Enchendo Laje .
- Cidona, homenageada por Cia Madeirite Rosa (foto: Carol Leone)
- Cia. Os Desconhecidos interpreta história de Adélia Prates (foto: Carol Leone)
- Núcleo Pele homenageia trajetória de Ivanilda Mendes (foto: Carol Leone)
Anotaí! As últimas apresentações acontecem às 15h deste sábado e domingo (29 e 30/6), homenageando respectivamente Maria Vilani, escritora, professora e fundadora do CAPSArtes; e Nalva Maria, jornalista, fotógrafa, participante do podcast E Agora, PEM?. Ambas acontecem na praça da rua Piraju, no BNH. Mais informações aqui.