Artista do funk desce degraus até o próprio inferno para resgatar humanidade de parcela excluída da sociedade

Artista do funk desce degraus até o próprio inferno para resgatar humanidade de parcela excluída da sociedade

Na estreia da coluna “De Lupa na Arte”, lançamos um olhar aproximado na exposição da artista Correrua sobre jovens da cultura funk, que ganham camadas de complexidade, e nos faz um convite a observar com paciência e calma para enxergar almas com múltiplas intenções, sobretudo as boas

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Por Rafael Cristiano. Fotos: @Anninhaccampos_

I’m just a soul whose intentions are good / Oh, Lord, please, don’t let me be misunderstood”
“Eu sou apenas uma alma com boas intenções / Ah, Senhor, por favor, não me deixe ser mal entendida”

Nina soltou lá nas terras gringas e a Correrua cortou aqui, no escadão da casa dela, junto com aquela do Jorge Ben que algumas meninas negras de uma escola da região cantarolavam com uma sabedoria antiga: “Acordei com uma vontade de saber como eu ia…”.

A música vinha do escadão da avenida Chão de Estrela, a 10 minutos da estação Grajaú (Extremo Sul de São Paulo), onde a artista Fernanda Souza, conhecida como CORRERUA, exibia sua segunda exposição fotográfica: “Sobrevivendo no Inferno”.

De cara, um choque estético. Esse tipo de ocupação em uma quebrada ressignifica paisagens.

No escadão, tão comum nas periferias, onde diariamente transitam muitas pessoas do bairro, no sobe e desce diário, é comum pessoas encontrarem vizinhes ou amigues e sentarem para uma conversa. Dessa vez, sustenta quadros com molduras clássicas de museus, com fotografias coloridas, retratando jovens pertencentes à cultura do funk.

Uma primeira questão que me sobressalta é: quais são as possibilidades de ocupação artística que podemos pensar e fazer dentro das quebradas? Como ressignificar o uso do espaço e disputar tempo com o cotidiano?

O caminho é afetivo!

Correrua diz que foi uma adolescente negra funkeira e sabe o quanto é difícil ter uma autoestima saudável. Seu olhar enaltece as mulheres que são representadas de formas diversas e não estereotipadas: são meninas conversando, meninas posando pras lentes e mulheres empinando moto.

Há um especial destaque para uma que fica no centro da exposição, a obra chamada “Muita coisa, vulgo Kah”. Uma menina negra que olha pra lente da câmera e que, exposta na parede, olha para nós. O título faz sentido quando se observa por uns momentos os olhos de Kah, que no centro da exposição nos seguem durante todo o percurso. Kah, nesse instante, se torna a Monalisa da Fê, título cogitado pra obra e descartado porque o vulgo dela não é esse.

Os homens representados pela artista são rapazes muito bem vestidos na moda streetwear-periférica-brasileira. São jovens na maioria negros, ora se divertindo em coletivo, ora fazendo poses pra câmera, ora no busão indo pro trabalho.

Um destaque para obra “Avisa o dono da Lacoste”, em que um homem segurando dinheiro está na loja da Lacoste (segurar o dinheiro em lojas de marca é um hábito comum de meninos jovens negros para provar que não estão ali para roubar). Essa obra, além de imprimir a capacidade de um homem comprar na loja, complexifica o lugar social do homem negro periférico, mostrando-o vulnerável frente ao mundão, o preconceito e a tal da má-interpretação invocada pela Nina Simone.

Destaque para os nomes das obras que parecem estranhas para quem não faz parte da cultura funk, mas que mesmo assim conseguem estabelecer diálogos poéticos e sensíveis, como “Planetária”, “Bruxaria Submundo” e “Terra da garoa, sorte que nois usa Umbrella”.

Algo que capta a atenção do espectador das obras é o quanto a maior parte das pessoas que ela retrata de alguma forma figuram em sua rede de afetos. Em contraponto de uma arte acostumada com o distanciamento entre artista produtor da obra e o “objeto” do retrato/pesquisa, a arte da Fernanda convoca e localiza a artista dentro do universo, o que nos faz ter um olhar diferente de cada pessoa retratada.

Elas ganham nomes, histórias, cheiros pela narração muito bem feita da artista, que nos guia e explica suas inspirações junto a um fundo musical, a playlist que ela ouviu para a curadoria da própria exposição – a música ajuda a ambientar a produção da artista.

O sentido da visita guiada é de cima para baixo. Enquanto descemos, vemos as obras e entendemos o quanto a exposição é autorrepresentativa.

Fernanda se torna uma personagem que narra a própria história através de registros de sua comunidade. Esse movimento “autobiográfico” não tem nada a ver com os materiais que por vezes vemos, vindo de um lugar narcísico-egóico onde contar a própria história é o que importa. Dentro da Correrua cabem várias outras pessoas, cabe sua comunidade. Uma das meninas de uma escola estadual que foi prestigiar a exposição, ao final vira pra Fernanda e mostra a foto que ela fez e diz que sonha em ser fotógrafa.

“Sobrevivendo no inferno é um álbum que fez parte da minha formação, mas é muito masculino”  – Correrua

Descemos o escadão e paramos de frente à porta da casa da Fernanda, onde ela nos conta sua principal inspiração para fazer essa exposição. Sua fala arremata a experiência imersiva, uma exposição para mulheres e meninas funkeiras verem e se sentirem bonitas e relevantes, mas principalmente para traçar um diálogo com os homens e meninos, um chamado para que se vejam em lugares afetivos possíveis, e um convite para ouvir as mulheres e as respeitar.

O que fica depois de descer todos os degraus do inferno que uma artista de 28 anos sobrevive é um diálogo íntimo com os Racionais, um adendo no disco de 1997, as mulheres negras e periféricas estão também sobrevivendo no inferno, lutando pra falar, serem ouvidas e não mal interpretadas.

A Correrua definitivamente é uma artista contemporânea a se acompanhar para pensar como sua produção pode revelar camadas do que não vemos, degraus da humanidade de uma parcela excluída.

SOBREVIVENDO NO INFERNO

Ficha Técnica:

Fotografia @isabelleindia_

Direção criativa e arte @correrua_

Beleza @luciana_leite

Hairstylist @allyahbraids

Direção de arte do flyer @mayramartins1

Narrativa e participação especial @bettaa_santosz

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