Covid-19 nos presídios: “Metade da cela tá com sintomas”, diz detento

Covid-19 nos presídios: “Metade da cela tá com sintomas”, diz detento

Em cartas, presos relatam medo, preocupação e falta de informação em relação à pandemia de coronavírus, ao mesmo tempo em que pedem oração e buscam tranquilizar os parentes. Secretaria de Administração Penitenciária diz que denúncias não procedem.

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Tempo de leitura: 10 minutos

Por Laís Diogo e Thiago Borges

“Ore por mim, pois estou desde ontem com dor em todo corpo, febre, dor no peito, dificuldade para respirar, sem paladar e sem olfato. É preocupante, pois quase metade da cela está com esses sintomas. Domingo passado, um colega de cela foi para a colônia de ‘bonde’, mas eles não foram aceitos lá e tiveram que voltar pois estavam com sintomas de covid-19”.

O relato acima consta em uma carta escrita no dia 12 de abril de 2020 por um preso do Centro de Detenção Provisória de Diadema, na região metropolitana de São Paulo.

A Periferia em Movimento teve acesso a essa e outras mensagens recebidas por familiares de homens que viviam na capital paulista e estão encarcerados nessa e em outras unidades prisionais do Estado, como Mirandópolis, Junqueirópolis e Presidente Prudente. Em comum, eles relatam medo, preocupação e falta de informação em relação à pandemia de coronavírus, ao mesmo tempo em que pedem oração e buscam tranquilizar os parentes.

Em outro presídio, na região de Presidente Prudente, um detento denuncia as medidas tomadas pela direção durante a higienização. “Eles colocam nós em celas de contenção, [com presos de] 3 celas junto e vários tossindo e espirrando. Totalmente perigoso de transmitir algo”, conta ele. “Eu uso máscara, mas os contatos são inevitáveis. Ao voltar para a cela, vou direto para a ducha e lavo toda minha roupa”, continua.

Segundo ele, um colega de cela de 59 anos foi levado para o hospital da cidade, entubado e com o rim paralisado. Na cela, outros presos tiveram sintomas de covid-19 e ele próprio sentiu diarreia e calafrio, mas se recuperou sem ao menos ter acesso a remédios fornecidos pela casa de detenção.

Em outra unidade que a reportagem não conseguiu confirmar a localização, um detento se diz preocupado, já que teve tuberculose em 2011. “De uns dias pra cá , tenho sentido muita dor no pulmão. Essa noite mesmo quase não dormi com dor”, relata. Ele tomou um remédio e a dor amenizou, mas não conseguiu atendimento quando buscou a enfermaria da prisão: “Tinha muito atendimento na frente”.

Na penitenciária Mirandópolis 2, um preso relata febre insuportável, dores no corpo e na cabeça. “Essa doença veio para acabar com as famílias”, diz. Na mesma unidade, outro homem diz que sentiu dores e perdeu o olfato e o paladar. “Já ‘morreu’ 2 pessoas essa semana e tem vários aqui com caso. Tô até com medo”, conta.

“É só Deus na nossa causa, pois está um comentário de que foram afastados 2 agentes por causa desse vírus e tem um monte de parceiros com esse sintoma, porém a enfermaria não suporta o tanto de pessoas que estão subindo com os sintomas”, diz um detento em Junqueirópolis. Ele fala de sintomas gripais, acredita que não está com coronavírus e pergunta à companheira sobre o estado psicológico dela. “O barato tá louco, amor, e nós estamos sem saber o que fazer”.

Viaturas da SAP são higienizadas (foto divulgação)

A versão do governo

Consultada pela reportagem, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do Governo do Estado de São Paulo disse que “as denúncias de familiares não procedem”. De acordo com a SAP, o CDP de Diadema não tem presos diagnosticados ou com suspeita de covid-19.

E na região de Presidente Prudente, sem especificar a unidade prisional, “os sentenciados ficam sob supervisão do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), enquanto o servidor, devidamente protegido com Equipamentos de Proteção Individual, faz a limpeza da cela com hipoclorito de sódio por meio de pulverização”, diz a SAP. A higienização ocorreria uma vez por dia em uma cela por vez.

A SAP informa ainda que segue determinações do Centro de Contingência do Coronavírus e avalia permanentemente as ações para enfrentar a doença, entre elas: a suspensão de atividades; a busca ativa por casos suspeitos; a restrição da entrada de pessoas que não sejam funcionárias; a quarentena para presos ingressantes no sistema; o monitoramento de detentos com maior risco de exposição; horários alternativos no refeitório; e a distribuição de produtos de higiene e máscaras, entre outras.

Além disso, no dia 15 de junho a SAP diz ter iniciado um projeto piloto para testar presos na Penitenciária 2 de Sorocaba, onde ocorreram as primeiras mortes no sistema prisional. O objetivo é estender a testagem em massa para covid-19 às 176 unidades prisionais do Estado de São Paulo – que registrou 189 casos entre servidores do sistema, dos quais 15 morreram. Entre os presos, foram 77 casos confirmados e 14 mortes decorrentes da doença.

“Se confirmado o diagnóstico, além de continuar seguindo os procedimentos indicados, o preso será mantido em isolamento na enfermaria durante todo o período de tratamento”, diz a SAP, em nota.

As visitas aos presídios estão suspensas desde 20 de março e, segundo a SAP, os familiares podem se comunicar por cartas e encaminhar os “jumbos”, como são chamados os pacotes geralmente com alimentos, materiais de higiene e outros itens.

Em um áudio enviado à reportagem, uma familiar aponta que há um vácuo de informações e falta de assistência. “Estamos precisando de um respaldo positivo das autoridades (…) Como está tudo bem se as cartas que recebemos de nossos entes é de terror, cada vez mais pior, presos contraindo vírus, tosse, febre. Querem que a gente se cale? Nós familiares nunca vamos nos calar”.

Já o militante e educador social Marcelo Dias diz que os próprios presos têm improvisado cuidados médicos e feito isolamento por conta própria, enquanto as famílias com quem conversa têm dificuldades para obter informações sobre os parentes encarcerados.

“Eu me pergunto: como ter distanciamento com 50 ou 60 pessoas em 15 metros quadrados?”, questiona ele, que após ser preso injustamente fundou o coletivo SOS Forjados para dar apoio a pessoas em situação semelhante.

Foto: Agência Brasil

Bomba-relógio

Com mais de 748 mil presos, a terceira maior população carcerária do mundo, o Brasil convive com o histórico problema de superlotação em cadeias – faltam 312 mil vagas. Mais de 40% sequer foram julgados.

Por isso, com o avanço do coronavírus pelo País, em março o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a recomendação 62/2020, que foi renovada na última sexta-feira (12/06) por mais 90 dias. No documento, o CNJ traz recomendações ao poder judiciário para evitar contaminações em massa da Covid-19 no sistema prisional e socioeducativo. De acordo com dados levantados junto aos governos estaduais, houve aumento de 800% nas taxas de contaminação nos presídios desde maio, chegando a mais de 2.351 casos até dia 17 de junho, segundo o Depen.

Entre as orientações do CNJ, está a revisão de prisões de pessoas de grupos de risco e em final de pena que não tenham cometido crimes violentos ou com grave ameaça, como latrocínio, homicídio e estupro e que não pertençam a organizações criminosas.

Essa recomendação foi acatada em ao menos em 24 estados e 32,5 mil pessoas foram retiradas das unidades prisionais nos últimos 3 meses. Trata-se de 4,8% do total de pessoas em privação de liberdade, excluídos o regime aberto e presos em delegacias. De acordo com a organização Human Rights Watch, cerca de 5% das pessoas privadas de liberdade do mundo deixaram as prisões em razão da pandemia.

No Estado de São Paulo, que tem uma população carcerária de mais de 225 mil presos, o poder judiciário expediu 3.953 alvarás de soltura entre 19 de março e 16 de junho. A maioria é de homens com idades entre 20 e 30 anos, de acordo com a SAP.

Integrante de um grupo de trabalho que reúne representantes do PT, PSOL, PC do B e Rede na Assembleia Legislativa de São Paulo, o co-deputado estadual Fernando Ferrari acompanha a situação junto ao Tribunal de Justiça. “Quando se fala de presídio no Brasil, a gente fala de superlotação, violação de direitos humanos, comida estragada, falta de água… São diversos tipos de violações históricas” aponta.

Para Marcelo Dias, a proliferação do vírus no sistema carcerário é “uma bomba-relógio”. “Lá dentro, a situação ‘normal’ já é caótica, e a covid-19 só vem agravar ainda mais a situação”, diz ele, após ser preso injustamente fundou o coletivo SOS Forjados para dar apoio a pessoas em situação semelhante.

“Isso fere ainda mais a dignidade dos presos e presas do Brasil, que por sua maioria são pretos e pretas periféricas numa verdadeira aberração penal que traz cada vez mais violência”, completa.

Conteúdo produzido com apoio do Fundo de Apoio Emergencial COVID-19, do Fundo Brasil de Direitos Humanos

3 Comentários

  1. […] junho, a Periferia em Movimento publicou uma reportagem com relatos enviados por presos a suas famílias por meio de cartas. Nos depoimentos, eles relatam […]

  2. […] de condições precárias aparecem – como a própria Periferia em Movimento já apontou aqui e aqui. Quem está nas ruas depende da solidariedade para […]

  3. […] Brasil tem mais de 750 mil pessoas em privação de liberdade. Depois de passar pelo cárcere, a retomada da vida em comunidade não é tão simples. Por isso, a […]

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