Por Marcelo Lino Jr. Edição: Thiago Borges. Arte de capa: Rafael Cristiano. Fotos Areta Padma / reprodução doc
Da janela de um quarto escuro, o horizonte é mais uma favela num morro de São Paulo. As máquinas de costura vão ao lado de imigrantes que vieram da Bolívia trabalhando na indústria têxtil. No momento do clique, essas pessoas acabaram de ser encontradas pela fiscalização do trabalho, responsáveis por fazerem valer as leis trabalhistas no Brasil.
Apesar das fotos serem documentos processuais, as pessoas são expostas na apresentação artística “Oficina do Suor”, de Sérgio Carvalho, auditor fiscal e fotógrafo há mais de 30 anos.
Num tom que parece denúncia, Sérgio faz as fotos e as mostra em livros e outras exposições parecidas, com fotos em preto e branco e uma estética “supercool” ou “descolada” das vítimas de trabalho análogo à escravidão e da precarização do trabalho em todo Brasil.
É o caso de “Retrato Escravo”, de 2010, onde exibe fotografias “sobre péssimas condições de trabalho, solidão das famílias e resgate desses trabalhadores”.
Para o Jornal do Nordeste, ao qual deu entrevista recente, ele disse que “o tema é quem impõe a estética”.
“Quando eu me deparei com trabalhadores (em situações análogas à escravidão), decidi virar fotógrafo para dar visibilidade à voz deles. Tem sido essa a documentação nesses últimos 28 anos”, contou ele ao jornal.
Não é o que pensam as Cholitas da Babilônia – Coletivo Artístico e Político de Mulheres Andinas em São Paulo.
O coletivo surgiu em 2020 “pela necessidade de um espaço para debater e reflexionar sobre pautas que atravessam as pessoas andinas e migrantes em São Paulo e formado por mulheres migrantes ou filhas de migrantes andinas (povos originários dos Andes)”.
Elas dizem que, além de não denunciar nada (marcas, responsáveis, locais) a exposição não sensibiliza a sociedade. Pelo contrário: alimenta um estigma, a xenofobia, a violência e estereótipos sofridos por povos que têm, na costura, uma parte de sua cultura.
“Eu cresci numa fábrica de costura. Nossos pais trabalhavam nesses lugares. Já estamos cansados que as televisões entrem nas oficinas e digam: ‘assim que vivem os bolivianos, escravos’, e nunca mostram o outro lado, a cara dos donos das marcas, dos responsáveis por tudo”, conta Natali Mamani, indígena aymara nascida em La Paz, na Bolívia.
Aos 30 anos, a coordenadora de comunicação e realizadora audiovisual mora na zona Norte de São Paulo, reside no Brasil desde os 4 anos e é uma das responsáveis pelo coletivo.
Luta pelas tradições
O “tecer”, as cores, os materiais e as formas geram não só capital, como integram a rica cultura andina onde costurar não é apenas uma prática mas parte de seu ser.
Com o surgimento e monopolização das grandes marcas, para além de diversos problemas sociais na América Latina, nas últimas décadas muitas pessoas migraram da Bolívia, do Peru, do Equador – enfim, da região dos Andes – para São Paulo tentar melhorar de vida. Nessa Babilônia, é difícil manter as tradições sem lutar.
“No nosso coletivo, a maioria passou ou trabalhou pela costura. A gente cresce nesse ambiente de ser largado mesmo, esquecidos e não vistos como pessoas cidadãs humanas aqui em São Paulo”, conta Fernanda Quechua, 40, arte educadora também responsável pelo movimento.
Moradora do Jardim São Paulo, também na zona Norte, ela migrou para São Paulo há 13 anos, já adulta.
“O estrangeiro branco, italiano e europeu, foi bem recebido durante a história daqui. Até hoje, se um gringo chegar ele vai ser querido, aceito. Mas quando as pessoas racializadas, as pessoas indígenas, deslocam-se para os territórios que estão trocando trabalho aqui, elas caem no esquecimento do Estado, entram em trabalhos anólogos à escravidão”, continua Fernanda.
“Nas escolas não existe nenhum tipo de tratamento de interculturalidade, onde a gente fala de acolher essas pessoas”, termina.
O sofrer como entretenimento
Com taças de champanhe na mão e garçons servindo quitutes, pessoas brancas com roupas espalhafatosas viam a abertura da primeira exposição da “Oficina de Suor”, em setembro de 2023, na Oficina Cultural Oswald de Andrade.
O espaço cultural fica no Bom Retiro, centro de São Paulo, bairro com grande presença andina. Mas, na abertura do evento, não se via ninguém que não tivesse a aparência racializada.
As Cholitas tentaram dialogar e se manifestar para repensar o formato da exposição. O argumento é que não havia diferença entre quem explorava a mão de obra e quem explorava as imagens como conteúdo artístico.
Alinhadas com a programação do espaço, participaram de uma reunião no dia 18 de outubro de 2023. Aproximadamente 30 pessoas, entre elas imigrantes e descendentes de bolivianos, indígenas e apoiadores estavam presentes e foram ouvidos. Nessa reunião, nenhum representante da auditoria fiscal, do artista ou de sua curadoria estiveram presentes.
Mesmo assim, elas chamaram atenção da organização. O diretor da Casa dos Criadores André Fidalgo entrou em contato com o coletivo em outubro de 2024. Uma semana depois, precisamente no dia 24, duas responsáveis do Cholitas participaram de uma reunião com Sérgio e mais 3 representantes do SINAIT – Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho, apoiadores da exposição.
Contudo, na reunião, elas sentiram que já estava estabelecido quem tinha o poder e quais seriam os encaminhamentos: elas não teriam voz.
Essas conversas não deram em nada. Na verdade, deram em algumas coisas:
Segundo Fernanda, as Cholitas tiveram pouco espaço de fala – era ela e mais um amigo conversando com os organizadores. Sérgio acusou as Cholitas de “não saberem o que é arte” quando expuseram a ele a dor de ver aquelas fotos para imigrantes da Bolívia, assim como a falta de participação efetiva e de voz ativa das pessoas nas artes.
Uma segunda conversa ficou de ser realizada. Nunca ocorreu. A exposição entrou em cartaz novamente – dessa vez, na Galeria Prestes Maia.
“Cadê o nome dessas pessoas? Quem são elas? Elas queriam ser fotografadas? Eu sei o que é estar ali. Elas estão com medo de trabalhar nesse lugar!”, protestou Natali no megafone, ilustrando uma mudança de postura das Cholitas.
- Wipala, símbolo andino exibido no protesto (reprodução)
O coletivo reuniu-se e reuniu seu povo para protestar ativamente, realizando mais uma intervenção artística, só que, dessa vez, com mais barulho e caos. Tintas vermelhas foram jogadas nas fotos enquanto seus protestos eram proferidos no megafone.
Uma Wipala, símbolo de resistência e luta pelos direitos de indígenas das regiões andinas, foi estendida enquanto o grupo constatou o absurdo da exposição.
Fernanda foi agredida pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) e teve uma arma apontada contra si. Um manifestante conseguiu empurrar a guarda para longe e soltar a amiga, que se livrou da agente pública. “Clientes” da exposição vaiaram, cassetetes foram erguidos contra os manifestantes e os gritos eram ouvidos*7:
“NÃO FALEM DE NÓS SEM A NOSSA VOZ”
“NENHUMA FORMA DE ARTE PODE PASSAR POR CIMA DA DIGNIDADE DE UM SER HUMANO”
“FOTO DE LAUDO NÃO É ARTE”
Se, para a maior parte da população de São Paulo o caso não foi tão debatido, na Bolívia e para a comunidade boliviana teve atenção e apoio.
“Excelente Movimento Cultural Revolucionário aqui em São Paulo”, dizia um ouvinte do “Portal Bolivia News”, programa de notícias ao vivo apresentado por Gaston Conde via Facebook e que fala sobre cultura andina.
Arte Política Ativa Direta
Fernanda explicou que não há lideranças no movimento, apenas responsáveis por suas partes.
A visão muito menos individualista do que a lógica à qual nos acostumamos se estende a outros ideais, como a própria noção do território e o quanto elas têm que lutar para se colocar num espaço que foi de seus ancestrais – e que é sagrado. A Terra, as plantas, o sol…
“Quando a gente migra, a gente já é deportado de nossas raízes, nossa cultura, nossa espiritualidade, nossa política. Porque não podemos votar, mas nós somos a nossa terra! Não podemos ir fazer protesto porque somos deportados. Então acabamos sendo podados”, diz Fernanda, moradora dessa Babilônia.
No novo território, os povos andinos têm que reivindicar a si mesmos, se auto-acolher, fazer suas práticas para a sua comunidade.
“É por isso que nós, dentro do coletivo, sempre tentamos manter nossas práticas espirituais vivas em encontros, em reuniões, fazendo nossos rituais, nossos cuidados como comunidade. E isso ainda é algo muito forte. Eu acredito que também a gente é muito atuante dentro da cultura, porque nossas performances são uma resposta ao que está acontecendo aqui”.
Natali termina falando sobre as lutas, que continuam, inclusive no Acampamento Terra Livre (ATL) de 2025, realizado anualmente por organizações indígenas em Brasília.
“Essa luta é por um bioma, já quebra a fronteira porque a gente se encontra com nossos irmãos venezuelanos, Ká’riña, Taurepang, Waraos, com as mulheres do Otavalo, no Equador. Então, a gente vai se reunindo, vai conversando e a gente também entende que são articulações muito grandes. Isso sobrepassa nossas mãos como Cholas e Cholitas.”
“Somos mediadoras, somos articuladoras. Todas fazem tudo e todas são responsáveis por tudo, sem nenhum tipo de hierarquia ou liderança. A gente não quer virar liderança, não quer virar ativista, isso é uma responsabilidade de todos, não só nossa. É uma luta cíclica, é uma luta circular, e não uma luta patriarcal, onde tem que ser sempre uma ou duas pessoas em liderança para a voz de um povo”.
Até o final desta reportagem, Sérgio Carvalho não havia respondido à Periferia em Movimento. Ao receber mensagem convidando-o a prestar esclarecimentos, ele bloqueou o repórter.
Assista abaixo o documentário “Nossa Dor Não É Arte”, das Cholitas da Babilônia: