Diante de “crises incontroláveis”, organização coletiva nas periferias possibilita futuro diferente

Diante de “crises incontroláveis”, organização coletiva nas periferias possibilita futuro diferente

Grupo Psicanálise Periférica percebe sofrimento de populações à margem de direitos e vê nos encontros e fortalecimento de relações sociais as possibilidades de construir novas perspectivas

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Arte: Rafael Cristiano

Criado durante as eleições de 2018 por jovens estudantes de psicologia, o coletivo Psicanálise Periférica surge com a motivação de ampliar o acesso à escuta. A atuação prática teve início em parceria com a Ocupação Matheus Santos, em Ermelino Matarazzo (zona Leste de São Paulo). E no ano passado, o grupo promoveu seu primeiro grupo de intervisão de casos clínicos.

Formado por pessoas periféricas, o grupo leva em conta as diferenças estruturais que atravessam a sociedade brasileira. Entre elas, estão Neidi Sansone, de 40 anos, que também é educadora social e vive em Porto Alegre; e Samantha Alflen, 28, que também é artista e permacultura em Florianópolis.

Na série de entrevistas com especialistas periféricas sobre temas relevantes para as quebradas em 2024 (clique para ler), a Periferia em Movimento falou com as integrantes do coletivo Psicanálise Periférica a respeito do impacto da crise climática, do avanço das tecnologias digitais em vários campos da vida e da disputa na política institucional nas perspectivas de quem vive nas quebradas. 

Confira os principais trechos abaixo:

Como o avanço da tecnologia, a crise climática e as disputas na política institucional tem afetado as perspectivas das pessoas, sobretudo nas periferias?

Samantha Alflen – “Desde a pandemia, as perspectivas da construção de futuro foram muito abaladas. O acirramento da crise climática, as questões econômicas e a ascensão de uma direita no mundo inteiro têm estreitado a perspectiva das pessoas.

(…) Isso tem vindo da realidade concreta e do quanto estamos lidando com coisas do incontrolável, mas também de como a gente foi se colando às tecnologias cotidianas que talvez a gente tivesse que, enquanto sociedade, pensar um pouco melhor nesse uso”.

Neidi Sansone (foto: arquivo pessoal)

Neidi Sansone (foto: arquivo pessoal)

Neidi Sansone – “A população periférica sempre é mais atingida por todas as faces do capitalismo, que seja o avanço tecnológico, que vem para suprir uma demanda do capitalismo e onde as pessoas periféricas inúmeras vezes não conseguem acessar esses dispositivos de forma a usufruir deles e sim são esmigalhadas pela falta do acesso à tecnologia.

(…) Os analisandos não conseguem emprego pois não sabem, por exemplo, fazer um currículo e enviar aos locais. (…) Isso afasta essas pessoas de terem melhores empregos e arrasta elas a subempregos. Assim, quem está vulnerável financeiramente segue vulnerável financeiramente.

Em relação à crise climática, percebo que é algo que vem causando um adoecimento da população periférica. Em Porto Alegre eu atendo de forma presencial e on-line, especificamente a população LGBTQIAP, pessoas periféricas, pessoas com deficiência e negras, e Porto Alegre vem sofrendo com constantes enchentes e tempestades que destelham casas, quedas de árvores, falta de energia elétrica e, na última semana, havia mais de 100 mil pessoas sem energia elétrica e água na região. Esse sofrimento ultrapassa o mal estar e se transforma em um marcador que tenta contra a vida das pessoas que estão morando na periferia.

Por 2 semanas, todos os meus atendimentos (90% dos analisandos são periféricos negros e trans) ficaram sem acesso ao único dispositivo para cuidado à saude mental deles: a sua análise. E isso aconteceu pois não havia eletricidade na cidade e nem condições para atendimentos presenciais ou on-line, devido à crise climática gerada pelo capitalismo e, em menor escala, à gestão política neoliberal que está a frente da cidade agora.

 

Foto: Douglas Fontes

Saúde mental, física e nas finanças

Neidi – “É um ciclo que faz a manutenção da precariedade. Sem as condições financeiras para viver razoavelmente bem no capitalismo, as pessoas passam a viver para o sustento básico, não sobra tempo para as reflexões e os cuidados relacionados à saúde. Sujeitos adoecidos do sistema viram silenciosos trabalhadores. De tantos silêncios, se faz uma crise. Do esgotamento dos recursos, se fazem crises climáticas”.

Samantha – “Tem sido muito difícil pensar em saúde hoje em dia. Na clínica mesmo, as pessoas chegam sempre com um diagnóstico que encontraram para elas mesmas ou que alguém deu para elas, mas muito nesse lugar do sofrimento, da depressão, da angústia, da melancolia, do desânimo, do cansaço. O que eu tenho visto é um é um mundo adoecido, relações adoecidas, pessoas adoecidas. E aí eu vou pensando na importância da gente trabalhar isso dentro das relações”.

 

De onde parte a mudança para esses incômodos 

Samantha Alflen (foto: arquivo pessoal)

Samantha Alflen (foto: arquivo pessoal)

Samantha – “Eu acho que isso também vai dando um certo desamparo nessa coisa da disputa institucional, vai dando uma esvaziada no sentido da instituição em si (…) O desmonte, a precarização que vai afirmando esse lugar do público como ‘não confiável’ para a população, a partir de toda uma estratagema de desmobilização disso que é comum (…)

Isso não afeta todo mundo, isso afeta uma parcela específica da população que tá muito marcada pelo território, pela classe econômica, pela racialização, pelo pertencimento ou não a uma norma de gênero e de sexualidade. E isso vai criando camadas muito complexas de questões sociais.

E ao mesmo tempo, acho que isso cola mais uma vez no discurso da mídia social, do que esses algoritmos vão selecionando. Que tipo de discurso tem permeabilidade?

Então, eu sou muito cética quanto ao uso da instituição e da mudança por dentro, eu vejo uma perspectiva muito mais interessante na construção de autonomia das comunidades e das pessoas. Nesse sentido, fico pensando na possibilidade de ocupação dos territórios de construção de espaços de partilha, sejam grupos de geração de renda, de arte e cultura, de lazer, grupos terapêuticos, rodas de conversa, hortas urbanas, espaços de produção”.

 

Há saída na organização individual e coletiva

Neidi- “Eu acredito que a organização coletiva bem direcionada pode alterar o curso do que parece, agora, como já dado ao fracasso.

A psicanálise pode ser usada para a politização dos sujeitos, para encontrar outros caminhos, para pensar numa organização que mesmo em meio aos caos consegue refletir e mobilizar os afetos para agir estrategicamente em benefício da sua comunidade.

Como costumo dizer aos analisandos, é tentar o singular no coletivo. A manutenção e o encontro de seus desejos individuais dentro de uma organização que pensa e vive coletivamente. Unidos somos mais fortes”.

Horta comunitária embaixo de linha de energia elétrica no Jardim Primavera, Extremo Sul de São Paulo (Foto Thiago Borges / Periferia em Movimento)

Horta comunitária no Jd. Primavera, Extremo Sul de São Paulo (Foto Thiago Borges)

Samantha – Ao alcance das nossas mãos, é a gente poder assumir as diferenças próprias de cada espaço, de cada grupo e poder respeitar e honrar essas diferenças, dar espaço para elas crescerem e florescerem.

Talvez sejam realmente a chave para a solução de uma era que tá cada vez mais individualista, cada vez mais alavancada por um processo de enrijecimento, de fechamento para as relações, onde as relações sociais possíveis são sempre mediadas por uma rede social.

Eu tenho uma visão um tanto cética de grandes mudanças. Eu acho que as mudanças vão se dando a partir de territórios, de pessoas se juntando e fazendo acontecer contra aquilo que mata, de cultivar a vida mesmo a todo e a qualquer custo e da gente conseguir colocar como meta maior a produção de vida.

(…) Às vezes, você tem comunidades que passam fome mas tem terrenos baldios que ninguém planta, e aí vem alguém ali que tem um cultivo dentro da família e que ocupa aquele  espaço para fazer uma horta. (…)

Existem várias outras formas de ocupação de espaços, de casas, de praças, de ruas para fazer encontros culturais, para fazer uma roda de samba, para a criançada brincar na rua, ensinar, fazer esse encontro geracional. Então, eu tenho visto mais potência nessas ações que vão trazendo autonomia e conexões dentro de uma vida um pouco menos mediada pelas redes sociais e pela virtualidade.”

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