Reportagem de André Santos. Edição de texto: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano
“Se vou ao mercado ou à feira, eu paro, troco ideia e falo: ‘Nossa, tá sabendo? Estou me candidatando ao Conselho Tutelar”.
Essa tem sido a vida de Daiana Ferreira, de 39 anos, nas últimas semanas. Formada em Serviço Social e engajada em atividades culturais e socioeducativas em Ermelino Matarazzo (na zona Leste de São Paulo), neste ano ela é candidata a uma das 5 vagas ao Conselho Tutelar de sua região.
A paciência para tirar dúvidas é necessária. Segundo Daiana e outras candidaturas consultadas nesta reportagem, a principal dificuldade está no distanciamento entre a população e o órgão, que por vezes sofre com estereótipos negativos e infundados que reforçam uma visão distorcida sobre a real função.
“A comunidade, em sua grande maioria, desconhece o trabalho do conselheiro”, conta Magda Abreu, 54, estudante de Pedagogia, ex-agente comunitária de saúde e candidata ao Conselho Tutelar no bairro da Brasilândia (zona Norte paulistana).
A votação para escolha de titulares ao órgão acontece neste domingo (1/10), em todo o País. Apenas na cidade de São Paulo, serão 260 nomes escolhidos em 52 Conselhos Tutelares, responsáveis por assegurar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
A Prefeitura paulistana é responsável pela organização da votação no município, que vai acontecer das 8h às 17h. Essa será a primeira vez que urnas eletrônicas do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) serão utilizadas no pleito Na capital, serão utilizadas 2.026 urnas em 325 postos de votação. Na última eleição, em 2019, cerca de 150 mil pessoas votaram no pleito.
Apesar da estrutura, ainda que a escolha seja um assunto de interesse público, o processo é menos divulgado do que as eleições para representantes do Poder Executivo ou Legislativo. Além disso, a participação do eleitorado não é obrigatória.
“Algo que me preocupa muito é a questão do sucateamento desse serviço, porque como muitas pessoas não conhecem e nem sabem para que serve, ele fica ali meio esquecido, não dialoga diretamente com a comunidade e não faz a função que tá ali pra fazer”, lamenta Daiana.
O que é o Conselho Tutelar?
Criados a partir da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA) de 1990, o Conselho Tutelar é um órgão autônomo e independente, responsável pelo zelo e defesa dos direitos legais de pessoas com menos de 18 anos. Em resumo, é responsável por garantir que as crianças e adolescentes tenham acesso ao direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
A pessoa conselheira tutelar, por sua vez, é responsável por acompanhar e mediar a situação de crianças e adolescentes de um determinado território e atua em parcerias com escolas, organizações sociais e outros serviços públicos. Em resumo, é sua função receber denúncias, investigar e acompanhar casos de violação de direitos, além de orientar e encaminhar as famílias para os serviços públicos adequados, como saúde, educação e assistência social.
“A atuação como conselheira, em primeiro lugar, me trouxe a visão do que realmente representa e faz esse órgão importante para a garantia de direitos de crianças e adolescentes. Uma dessas compreensões é de que toda a forma de violação de direitos vivenciada, sobretudo pelas comunidades periféricas, tem como principal autor o Estado”, explica Aleksandra Silva, 43, conselheira tutelar da região de Lajeado, na zona Leste.
Um dos sintomas da fala de Aleksandra pode ser sentido a partir da taxa de evasão escolar no Brasil. De acordo com a pesquisa “Combate à evasão no Ensino Médio: desafios e oportunidades”, da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan SESI), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), mais de meio milhão de jovens abandonam os estudos por ano. Além disso, apenas 6 em cada 10 pessoas no Brasil completam o ciclo escolar até os 24 anos. Entre a população mais pobre, o percentual de quem se forma no Ensino Médio é de 46% contra 94% da parcela mais rica.
“Os maiores desafios para atuação são a falta de políticas públicas nos territórios periféricos e que, categoricamente, precisam estar em primeiro lugar na lista de prioridades de todos os candidatos”, complementa Aleksandra.
Polarização
Devido ao clima de polarização que se criou no Brasil nos últimos anos e chegou ao Conselho Tutelar, a tendência é de um maior engajamento social – e consequentemente, um aumento no número de votos. Em 2019, quando ocorreu o último pleito, a disputa concentrou-se em candidaturas pautadas em ideais religiosos e por vezes conservadores, contra candidaturas progressistas e antirracistas.
Pela não obrigatoriedade do voto, a capacidade de articulação e influência de mobilizar grupos de eleitores é uma questão que faz a diferença. Historicamente dominado pelas igrejas evangélicas, o órgão passou a receber uma atenção especial de entidades de esquerda, que passaram a se mobilizar para ocupar esse espaço de poder.
“Quando me candidatei, havia um contexto na época em que o Conselho Tutelar precisava ser fortalecido, então fizemos uma composição de pessoas atuantes com a proposta de uma escuta de qualidade, aproximação com os profissionais da rede de proteção e não criminalização das famílias a fim de se evitar acolhimentos institucionais como primeira medida”, comenta Aleksandra.
Em contraponto, a polarização prejudica candidaturas independentes, sem vinculação com organizações já estruturadas.
A advogada e candidata ao Conselho Tutelar do Campo Limpo (zona Sul), Mariana Rotta Wczassek, 32, faz da maternidade sua luta, mas não é ligada a nenhuma entidade. Ela acende o sinal de alerta e pede para que a defesa do ECA seja feita com base na lei, sem viés religioso, político ou ideológico.
“É muito difícil fazer campanha sem apoios, pois temos muita influência de igrejas , ONGs e partidos, que hoje atuam ativamente nas eleições de conselheiros”, diz a advogada, que conta com o apoio de lideranças comunitárias de sua região.
Dificuldades
De acordo com as candidaturas ouvidas pela Periferia em Movimento, a falta de informação sobre as particularidades do processo eleitoral em si também prejudicam.
Além da carência de divulgação por parte do poder público, existem outros problemas, como por exemplo o fato de o local de votação ser diferente ao que o cidadão está habituado a frequentar nas eleições parlamentares.
“Nem todas as escolas estão abertas para votação e as pessoas precisam se deslocar para outras escolas, que geralmente não são os pontos de votação corriqueiros. Isso atrapalha na orientação dos munícipes e também aos candidatos”, conta Magda Abreu.
Para minimizar esses problemas e estimular a participação comunitária, a Mandata Coletiva Quilombo Periférico (PSOL) moveu uma ação judicial para que o passe livre no transporte público fosse instaurado na capital no dia da votação, da mesma forma que ocorreu nas eleições do ano passado. O pedido, no entanto, foi negado e um novo recurso não está descartado.
“E aí complica, porque às vezes a pessoa até tem boa vontade, mas pô… não é voto obrigatório, acontece no domingo, colocam (pra votar) em uma escola longe, onde as pessoas não conhecem…”, protesta Daiana, que enxerga o poder público como conivente para que o processo seja sucateado.
“São impedimentos que vão criando umas dificuldades que parecem ser propositais mesmo, pra galera não votar mesmo. Essas são as dificuldades e a gente tenta driblar isso através da conversa”, afirma.
Conheça
Para facilitar o trabalho do eleitorado e apresentá-lo a candidaturas com as quais exista alguma identificação, movimentos elaboraram algumas listas com nomes de todo o Brasil. Nas plataformas A Eleição do Ano e Em Defesa do ECA, é possível filtrar por cidade e encontrar indicações que podem ser próximas a um perfil que você deseja.
Na cidade de São Paulo, você pode conferir todas as candidaturas por Conselho Tutelar acessando esta lista (clique aqui). E clicando aqui, você verifica seu local de votação.
André Santos, Thiago Borges, Rafael Cristiano
3 Comentários
Boa tarde, compas!
Sou morador do Jardim Verônia na praça onze, leciono na rede pública e privada de ensino e acompanho o trabalho da candidata Daiana no Varre Vila e nos espaços culturais da quebrada
Procurei em vão a qualificação dos candidatos. Precisaria haver um local onde pudéssemos nos informar sobre quais as qualificações profissionais dos candidatos, suas ideias e valores, algum contato para que se pudesse tirar dúvidas, conversar com o candidato.
Preciso de informações sobre os candidatos progressista s da bela vista