A vida fora da tranca: Além de vencer preconceito, pessoas egressas do cárcere têm dívida financeira para quitar

A vida fora da tranca: Além de vencer preconceito, pessoas egressas do cárcere têm dívida financeira para quitar

Sobreviventes do sistema destacam importância da cultura e da superação de obstáculos, como a pena de multa, e a necessidade de políticas públicas que garantam a reintegração social

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Tempo de leitura: 9 minutos

Por André Santos. Edição de Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano.

Marcos Fernandes de Omena passou 13 anos privado de liberdade. Talvez você não ligue o nome à pessoa, mas nesse período ele trouxe ao mundo relatos diretamente do cárcere – e você, provavelmente, ouviu.

Mais conhecido como Dexter, o ator, compositor e um dos rappers de maior renome no Brasil chega aos 51 anos discutindo uma questão que tem ficado mais complexa com o avanço do tempo: o encarceramento em massa e a necessária reintegração à sociedade.

“Essa palavra [ressocialização] é tão difícil de falar quando a gente pensa num sistema carcerário, quando a gente pensa numa sociedade hipócrita, né? Afinal, a sociedade nem sequer socializou essas pessoas, quanto mais ressocializá-las”.

No início de fevereiro, Dexter participou dos debates do projeto ‘Do Cárcere às Ruas: O Estigma da Vida Depois das Grades’, realizado pela Companhia de Teatro Heliópolis. O objetivo do grupo era discutir os principais desafios para as pessoas egressas, abordar os estigmas enfrentados e indicar possíveis caminhos para a reversão desse cenário.

Cultura que salva

No caso de Dexter, ele é convicto de que a produção artística e o hip hop foram importantes norteadores de sua conduta quando permaneceu preso.

“A cultura nasce para salvar vidas e para nos mostrar caminhos diferentes. Quando eu fui preso, já tinha uma estrada com o rap, uma ideologia, uma filosofia de vida baseada na cultura hip hop. Eu fui para a cadeia, mas eu fui um cara decidido a continuar sendo quem eu queria ser. Eu continuei lendo, escrevendo.” – Dexter.

Em 1999, na reclusão, ele criou o grupo 509-E com Afro-X, companheiro de cela na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru. O grupo rodou o Brasil com apresentações autorizadas pela justiça e até realizou shows via telefone.

No entanto, Dexter pondera que nem sempre o caminho é tão linear.

As dificuldades impostas pela falta de políticas públicas efetivas, as más condições enfrentadas pelas pessoas encarceradas e o preconceito após a soltura são pontos que dificultam o processo de reintegração à sociedade de forma mais efetiva.

Dexter (foto: divulgação)

Dexter (foto: divulgação)

“A gente sabe que, infelizmente, nem todas essas pessoas vão sair cantando rap, jogando futebol, escrevendo livros… É um caminho muito difícil a ser percorrido. A sociedade não está preparada para receber egressos”, diz.

Antes mesmo de conquistar sua liberdade, Dexter já lutava na defesa dos direitos de pessoas encarceradas e egressas, sobretudo a partir da colaboração em diversos projetos de reeducação e reinserção no mercado de trabalho.

“O grande barato da vida é continuar acreditando e trabalhar em prol disso. Desenvolver trabalhos que discutam essa realidade, plantar uma semente para que essas pessoas possam entender que é possível ter outra ótica. Eu não tenho remédio pra essa doença, a não ser continuar acreditando, trabalhando, plantando sementes e sendo exemplo. E mesmo sendo exemplo, eu ainda sofro com esse preconceito”, avalia Dexter.

Obstáculos 

Tempestade, de 73 anos, é moradora do bairro de Jaçanã, na zona Norte de São Paulo, e também ficou privada de liberdade por um período. Ela foi outra participante dos encontros da Companhia de Teatro Heliópolis.

Antes do cárcere, Tempestade já era engajada na luta pelos direitos de pessoas presas. E quando presa, a ativista foi responsável por desenvolver uma pesquisa em relação ao nível de escolaridade das pessoas detidas na mesma penitenciária. Com o levantamento, ela propôs que a remissão de pena para o estudo fosse equivalente à remissão por trabalho.

“Eu sugeri que as remissões fossem iguais, porque tem pouco trabalho na cadeia. Então, a pessoa tem que trabalhar três dias para ganhar um dia a menos em sua pena. Já no estudo, naquele tempo, você tinha que estudar por sete para ganhar um dia. Eu achava isso um absurdo, porque com a remição igual você dá mais oportunidade para as pessoas e deixa elas com vontade de estudar. Por um tempo todas as salas de aula ficaram cheias”, relembra Tempestade.

A ideia saiu do papel, as salas de aula ficaram cheias, mas a medida durou apenas três meses. Apesar disso, Tempestade destaca que propostas trazidas pelas próprias encarceradas são fundamentais para que elas se reconheçam como seres humanos em um sistema punitivista e que retira a autonomia.

“Tudo tem que começar lá por dentro, porque quando você sai [do cárcere] não tem um cartaz que seja que nos dê acesso a informações essenciais como fazer um Encceja [curso supletivo para concluir o ensino médio]”, conta.

Devendo dinheiro

Os desafios são inúmeros.

Se não bastasse ter o nome e o rosto marcados, a pessoa egressa sai do sistema com uma dívida em dinheiro com o Estado.

A chamada pena de multa consiste em cobrar valores aplicados no momento em que a sentença é estabelecida, sendo que o não pagamento impede a extinção da pena mesmo que se cumpra o período de detenção estabelecido.

A pessoa que foi condenada também pode sofrer com bloqueios, penhoras e suspensão de direitos políticos.

“A cadeia não acaba quando você sai dela. Ali, começa sua luta para conseguir pagar a multa” – Tempestade.

Tempestade (foto: divulgação)

Tempestade (foto: divulgação)

“É a pior parte, porque se você não pagar você não consegue fazer nada. Você não pode votar, não pode abrir conta em banco e também não consegue arrumar emprego, pois de acordo com o sistema você é um ex-presidiário que ainda deve à justiça”, explica.

O “boicote”, como ela diz, impede que a pessoa consiga se manter e muitas vezes estimula o retorno ao crime.

“Tirar essa pena de multa e já liberar a pessoa para viver em sociedade, além de garantir o direito ao sigilo, poderiam colaborar na ressocialização”, diz.

O valor de um dia-multa varia entre 3,3% a 5 vezes o valor do salário mínimo vigente, a depender do delito cometido e da capacidade financeira do réu. O sistema judiciário é quem determina o valor do dia-multa, porém delitos como roubo, furto e tráfico de drogas já têm valor mínimo estipulado pela lei.

Apesar de estar prevista na Constituição Federal e no Código Penal, a medida foi aprovada em 2018 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para, em um primeiro momento, coibir casos de corrupção patrimonial.

Com isso, virou mais uma complicação para que pessoas mais pobres consigam se restabelecer socialmente.

Segundo dados divulgados pelo IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa, 32% das pessoas egressas atendidas em um dos mutirões realizados pela organização não possuíam qualquer acesso à renda, enquanto apenas 1,5% tinham capacidade de geração de renda acima de R$ 2 mil por mês.

Ao mesmo tempo, os valores devidos não correspondiam à realidade socioeconômica enfrentada por essas pessoas. De um total de 150 processos examinados, 41,9% das penas de multa ultrapassavam o valor de R$ 3 mil.

Além disso, 81,6% das pessoas tinham penas de multa com valores iguais ou superiores à sua renda mensal.

Enquanto organizações sociais trabalham para quitar as multas para pessoas egressas em vulnerabilidade, Tempestade alerta que o assistencialismo não resolve a questão.

É necessário ter políticas públicas eficientes e que dêem conta de solucionar os problemas que hoje estão postos. Porém, a ativista lamenta a distância que existe entre os movimentos sociais e o poder público.

“Nós somos muito independentes desse negócio do governo. A gente se vira como pode. Tem R$ 10, só tem R$ 10. Vamos pedir para algum vereador? Vamos pedir para algum deputado? Não vamos, porque eles vão querer que a gente trabalhe para eles e não vai adiantar a gente jogar a política dessa forma”, conclui.

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