Do luto à luta: Caminhos feministas de negras lésbicas

Do luto à luta: Caminhos feministas de negras lésbicas

Neste Dia Nacional da Visibilidade Lésbica (29/8), Fernanda Gomes escreve sobre a lesbianidade da ponte pra cá. Se de um lado o medo de amar outra mulher sem temer e o tratamento opressor, que vai da família ao postinho do bairro, levam à clandestinidade, é no encontro com as iguais que elas criam espaços para existir na própria quebrada

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Por Fernanda Gomes*. Foto em destaque: Renata Alves

Eu me nomeio “lésbica” porque essa cultura oprime, silencia e destrói as lésbicas, mesmo as lésbicas que não chamam a elas mesmas como “lésbicas”. Eu nomeio a mim mesma “lésbica” porque eu quero ser visível para outras lésbicas negras. Eu nomeio a mim mesma “lésbica” porque eu não quero subscrever-me à heterossexualidade predatória/institucionalizada. Eu me nomeio lésbica porque eu quero estar com mulheres (e elas todas não têm que chamarem-se a si mesmas ‘lésbicas’). Eu me nomeio “lésbica” porque é parte da minha visão. Eu nomeio a mim mesma lésbica porque ser mulher-identificada foi o que veio me mantendo sã. Eu chamo a mim mesma “Negra”, também, porque Negra é a minha perspectiva, minha estética, minhas políticas, minha visão, minha sanidade. 

(Cheryl Clarke)

 

A epígrafe de Cheryl Clarke afirma a importância de negras lésbicas se fazerem vivíveis, compreendo que nomear-se lésbica sendo negra é produzir presença, presença essa que historicamente incomoda.

Começo esse texto não querendo inventar a roda, mas com o enorme desejo de contribuir com a nossa memória nesse mês que é significativo para as lésbicas e digo nossa pois faço parte desse brejo, ainda que invisível ou, como Anzaldua já falou, “a lésbica de cor não é somente invisível, ela não existe” (ANZALDUA,2000, p.229).

Então, este artigo que apresento aos leitores será escrito em primeira pessoa. Começo a partir das minhas próprias experiências de vida, porque apesar de me fazerem não existir, meu maior desejo é tornar-me visível.

Em agosto de 2018 escrevi um conto, “É bem mais fácil falar de amor, não de amores clandestinos”, me vi inspirada nas lésbicas “caminhoneiras” do bairro em que nasci, Déia, Lucinha e Gislene, mulheres que não tinham a pretensão de esconder suas amoras e amigas de fato, mulheres à frente do seu tempo, mulheres que se revoltavam e protegiam outras mulheres ainda que essas outras mulheres não se reconheçam como lésbicas e que reproduziram em algum momento da vida ou de forma cotidiana as violências da brancura e dos senhores heteronormativos.

Fernanda Gomes (foto: Arquivo pessoal)

Essa escrita começou a ser rascunhada após uma ceia de natal traumática e solitária vivida por mim e outra lésbica. Passei a rabiscar um pouco da minha “morte” mesmo estando viva, na perspectiva de entender qual é o lugar ocupado ou destinado a mim sendo negra e lésbica. Como me fazer presente em espaços públicos e coletivos se no próprio seio familiar eu era invisível? E as histórias e memórias de negras lésbicas, quem iria me contar?

Após esse acontecimento, passei a pesquisar incessantemente sobre o cotidiano e a vivência de negras lésbicas periféricas. Encontrei conflitos com várias ideias nesse processo de me ver e me identificar sendo eu uma moradora da quebrada e não vivendo a minha lesbianidade na própria quebrada, foi algo angustiante tentar me enxergar militante e ativista das causas negra e lesbofeministas morando no lado de cá, porque ainda que tivesse Déia, Lucinha e Gislene como referência não tenho certeza que essas eram lésbicas com visibilidade.

Do lado de cá, nem todo mundo defende e legitima o feminismo, quem dirá o lesbofeminismo, ao mesmo tempo, que tentava sustentar minha presença como militante mulher, lésbica negra ou negra lésbica, eu senti medo, na verdade, ainda que há anos eu tenha saído do “armário” para mim, eu nunca me assumir lésbica na minha quebrada, eu busco visibilidade mas por anos eu tive medo de ser uma lésbica visível.

Às vezes, fazendo uma leitura sobre a minha pessoa, me deparava com o medo. Aliás, este é um ponto pouco discutido entre nós, negras lésbicas, o medo de não poder ser quem somos publicamente, de amar outra mulher sem temer ou sem ser ameaçada de morte na sua própria rua porque “feriu” a honra de um homem. Quantas vezes o medo me causou instabilidade emocional, insegurança, repressão de desejos, vontade de abandonar o ativismo e de abandonar a vida sendo lésbica. Garanto a vocês, caros leitores, que em muitos momentos a saúde de muitas negras lésbicas foi afetada diretamente. Experimente você passar em uma consulta médica no postinho do bairro sendo uma lésbica visivelmente lésbica.

E por falar em instabilidade, medo, violência e ativismo, vocês sabem quem foi Luana Barbosa?

Luana Barbosa era a mais nova entre os irmãos, nasceu em novembro de 1981. Dois dias antes do trabalho de parto da mãe de Luana, o pai fora assassinado por motivos desconhecidos até hoje pela família. Como boa parte da população negra do país, Luana e seus irmãos passaram a infância na periferia, na cidade de Ribeirão Preto. Eram precárias as condições de vida da família, tendo dificuldades ao acesso à educação, saneamento básico e também sem amparo habitacional. Famílias como a de Luana experimentam uma vida sem garantia de políticas públicas de qualidade no que cerne principalmente saúde, educação e habitação.

Soube da morte de Luana durante uma reunião de mulheres negras lésbicas e bissexuais.  Nascia ali a Coletiva Luana Barbosa, coletiva da qual eu faço parte desde a sua criação em 2016. Nascemos do luto.

Durante uma reunião, veio a notícia de que uma “sapatão” havia sido assassinada e era negra, mãe, periférica, enfim todos esses marcadores sociais que também eram os de Renata, Márcia, Michele, Ane, Lenor, Jhenyfer, Lizandra, Ariane e meus.

De alguma maneira, sentíamos que a morte de Luana representava tantas outras mortes, inclusive de lésbicas que ali estavam. Mobilizadas pela dor, decidimos organizar apoiando e acolhendo as dores da família de Luana, a fim de tornar o caso visível, preservar a memória e não deixar a história de luta e resistência de Luana esquecida.

Eu senti muito a morte da Luana, assim como a Márcia, que traz em um trecho de uma das inúmeras conversas que tivemos. Eu estava de luto e “quantas mulheres estão aqui sentindo a mesma coisa que eu?”:

“Não me lembro exatamente o momento, mas me lembro da sensação do baque, lembro da cena da Jhenyfer chorando, dela recebendo a notícia, dela sentindo a sensação que ela seria mais uma, lembro daquele movimento todo de choro. Quando a gente fez aquela primeira caminhada na Paulista, eu vi e pensei ‘é isso”. Quantas mulheres estão aqui sentindo a mesma coisa que eu? Um monte, pode ser qualquer uma delas que estão aqui, inclusive eu e isso me fez entender que algumas dores são individuais, mas também são coletivas. Independente da vivência, querendo ou não algumas situações são bem próximas. E foi muito louco porque eu senti muito a morte da Luana, não conhecia, não sabia quem era, nunca tinha visto, não sabia da existência até a história chegar na gente, na caminhada, mas eu estava de luto. Estava de luto porque eu sabia que qualquer uma de nós poderia passar por isso, daquela vez tinha sido a Luana”

É importante e se faz necessário evidenciar a memória, de Luana, Marielle e não somente, a memória de outras que foram assassinadas e suicidadas pelo fato de transgredir a norma e o patriarcado e amar outra mulher. Aqui, a memória é marcada pela história de Luana, que foi assassinada, e paralelamente com as histórias de outras Luana que, assim como eu, morreram muitas vezes mesmo estando vivas. Volto a lhe perguntar, caro leitor: você sabe quem foi Luana Barbosa?

Minha história pessoal e as histórias de vida das mulheres da coletiva Luana Barbosa são sobre os impactos e violências existentes que moldam e marcam mulheres, mulheres negras como Luana Barbosa dos Reis Santos, que presenciaram, presenciam e vivenciam violências de raça, gênero e sexualidade, sendo exercida na sua maioria das vezes, por homens.

Violências produzidas no cotidiano da rua, dentro de casa, no ambiente escolar, no trabalho, histórias individuais com fragmentos coletivos e muito diferente do que  “O abraço da comunidade” de Sobonfu Somé (SOMÉ, 2003) nos ensina, esses cotidianos que por vezes foram campo de guerra entre polícia e favela, lugar onde o  filho é responsabilidade da mãe, pais são poucos que têm e nem todas as pessoas não consanguíneas conseguem  alimentar e cuidar de outros filhos que não sejam os seus próprios – uma realidade exposta na  música dos Racionais MC’s:

Crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo Seu café da manhã na lateral da feira Molecada sem futuro, eu já consigo ver

Só vão na escola pra comer, apenas nada mais

Como é que vão aprender sem incentivo de alguém

Sem orgulho e sem respeito Sem saúde e sem paz

Um mano meu tava ganhando um dinheiro Tinha comprado um carro, até Rolex tinha! Foi fuzilado a queima roupa no colégio (RACIONAIS MC’S, 1993)

Nesse sentido, a criação da coletiva da qual lhes apresentei  é fruto do medo e da coragem, individual e coletiva, de mulheres que se sentiram mortas, impotentes, apagadas, mas que viram uma nas histórias das outras, possibilidades de reivindicar existir.

A vida cotidiana dessas mulheres está cheias de dores e ressentimentos, fruto dos constantes ataques contra suas corpas e tantas outras que, a cada dia, reconhece na prática as intersecções das violências cotidianas se entrelaçando, nas consultas médicas, nos mercados, nas escolas, na rua de casa, na própria casa. São os professores, bancários, açougueiros, cantores, políticos, homens em grande maioria.

Em suma, apesar dessa não ser uma cidade carente de coletivas lésbicas, nem sempre as negras lésbicas se sentem confortáveis para partilhar espaços onde a maioria das mulheres são brancas, onde as denúncias são de outro cunho, onde as particularidades de uma classe não se encaixam na disputa. Inúmeras são as denúncias de racismo sofrido dentro de espaços feministas, lesbofeminista e LGBTQIAP+.

Arte: Lênor

Nesse sentido, a coletiva Luana Barbosa optou por construir atividades, rodas de conversa e até um documentário, no qual o protagonismo é de mulheres negras, pois desafiar a sociedade branca-hétero-patriarcal é uma das principais dimensões da luta contra o racismo e a lesbofobia.

Sobre visibilidade em territórios periféricos, favelas e quebradas, nem tudo são flores, ainda que a população de quebrada tenha avançado no acolhimento em relação às pessoas LGBTQIAPN+, sentimos que com as mulheres lésbicas existe uma certa resistência e acreditamos, enquanto coletiva, que isso tem a ver com o ferir do ego do homem cis-hétero-normativo. Quantas de nós não vivemos de maneira Clandestina no nosso próprio território?

Mulheres lésbicas são uma parte da população que está sistematicamente apartada de seus direitos básicos, incluindo o convívio familiar. São alvos constantes de lesbofobia que as impossibilitam de exercer seus direitos e deveres como qualquer outro cidadão. O lesbocídio e a clandestinidade são expressões do ódio contra as mulheres e por isso muitas de nós prefere viver de maneira clandestina.

Viver de uma forma clandestina muitas vezes é não ter que arriscar a própria vida. Nó na garganta e vários gritos impedidos passam a nos sufocar. O que tem de errado com o amor entre duas mulheres? Por que o amor a nós é negado? O que herdamos, medo ou coragem de existir lésbica? O dia 29 de agosto representa o dia da visibilidade ou invisibilidade? Invisibilidade, às vezes, parece esconder a dor de uma condição de inexistência social e afetiva.

Qual lugar é ocupado no cotidiano pelo amor lésbico? Com certeza não é no seio da velha família, pois viver de uma forma clandestina muitas vezes é não ter que arriscar a própria vida. Clandestino é o amor fora de todas as leis.

Desejo compartilhar com as leitoras o fato da existência lésbica não ser apenas a colheita de frutos amargos e sem sabor, somos corpos políticos que estão o tempo todo em movimento. Eu já li que o amor entre lésbicas nunca será discreto, já li também que seremos resistência e “BEIJE SUA SAPA EM PRAÇA PÚBLICA”. Confesso que essa parte de beijar em praça pública é uma das partes que eu mais gosto, afinal você sabe qual é a sensação de beijar outra mulher em praça pública? Talvez muitas de nós não tenham ideia do que seja isso, mas vocês já ouviram falar na festa Sarada no Brejo?

Inspiradas na famosa e saudosa festa “Don’t touch my hair” e “Baile de favela”, a coletiva Luana Barbosa decidiu romper com o medo de acessar a cidade e apostar em um espaço preto, feminino, para mulheres que amam mulheres e que vivem em diferentes pontos periféricos desta enorme cidade. Um espaço onde durante muito tempo conseguiram promover o encontro de muitas mulheres para pensar e viver a liberdade, o amor e as múltiplas culturas pretas.

A festa Sarrada no Brejo foi pensada com o objetivo de produzir afeto e enquanto durou deu super certo. Imaginem só, quantas festas na cidade organizam um espaço infantil, fora do espaço da festa, para as crianças estarem com segurança e criatividade, enquanto suas mães e/ou responsáveis se divertem? Quantas festas LGBTs existem em SP na qual o público é majoritariamente de mulheres pretas? Em quantos corredor do amor vocês já passaram?

É necessário, é acolhedor, fortalecedor e esperançoso. Enquanto o mundo tenta excluir mulheres e crianças dos lugares comuns, a Coletiva Luana Barbosa acolhe parte de um movimento de ocupação da cidade e acolhimento coletivo de todas nós, por visibilidade e direitos.

Por fim e não menos importante, você sabe por que o dia 29 de agosto é considerado o dia da Visibilidade Lésbica aqui no Brasil? No Brasil, 29 de agosto marca o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. Esta data foi escolhida em homenagem ao 1º Seminário Nacional de Lésbicas-SENALE, que aconteceu em 1996 e hoje é SENALESBI. Naquele período, o principal objetivo era o combate à lesbofobia, além de propor discussões e reflexões importantes para a busca por direitos e dignidade.

Atualmente, a maioria das intervenções e ações que envolvem o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica são organizadas por diferentes grupos, coletivas e também mulheres autônomas em diferentes pontos do país, grupos reconhecidos como a Articulação Brasileira de Lésbica-ABL, Liga Brasileira de Lésbicas-LBL, a Rede de Lésbicas Negras (Candace), a coletiva Luana Barbosa, a coletiva Brejo, entre outras organizações, contribuem para o enfrentamento da lesbofobia, do lesbocídio e também para uma construção nacional de afeto entre mulheres.

Fernanda Gomes é assistente social, atriz e mestranda no Programa de Pós Graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades- FFLCH-USP.  Moradora do Jardim São Luiz, passou os anos da vida circulando na zona Sul de São Paulo, entre os distritos de Campo Limpo, Grajaú e o atual. Integrante da coletiva Luana Barbosa, com o grupo foi  criadora e produtora do documentário Eu sou a Próxima, da festa Sarrada no Brejo, do Brejo da Madrugada e do I Encontro de Lésbicas e Bissexuais pretas de quebrada. Foi criadora, atriz e diretora  do curta “Perfume de cândida ” e autora do Zine “O mundo é melhor com você nele”.

Negra lésbica, sambista e trabalhadora periférica.

1 Comentário

  1. Paulo Cruz disse:

    Muito bacana e necessário, vocês são incríveis!!!

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