Se a violência sexual também atinge os meninos, por que não vemos tantos homens no combate ao abuso e exploração sexual?

Se a violência sexual também atinge os meninos, por que não vemos tantos homens no combate ao abuso e exploração sexual?

Na semana do 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, a psicóloga Elânia Francisca e a assistente social Daniela Barbosa abordam como o machismo invisibiliza e perpetua violências contra meninos. Confira o artigo!

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Tempo de leitura: 12 minutos

Este poderia ser um texto escrito pelos homens que compõem a Rede de Enfrentamento. Contudo somos nós, as mulheres, que estamos escrevendo. E isso se dá pelo fato de que, desde sua fundação em 2009, a Rede contou apenas com a presença contínua de um homem.

Vamos começar do começo?

A Rede de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes da Capela do Socorro e Parelheiros – ou simplesmente, a Rede – nasceu em 2009 e tem como objetivo realizar ações de combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes no Extremo Sul da cidade de São Paulo.

Em quase 16 anos de existência da nossa Rede, já realizamos diversas ações, simpósios e formações para profissionais da rede socioassistencial e intersetorial, bem como oficinas lúdicas para crianças e adolescentes acerca da temática do desenvolvimento sexual saudável e sem violência, sempre evidenciando a importância da educação em sexualidade como direito.

Entendemos que é importante que meninas e meninos conheçam e entendam as transformações que seus corpos passarão, que entendem o que é consentimento, o que é um toque de carinho e um toque abusivo, para que tenham autonomia no que diz respeito ao próprio corpo e a capacidade de pedir ajuda, quando necessário.

Tanto com o público infantojuvenil, quanto com pessoas adultas, sempre pontuamos a diferença entre abuso e exploração sexual. No primeiro, pode haver ou não, contato físico e geralmente é praticado por alguém que a crianças ou adolescente conhece e tem confiança.

Já na exploração sexual, existe algum tipo de troca estabelecida pela pessoa autora da violência. Essa troca não necessariamente é financeira, podendo ser também marcada pelo ganho de objetos de valor (celulares, roupas, móveis, etc), alimentação, passeios ou outros elementos de troca.

Como dito inicialmente, nossa Rede é composta quase que exclusivamente por mulheres adultas cisgênero, trabalhadoras de serviços da Assistência Social e Saúde e de coletivos culturais e socioedutivos.

Nossa presença na construção das ações da Rede é muito potente e reconhecemos isso. Contudo, temos limitações quando se trata de dialogar com os meninos sobre Educação Sexual e a sensibilização para a denúncia e combate às violências sexuais.

Clique e confira o que fazer em caso de suspeita de violência sexual contra crianças e adolescentes

A “invisibilidade” da violência

Os casos de violências sexuais contra meninos ainda são um ponto de desafio para a Rede. Isso porque o machismo cria, no imaginário social, a ideia de que um menino que sofre algum tipo de abuso sexual por parte de homens adultos se tornaria “menos homem” que os outros, ou ainda que o menino deveria gostar de ser assediado (e, consequentemente, violentado) por mulheres adultas.

A violência sexual contra meninos ainda é pouco discutida. No entanto, vem crescendo em números alarmantes. No ano passado, o Ministério da Saúde divulgou os dados nas quais os mais de 203 mil casos registados de 2015 a 2021, o equivalente a 13,6% deles havia sido de crianças, adolescentes e jovens do sexo masculino dentro da faixa etária dos 0 aos 19 anos.

Acreditamos que esses números sejam ainda maiores levando em consideração que os casos de violência sexual contra meninos são notifificados apenas quando a violência deixa marcas físicas evidentes, além de fatores limitantes que dificultam identificar a violência – como estarmos inseridos em uma sociedade patriarcal machista carregada de esteriótipos e papeis de genêros.

Além disso, há especificidades no universo da violência sexual contra meninos, como ser considerado pejorativamente homossexual por ter sofrido sentimentos ambíguos endossados pela própria sociedade ao sofrer a violência, o que o leva a acreditar e ter medo de que possa “virar gay”.

A mesma sociedade que ensina que meninos usam azul e não choram é a mesma que não percebe ou demora a entender esses meninos enquanto vítimas. E quando percebem, naturalizam a violência sexual.

Em nosso trabalho, percebemos que muitos meninos adolescentes ainda se constrangem diante da presença feminina quando se trata de apontar uma violência sexual sofrida. Ou contam sobre abusos sexuais sofridos como se fosse uma vantagem: “Eu já transei com uma mulher de 40 anos”, diz um menino de 15 anos durante a atividade.

Não cabe a nós investigar se esse menino está inventando uma história ou se está falando a verdade. O que nos cabe é compreender que ele sequer percebe que está relatando (verdadeiramente ou não) um caso de abuso sexual.

O diálogo dos meninos com homens adultos que tenham um posicionamento anti-machista e anti-patriarcal é necessário e urgente, mas cadê vocês, homens?

Falamos muito sobre a ausência paterna – e é importante que falemos -, mas existe uma cultura machista de ausência masculina que faz com que os homens (sejam eles pais ou não) se ausentam de qualquer espaço onde o protagonismo não é deles. É salutar quando esses homens se posicionam contra a ausência paterna, mas é importante que os homens também se posicionem no cuidado do “filho que não é dele”.

A mídia teria um papel a cumprir nesse sentido? 

O fato da violência sexual contra meninos não ser falada ou divulgada na mídia não significa que a violência não aconteça. Como já mencionado, a sociedade e a mídia corroboram e naturalizam o abuso. Afinal, espera-se que os meninos cumpram papéis sociais de gênero. Que tenham força e coragem. Demonstrar medos e fragilidades é culturalmente proibido.

O pouco que foi e é falado a cerca da violência sexual contra meninos ainda é velado. Em 2012, houve a estreia do filme inspirado no livro “As Vantagens de Ser Invisível”, do escritor e roteirista americano Stephen Chbosky. Pouquíssimas pessoas se deram conta de que o protagonista foi vítima de violência sexual pelo simples fato de naturalizar a violência ou por ela ter sido retratada de uma forma tão sutil.

"Bebê Rena", série da Netflix

“Bebê Rena”, série da Netflix

No ano passado (2024) foi lançada a minissérie “Bebê Rena”, que liderou o ranking de audiência global da Netflix. Baseado em circunstâncias reais, conta a história de Richard Gadd, diretor e protagonista da minissérie. O personagem principal também foi vítima de violência sexual, mas os comentatios que foram feitos eram: “ele era gay”, afinal, até a própria vítima demorou para se perceber como vítima.

Por outro lado, este ano,  a série “Adolescência” da Netflix reflete o quanto a sociedade incita o ódio e a violência contra meninas e mulheres. No entanto, para o público que assistiu, mesmo a série deixando explícito no primeiro episódio que o adolescente havia cometido o crime, as pessoas ainda insistem em dizer que o tinha alguma patologia, afinal de contas é mais fácil justificar a violência com uma doença do que culpabilizar e se incluir enquanto sociedade que reforça tal comportamento.

Portanto, intensificar a discussão do tema deveria tornar-se central, necessário e urgente para que haja uma mudança cultural, política  e social da nossa sociedade.

Ausência masculina e violências sexuais contra meninos

O “silêncio” dos homens anti-machistas e anti-patriarcais gera danos ao desenvolvimento sexual dos meninos, tornando o direito à sexualidade saudável algo muito distante das vivências desses garotos.

A ausência de referências positivas sobre ser homem faz com que os meninos continuem perpetuando uma cultura machista e percebendo meninas e mulheres como inferiores e como objetos sexuais.

Muitos meninos têm facilidade de acesso precoce à pornografia, muitas vezes vindas de grupos de whatsapp de homens da família e de grupos de futebol, onde há homens adultos trocando material pornográfico que, muitas vezes, apresentam mulheres em papéis de submissão e sendo violentadas.

Importante destacar que expor meninos a conteúdos pornograficos, além de ser crime, também é caracterizado como violência sexual. Estudos apontam que meninos têm acesso a pornografia antes dos 11 anos de idade, ou seja, ainda enquanto crianças.

Esses pontos que trazemos não são invenções ou suposições nossas. São relatos trazidos em atividades que realizamos ao longo dos anos em que atuamos no combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes.

Nosso objetivo com esse texto não é de ataque aos homens que se posicionam de forma anti-machista ou que acreditam nos direitos de crianças e adolescentes, mas é uma forma de mostrar os desdobramentos da ausência masculina cisgênero nos debates sobre sexualidade, gênero e prevenção.

Ausentar-se do debate é negligenciar um espaço que precisa de você. Silenciar-se diante do machismo e da violência contra meninos, é ser, em alguma medida, autor de violência também.

É preciso que a masculinidade seja repensada e reconstruída por homens que entendem a estrutura patriarcal e machista da sociedade e o quanto é prejudicial, sobretudo, para os meninos, que não são vistos como vítimas, mas aparecem frequentemente como abusadores.

A Rede de Enfrentamento se reúne periodicamente para debater e construir ações de enfrentamento. Se você quer somar conosco, acesse nosso instagram @rededeenfrentamento_oficial e junte-se a nós nessa luta.

Sobre as autoras

Elânia Francisca – Psicóloga, psicanalista, palhaça-aprendiz, especialista em sexualidade humana, gênero e sexualidade, mestra em educação sexual, doutoranda em Direitos humanidades e outras legitimidades (USP). Fundadora e gestora do Espaço Puberê de Cultura e Convivência localizado no Grajaú, professora universitária e colunista no Desenrola e Não Me Enrola.

 

Daniela Barbosa – Assistente Social. Trabalhadora do SUAS em Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), serviço da Proteção Social Básica na modalidade Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) a partir dos 6 anos até os 14 anos e 11 meses. Desde 2016, compõe a Rede de Enfrentamento à Violência e Exploração Sexual da Capela do Socorro e Parelheiros. Atualmente, tornou-se moderadora desta Rede, mobilizando e articulando a rede de Serviços Intersetoriais e a sociedade civil para a prevenção de violências que acometem crianças e adolescentes, principalmente a violência e exploração sexual.

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