Por Hysa Conrado. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
Uma vez, em entrevista ao programa “Conversa com Bial”, Zeca Pagodinho afirmou que “no subúrbio, ou é macumba ou é velório, não tem para onde ir, pobre não é convidado para festa”.
O cantor se referia às religiões de matriz africana que, mais que espaços de prática da fé, se estabelecem nas periferias também como lugar de encontro com a cultura, com o acolhimento e a assistência social.
Foi com essa perspectiva que a ialorixá Vivian Basilio, de 54 anos, cresceu. Ela divide o espaço da sua casa com o do terreiro desde que se entende por gente.
Há 50 anos, o Ilê Axé de Yansã se estabeleceu na zona Leste e hoje está situado no bairro do Cangaíba, onde ela também vive com o marido e os dois filhos. Ela herdou o posto de sacerdotisa há 10 anos, após a morte de Lucia Basilio, sua mãe e fundadora da casa de candomblé.
“Uma vez minha mãe acolheu uma moça que vinha de um casamento ruim e tinha um filho, e eles acabaram ficando em situação de rua por ter deixado a casa onde moravam. Minha mãe ofereceu alimento, cuidou dela espiritualmente, mas também acolheu essa mulher em nossa casa, mesmo sem conhecê-la”, afirma Vivian.
Para ela, uma casa de candomblé na periferia oferece muito mais que amparo espiritual, mas uma assistência em sentido mais amplo.
Em uma religião tradicionalmente matriarcal, os espaços de fé também concedem apoio à saúde, ajuda com uma cesta básica, uma conversa, alguém com quem dividir os problemas – muitas vezes com a própria zeladora quando a pessoa não tem acesso a um psicólogo.
“Se houvesse um reconhecimento real da função que essas casas cumprem dentro da comunidade, talvez fossem vistas como um serviço público de acolhimento”, diz Vivian.
Em outra ocasião, a ialorixá se lembra da mãe ter acolhido um grupo de jovens que estava envolvido com a criminalidade no bairro.
“Um dos rapazes acabou deixando a vida de crimes. Ele e os meninos que o acompanhavam encontraram ali, no espaço da minha mãe, um caminho religioso de cuidado e saíram dessa vida”, afirma.
Hoje, ela segue dando continuidade ao legado da matriarca. “Vi que minha mãe nunca fez distinção em relação a receber pessoas em situação de perigo ou de vulnerabilidade. Eu e meu irmão crescemos sem medo. Todo mundo sempre foi tratado da mesma forma”, ela diz.
O valor da comunidade
A história do Ilê Axé de Yansã encontra eco em outra casa de candomblé. A ialorixá Ana Paula Vieira, de 37 anos, é líder do Ilé Àṣẹ Ọmọ Omiṣọlà, situado em Mato Dentro, bairro periférico de Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo.
Há quatro anos, desde que abriu o terreiro, não foram raras as vezes em que recebeu pessoas à margem da prostituição, em drogadição, que não tinham vínculo afetivo com a família ou estavam vivendo sozinhas.
As religiosidades africanas criaram raízes no Brasil a partir da chegada de pessoas africanas escravizadas pela colonização. Práticas como o candomblé surgiram marginalizadas e chegaram a ser consideradas crimes, com perseguição e prisão de pessoas adeptas entre os séculos 19 e 20.
Talvez pela história de luta e resistência, essas religiões sejam, em sua tradição, um lugar onde outras pessoas socialmente excluídas encontram amparo.
Filha de santo do Ilê Axé de Yansã, a publicitária Maira Heloiza da Silva, de 37 anos, começou a frequentar espaços de terreiro quando era criança e morava no Jardim Ângela, na zona Sul de São Paulo. Foi a partir dessas experiências que ela aprendeu o sentido de comunidade.
“Minha mãe sempre levava meu irmão e eu para comer e brincar com os erês na festa de São Cosme e Damião. Ali era um espaço onde eu brincava e tinha oportunidade de levar doces e comida para casa. Essas situações foram ponto de partida para que eu entendesse que é possível pertencer sem sentir dor”, afirma.
Compreender o valor da comunidade é uma das bases dos saberes africanos compartilhados pelas religiões, segundo a ialorixá Ana Paula Vieira.
“O saber africano nos remete à simplicidade, a viver em comunidade, e no território periférico isso é muito importante. Afinal, quem mora na periferia se apoia. O saber africano entrelaça essas vivências. Ele diz: a gente só consegue ir além se nos unirmos”, afirma Ana Paula.
A comida também é sagrada na religião. Nas festividades, é tradição que se sirva o “ajeum”, palavra iorubá que significa “comer juntos”, onde a família de axé e visitantes partilham das comidas sagradas servidas para alimentar a comunidade.
“Sei de pessoas que já chegaram desiludidas, sem saber como iria alimentar os filhos e voltaram para casa com a compra do mês garantida. Um dos ensinamentos que é reforçado na minha família de axé é que não importa de onde a pessoa vem nem como ela se veste, todas as pessoas que chegam são acolhidas e alimentadas. O ajeum também é oferecido para quem quiser levar para casa e compartilhar com outras pessoas”, conta Maira.
- Maira Heloiza
- Ajeum servido no Ilê Axé de Yansã
Amparo e acolhimento como meta
Em comum, as ialorixás também compartilham um desejo: o de, a partir de suas casas de candomblé, criar ONGs que possam oferecer assistência e atividades educativas para as comunidades onde estão inseridas.
A ialorixá Ana Paula diz que sua principal missão é ajudar pessoas que estão em situação de vulnerabilidade extrema.
“Pensamos em montar um centro educacional para pessoas LGBTs e para pessoas pretas que estejam nessas condições, com o objetivo de oferecer apoio e garantir que consigam ter o mínimo de instrução para o mercado de trabalho. Temos muitas pessoas fazendo coisas boas e tantas outras que poderiam fazer, mas estão largadas nas ruas”, diz ela.
O que as impede de colocar os projetos em prática é a situação financeira dos terreiros.
Tanto o Ilê Axé de Yansã quanto o Ilé Àṣẹ Ọmọ Omiṣọlà se mantêm com poucos recursos e, por compreenderem a dinâmica socioeconômica dos lugares onde estão situados, não adotam práticas de valores que consideram abusivas ou que visem ao luxo.
“Não sou uma pessoa rica, minha casa não é luxuosa. Pelo contrário, ela nem é propriedade minha ainda, é uma casa alugada. Não acredito que devo cobrar valores exorbitantes que afastem do terreiro as pessoas periféricas. Minha intenção, enquanto sacerdotisa, é justamente trazer essas pessoas para dentro e dizer: isso aqui é um quilombo possível para você também”, afirma Ana Paula.
- Festa para Ogum no Ilé Àṣẹ Ọmọ Omiṣọlà
- Festa para Ogum no Ilé Àṣẹ Ọmọ Omiṣọlà
Apesar de reconhecer as dificuldades financeiras que dificultam a ampliação desse acolhimento, a ialorixá Vivian também acredita que o dinheiro não pode ser uma barreira que afasta as pessoas.
No Ilê Axé de Yansã, seus filhos de santo pagam uma mensalidade de R$ 60 que é destinada para a manutenção do espaço. Para quem não pode contribuir com o valor, ela aceita doações como papel higiênico e produtos de limpeza.
“Você não precisa do dinheiro para estar aqui. É uma casa de caridade, onde a intenção é poder ajudar as pessoas. Quando alguém passa por aquela porta, ela vem à procura desse axé. E o axé não se faz com dinheiro”, afirma a mãe de santo.
Além disso, a ialorixá Ana Paula também destaca a intolerância religiosa como um obstáculo para que as religiões de matriz africana se estabeleçam nas periferias com sua tradição de acolhimento e assistência social.
“Lembro de um dia em que estávamos entregando doces em uma região muito carente, era festa de Cosme e Damião. Além disso, estávamos distribuindo brinquedos e precisávamos implorar para as pessoas pegarem, pois elas diziam que era de macumba e não queriam”, conta.