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Enquanto a Sabesp anuncia sucessivas reduções da pressão da água à noite, motivadas pela estiagem e pelo baixo nível dos mananciais, moradores de regiões periféricas de São Paulo já enfrentam desabastecimento total há anos.
O relatório do Ranking do Saneamento 2025, estudo do Instituto Trata Brasil baseado em dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS 2023), aponta 100% de atendimento urbano com abastecimento de água e 99,38% de coleta de esgoto no município de São Paulo.

Jardim Manacá da Serra, em Parelheiros/Foto: Arquivo Pessol
Em tese, não haveria paulistano sem acesso à rede, já que a cidade figura entre as 20 melhores no ranking geral do estudo. No entanto, a realidade expõe o que os indicadores não revelam: um exemplo é o Jardim Manacá da Serra, em Parelheiros, no Extremo Sul da capital, onde ainda existem casas sem a mínima estrutura de saneamento.
A líder comunitária Alciete Araújo Silva, conhecida como Tata Silva, é uma das moradoras do bairro que acompanha e denuncia a situação irregular e precária de diversas famílias desde 2011. A luta é principalmente por moradia, mas outros direitos básicos acabam entrando na conta.
“A gente faz discussão em relação à distribuição de água porque o bairro é um consolidado de famílias, [discutimos] para essas pessoas terem energia, a coleta de lixo, essas coisas. Como essas famílias vão ficar sem uma água tratada e sem esgoto?”, questiona.
Os desafios para contornar a falta de água

(Foto: Thiago Borges / Periferia em Movimento)
A líder comunitária conta que há diversos bairros da Zona Sul de São Paulo que ainda não têm acesso à água potável, especialmente aqueles classificados como loteamentos irregulares e que ficaram de fora da Lei Federal nº 13.465/2017, responsável por regularizar esse tipo de moradia.
A norma criou novas regras para a regularização fundiária no país, determinando que somente áreas ocupadas até 22 de dezembro de 2016 poderiam ser reconhecidas como de interesse social e, consequentemente, receber infraestrutura pública.
Segundo Tata, em situações extremas, os vizinhos se mobilizam entre si para contornar a falta de água.
“Aqueles que têm água, dividem. Têm também os que vão buscar água em outro bairro, levam roupas para lavar na casa de amigos, de parentes. É inacreditável que a gente [passe por isso] morando ao lado de duas represas”, destaca.
Apesar de ser uma solução imediata para o problema, não é o ideal, pois a falta de controle na captação e armazenamento afetam a qualidade da água, colocando em risco a saúde da população que fará uso.
“Certo dia, a água da minha casa e de cinco vizinhos que se abasteciam de um poço estava podre, fedendo. A gente foi ver o poço, peneirou a água, e tinham dois ratos em estado de decomposição. Ali, fez com que eu entendesse que eu tinha direito e que eu tinha que brigar por eles”, conta a líder comunitária.
Os impactos na saúde
O estudo “Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado”, também realizado pelo Instituto Trata Brasil, mostra que a privação dos serviços de saneamento básico interfere diretamente na saúde da população.
Os dados da pesquisa mostram que, em 2024, foram registradas 12.889 internações em São Paulo por doenças de transmissão feco-oral – que incluem diarreias, febres entéricas, hepatite A, entre outras –, transmitidas principalmente pela ingestão de água ou alimentos contaminados.
Além disso, o estudo destaca que a dengue foi o problema de saúde pública mais relevante e explosivo em 2024, doença que também está relacionado à estrutura de saneamento e armazenamento de água, já que o mosquito depende de locais com água parada para sua procriação.
Por que o acesso a banheiros é uma questão de racismo ambiental e justiça climática? Cerca de 30% de pessoas pretas e pardas do Brasil não têm acesso a esgotamento adequado. O número cai para 16,5% entre pessoas brancas e sobe para 70% entre os indígenas. Os dados, que compõem o Censo 2022 realizado pelo IBGE, revelam mais uma faceta do racismo ambiental no país.
Para as mulheres negras, sobretudo mães solo, a situação é ainda pior. Segundo o estudo “O saneamento e a vida da mulher brasileira”, 41 milhões de mulheres não têm acesso adequado à infraestrutura sanitária e ao saneamento, sendo que 40% são mães negras e solo.
O entraves para o cumprimento da lei

Jardim Manacá da Serra, em Parelheiros/Foto: Arquivo Pessol
Apesar da definição da Lei Federal nº 13.465/2017, o acesso à infraestrutura pública de saneamento básico depende de políticas municipais e da implementação concreta pelo poder público. Apesar de ser um passo legal que permitiu a formalização, a entrega de água, esgoto, luz, transporte ou equipamentos públicos depende de planejamento e orçamento municipal.
Na prática, com o passar do tempo, isso deixou de fora da regularização os novos loteamentos, impedindo, por consequência, que famílias tenham acesso formal à rede de água e esgoto da Sabesp, o que pode ampliar os riscos de contaminação e comprometer a saúde de quem vive nessas regiões.
Sem a regularização dos imóveis, a Sabesp não pode realizar ligações oficiais de água e esgoto, já que a empresa depende de autorização legal para operar em áreas reconhecidas pelo poder público.
Em nota enviada à Periferia em Movimento, a companhia afirmou que, com o novo contrato firmado após a desestatização, passou a ter permissão para instalar infraestrutura também em áreas vulneráveis, mas não detalhou como essa atuação ocorrerá na prática.
Sem isso, os moradores têm de recorrer a soluções improvisadas, como caminhões-pipa, poços rasos, os “gatos” e ajuda de familiares.
Universalização no papel, exclusão na prática
Outras regiões periféricas, como Marsilac, Ilha do Bororé e os loteamentos mais recentes de Parelheiros, ainda enfrentam longos períodos de interrupção do abastecimento, poços contaminados e fossas improvisadas. Este cenário obriga os moradores a armazenar a água em tambores, prática que aumenta o risco de contaminações e doenças.
Essas falhas não aparecem nas estatísticas porque o SNIS considera “atendida” toda área urbana sob concessão da Sabesp, independentemente de interrupções ou da informalidade das ocupações.

Rovena Rosa/Agência Brasil
Bairros fora do traçado formal da rede, mesmo quando densamente habitados, não entram na conta. Assim, a universalização é, antes de tudo, um recorte administrativo.
Enquanto a Sabesp fala em eficiência e investimento – R$ 11,5 bilhões entre 2019 e 2023, segundo o ranking –, moradores periféricos convivem com a ausência de um direito básico.
Parte do esgoto coletado também não é tratado: o índice de tratamento (ITR) é de 72,6%, abaixo da meta de universalização. Isso significa que quase 30% do esgoto gerado em São Paulo ainda não passa por tratamento adequado antes de chegar ao meio ambiente.
O Trata Brasil afirmou à reportagem que não há dados sobre a cobertura de água e esgoto em áreas urbanas irregulares.
“Usamos os dados oficiais do Ministério das Cidades, que são reportados pelos municípios/concessionárias e no geral só pegam áreas regularizadas”, esclarece a instituição.
Além disso, o Trata Brasil também declarou não haver indicadores de tratamento de esgoto e de perdas de água que diferenciem bairros formais e irregulares.
Com a privatização da Sabesp aprovada em 2024, surgem novas dúvidas sobre o futuro do abastecimento nessas áreas. Apesar disso, movimentos de moradia e ambientalistas cobram garantias de continuidade, temendo que os territórios menos rentáveis sejam deixados de lado.
O caso de Parelheiros, onde bairros seguem sem água tratada, mostra que a universalização do saneamento não se resume a índices.
Em nota, a Sabesp afirmou que, por meio do projeto de universalização, pretende antecipar em quatro anos as metas do Marco Legal do Saneamento, de 2033 para 2029, levando água tratada e rede de esgoto a 371 municípios.
A companhia destacou que, após a desestatização, o novo contrato permite ampliar a infraestrutura também em áreas informais e vulneráveis, com R$ 70 bilhões previstos em investimentos até 2029. Segundo a empresa, desde então, 87.715 domicílios foram conectados à rede, superando a meta anual, e as tarifas sociais foram reduzidas em 10%, beneficiando 1,8 milhão de famílias.

