Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Fotos: Pedro Salvador
A internet é um dos meios mais importantes que a globalização utiliza para conectar o mundo e mudou o curso da humanidade desde seu surgimento, em 29 de outubro de 1969. A tecnologia chegou ao Brasil em 1988 e está cada vez mais presente no cotidiano da população, tendo o importante papel de democratizar a informação e encurtar distâncias antes praticamente impossíveis de serem percorridas.
Mas qual é a influência das ferramentas digitais em nossa identidade e como ela altera nossa forma de ver e se colocar no mundo?
Para a articuladora sociocultural Marcia Marci e o educador financeiro Brian Braia, é necessário saber utilizar essas ferramentas para influenciar e ser influenciado positivamente por semelhantes, para assim atrair pessoas e criar comunidades propositivas dentro desse universo digital, sem esquecer da importância da comunicação analógica e do mundo real.
Marcia e Brian foram foram as pessoas convidadas para a roda de saberes “Transformação digital e influência na formação de identidade cultural, territorial, e política”, que aconteceu no último sábado (17/8) na Casa Emancipa, no Grajaú (Extremo Sul de São Paulo).
“Apesar da transformação digital, a galera continua se ferrando para fazer dinheiro. O capitalismo coloca mais uma ferramenta para explorar nossa capacidade intelectual, mas a gente não consegue sair dessa lógica”, avalia Márcia.
“Algumas pessoas pensam que ‘a direita está tomando conta da internet’. A direita sempre tomou conta dos meios de produção, não é novidade. Eles eram os donos dos navios negreiros. São só novas ferramentas que o capitalismo e a direita têm usado para explorar a gente. Algumas pessoas se ferram menos, outras se ferram mais. A gente está vivendo uma transformação, mas estamos nos transformando para sermos o quê?”, questiona a Marcia Marci.
A pesquisa TIC Domicílios 2023 do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) revela que mais da metade (57%) dos brasileiros não têm acesso pleno à internet. Os dados evidenciam que o acesso à rede ainda é um privilégio e uma questão de classes.
Das ruas para as redes
Márcia Marci é travesti e líder comunitária, idealizadora do projeto Travas da Sul, organização social coletiva criada por e para pessoas LGBTQIAPN+, que surgiu em 2019 com o objetivo de realizar ações culturais, sociais e de saúde para essa parcela da população do Extremo Sul de São Paulo.
Marcia conta que a ideia se deu a partir da observação de que pessoas trans e travestis do Grajaú já tinham um ponto de encontro pré-estabelecido, na rotatória do Jardim Eliana, em um movimento orgânico e sem qualquer organização política.
“O movimento já existia mas não para a área da cultura, era mais para o lugar do encontro e do lazer. Com isso, tive a ideia de movimentar uma coletividade de pessoas trans, prioritariamente, mas acabam que pessoas lésbicas, gays e bissexuais cisgêneres também chegam na coletiva. A gente começou com um sarau e deu super certo”, relembra.
A partir da organização como um movimento de luta e resistência, a Travas da Sul ganhou força e notoriedade, sobretudo pela atuação em meio à pandemia de covid-19, quando foram feitos mutirões de arrecadação de cestas básicas para comunidades do Grajaú.
Toda a articulação se deu de forma integrada entre a comunicação analógica e digital. Dentre os pedidos de ajuda recebidos pela internet havia inclusive o de um pastor da região.
Em um contexto de gerações cada vez mais hiperconectadas, é necessário movimentar-se também para gerar impacto além das redes, considerando que as classes mais pobres não têm os mesmos acessos e se ainda se educa a partir de elementos da cultura popular, como a televisão.
“A minha identidade de gênero não é mais uma questão como um dia foi para as pessoas da minha casa de axé em Salvador, na Bahia. Da última vez que fui até lá foi tudo muito natural, e nas conversas as minhas irmãs de santo falaram que se educaram a partir da novela, do BBB… a televisão tem um papel de educar o povo, mas a gente esquece porque estamos num contexto em São Paulo, que a internet funciona em qualquer lugar”, pondera Márcia.
Das redes para as ruas
Brian Braia é cria de Guarulhos (região metropolitana), educador financeiro e digital influencer pela Digital Favela, plataforma de marketing de influência focada em influenciadores de periferias.
Ele conta que passou a criar conteúdo há cerca de 1 ano e meio, quando se deu conta que a maior parte dos materiais de educação financeira que são comumente encontrados na internet não representam, em diversos níveis, a população periférica.
“Não é nada parecido com a gente e nem com nossa realidade. Eu queria mudar de vida, e com os corres do dia a dia a gente sabe que não sobra muito dinheiro. Pra mim não tinha que ser assim, então comecei a estudar e trazer, para pessoas que vieram de onde eu vim, soluções acessíveis”, diz.
Braia valoriza a transformação digital, uma vez que sua atual ocupação só é possível devido a esse processo.
O jovem avalia que em outros contextos, provavelmente não lhe seria cedido qualquer espaço para discorrer sobre educação financeira devido ao preconceito contra pessoas periféricas, visto que é um nicho bastante conservador e elitista, mas que a internet possibilita que qualquer pessoa possa transitar por esses locais – ainda que sob olhares atravessados.
“Lá em 2006, 2007, eu não teria espaço, e na internet a gente tem. Eu não falo sobre economia, eu uso a educação financeira em uma linguagem acessível para todo mundo entender que com nossos recursos a gente consegue ter acesso a esses conhecimentos também, que a gente merece e não é só para a elite”, conta.
Outro ponto que é celebrado é o impacto que a atuação pelas redes sociais pode gerar em pessoas que enfrentam problemas reais. O influenciador diz que antes de produzir conteúdo para a internet, ensinava a amigos algumas dicas sobre educação financeira.
“Teve um amigo que me disse: ‘cara, se nós que somos iguais a você queremos ouvir sobre educação financeira, por que você não utiliza a internet para atrair outras pessoas como nós? Foi a partir daí que comecei a criar conteúdo”, conta.
Com feedbacks positivos devido à impactos gerados em seu ciclo de amizades, Braia, que hoje possui pouco mais de 80 mil seguidores no instagram, passou a atuar nas plataformas digitais.
“Eu sei que meu conteúdo não chegou em pessoas da periferia quando me mandam calar a boca e dizem que não sei o que estou falando… Mas o que eu aprendi e o que falo para os meus é o que eu vivi, é o que minha família viveu o tempo inteiro. Eu discordo completamente do discurso que para juntar dinheiro precisa cortar totalmente o lazer. Isso não existe. Pela nossa realidade não existe. Mas isso você não aprende na internet com pessoas que não viveram nossa realidade. Às vezes as pessoas me param na rua ou em eventos e falam: ‘cara, consegui guardar 50 reais por mês’, e eu sei o valor que isso tem, porque é muito dinheiro. Mas para as pessoas fora da nossa realidade isso não faz sentido, por isso acho extremamente importante se desconectar para poder viver a realidade”, completa.
Papo de gerações
Essa foi a segunda de cinco rodas de saberes relacionando a comunicação com outras questões que atravessam o dia a dia das periferias. O evento faz parte do projeto Repórter da Quebrada – Gerações Periféricas Conectadas, que conta com apoio da 8ª edição do Programa de Fomento à Cultura da Periferia, da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo.
André Santos, Thiago Borges, Pedro Salvador