Novo Ensino Médio desagrada estudantes de escolas públicas e sobrecarrega cursinhos populares

Novo Ensino Médio desagrada estudantes de escolas públicas e sobrecarrega cursinhos populares

Entidades e estudantes criticam mudanças implementadas, apontam descompasso entre o que é oferecido nas escolas e cobrado em ENEM e vestibulares e ligam sinal de alerta na educação

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Tempo de leitura: 12 minutos

Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano

“O desafio é grande. As disciplinas de Ciências Humanas nessa nova ‘deforma’ do ensino médio foram afetadas diretamente. O que eles querem é afetar o conhecimento crítico, a forma dos estudantes pensarem a realidade e contradições. Então, sem dúvidas, a diminuição de disciplinas e da carga horária é um desafio muito grande”.

Rafael Cícero, do Ubuntu (foto: divulgação)

Rafael Cícero, do Ubuntu (foto: divulgação)

É dessa forma que Rafael Cícero, de 38 anos, professor de Geografia e coordenador na Rede Ubuntu de Educação Popular, define as mudanças impostas pelo Novo Ensino Médio (NEM).

Essa política governamental foi aprovada durante o governo Michel Temer (MDB), em 2017, e estimula que estudantes optem por uma formação profissional e técnica dentro da carga horária do ensino médio regular, teoricamente com capacitação para ingressar no mercado de trabalho.

Em implementação gradual desde 2022 pelo governo Bolsonaro (PL) nas escolas de todo o Brasil, a nova organização não removeu qualquer disciplina, mas reduziu drasticamente o tempo de aula de cada uma. Apenas Língua Portuguesa e Matemática continuam obrigatórias durante os 3 anos do ensino médio, ao contrário das demais matérias tradicionais (Biologia, Física, Química, Artes, Educação Física, Língua Inglesa, Filosofia, Geografia, História e Sociologia).

Por outro lado, o tempo mínimo de permanência nas escolas foi ampliado de 800 para 1.000 horas anuais, com a definição de “itinerários formativos” que incluem cursos de empreendedorismo ou projeto de vida.

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Dificuldades para estudantes

Em 2024, a política chegou a estudantes do terceiro ano. No entanto, tem se mostrado frágil no dia a dia. Afinal, o currículo do ensino médio no Brasil não pauta o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) nem os vestibulares tradicionais. As provas necessárias para o ingresso na faculdade seguem sem alteração em suas exigências, prejudicando o desempenho de estudantes.

“A verdade é que as mudanças foram muito pequenas ou quase não existiram em torno do ensino médio. Os alunos têm chegado ao cursinho com uma defasagem muito grande porque, em vez de aulas, eles têm tido um monte de disciplinas que não caem em nenhum vestibular. Então, uma defasagem que já era alta passa a ser maior ainda”, observa Rafael.

A fala do professor se aplica na realidade vivida por Sabrina Tolentino, de 17 anos, moradora da região de São Mateus (zona Leste de São Paulo). Ela estudou em uma escola técnica de tempo integral em que as disciplinas tiveram redução de horas para abrir espaço para as matérias referentes ao curso técnico. Quando  percebeu que o currículo priorizava o ingresso no mercado de trabalho e  não na universidade, Sabrina fez reforço gratuito das matérias fundamentais em um cursinho popular.

Protesto contra Novo Ensino Médio em São Paulo (foto: Agência Brasil)

“Durante o segundo ano do ensino médio, algumas matérias básicas foram trocadas. Por exemplo: História abriu espaço para Física; e Geografia, para Química”, explica. “Percebi que os temas de História não haviam chegado nem mesmo na Segunda Guerra Mundial ou na divisão política do mundo na época, que geralmente caem em vestibulares. Quando resolvi que faria o ENEM para um teste, conhecer o que precisava melhorar e como era o ambiente de aplicação da prova, percebi (com a nota) como Redação e Ciências Humanas foram as piores notas, chegando à conclusão de que precisaria de um reforço”, conta.

A iniciativa de Sabrina deu resultado. Aprovada para cursar bacharelado em Engenharia Civil pelo Instituto Federal de São Paulo (IFSP), a jovem questiona as reais intenções por trás da reforma, uma vez que as escolas passaram a funcionar como pólos de formação profissional ao invés de preparação para os vestibulares, visto que a faculdade é essencial para uma possível ocupação de cargos mais altos no futuro.

“O Novo Ensino Médio limita o aluno a pensar somente no mercado de trabalho, a chegar ainda jovem em alguma forma de renda independente de seus responsáveis e seguir sua carreira apenas de forma técnica, sem muitas qualificações necessárias para remuneração rápida. Mas pouco é dito sobre como essa mão de obra é barata perto das que têm algum tipo de especificidade de formação (como o segundo grau) e te mantém estagnado nesse único ambiente, sem oportunidades futuras de ocupar cargos melhores, que são reservados para qualificações mais fortes”, diz Sabrina.

Dani Vieira, 25, moradora do Jardim Santa Bárbara, no Grajaú (zona Sul de São Paulo) e educadora popular da Rede Emancipa, movimento social de cursinhos pré-universitários com atuação em todo o Brasil, diz que foi difícil se adaptar às demandas após a Reforma. Segundo ela, estudantes se frustraram porque não estavam entendendo o conteúdo, o formato e a metodologia aplicados no novo modelo, e se queixavam principalmente da redução de disciplinas. Para contornar isso, o Emancipa fez diversas discussões para sanar dúvidas e tornar o cursinho um espaço de politização do debate.

“Acreditamos que o Novo Ensino Médio pode aumentar as desigualdades educacionais entre estudantes periféricos de escolas públicas em relação a estudantes de escolas privadas. A barreira do vestibular se tornará ainda maior”, diz Dani.

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Revogação

A Rede Emancipa promoveu uma pesquisa nacional com 1.179 estudantes de escolas públicas e particulares para entender a opinião desse grupo sobre o Novo Ensino Médio.

Em relação à qualidade de ensino, 84% das pessoas entrevistadas disseram que houve  uma piora, 7,5% que o modelo atual é equivalente ao antigo e apenas 3,7% que houve uma melhora, além de 4,3% que não souberam responder.

Em relação aos pontos negativos da Reforma, 57% do total de estudantes apontaram a redução de matérias importantes e conteúdos que caem nos vestibulares como o maior problema.

Confira abaixo os principais dados da pesquisa realizada pela Rede Emancipa (clique para ampliar)

Além disso, também foram citadas a imposição da mudança, a desorganização, a ampliação da desigualdade entre escolas públicas e privadas, além da exigência pelo ensino em período integral, fator que sobrecarrega estudantes, sobretudo quem. Dentre os pontos positivos, 61% de estudantes afirmaram que não há nenhum.

A pesquisa aponta que 89,8% de estudantes defendem a revogação do Novo Ensino Médio, sendo que 58% preferem voltar ao formato anterior e 31% defendem uma reforma, mas com amplo espaço democrático e com participação estudantil.

Vale lembrar que, em outubro de 2023, o Ministério da Educação do governo Lula (PT) enviou um projeto de lei para o Congresso para promover alguns ajustes no Novo Ensino Médio.

Aumento na procura

“Infelizmente, os cursinhos também estão próximos de seu esgotamento, porque a demanda é muito grande. E como a gente faz sem apoio do Estado, sem condições estruturais e financeiras para tocar isso? Não temos condições e isso é uma questão que precisamos discutir, porque se a escola pública não está formando esses estudantes ao ponto de eles se prepararem para os vestibulares, se esses estudantes estão indo em busca de cursinhos pré-vestibulares e não estão tendo espaço, onde estão esses estudantes?”, questiona Rafael.

A insatisfação com o ensino regular leva estudantes a seguirem o caminho trilhado por Sabrina e procurarem os cursinhos pré-vestibulares como forma de complementar os estudos. No entanto, diante desse aumento exponencial de pessoas interessadas, as iniciativas populares têm encontrado dificuldades para conseguir atender a essa demanda.

Na Rede Ubuntu, segundo Rafael, foram registradas cerca de 1.500 inscrições para as turmas deste ano, ainda que a capacidade seja para apenas 400 pessoas.

“Estamos em um momento bem complicado que deveria ser repensado, porque teremos muitos jovens que vão simplesmente desistir do sonho da universidade, e nós da Rede Ubuntu estamos sofrendo muito por isso. De 1.500 estudantes, só podemos atender 400? Nesse cenário, 1.100 não foram contemplados. E onde estão esses 1.100 estudantes? Uma parte significativa vai desistir, e isso dói muito em nós”, desabafa Rafael.

Além do conteúdo educacional, os cursinhos por vezes também disponibilizam e arcam com todos os custos referentes a materiais, alimentação e em alguns casos até o transporte para estudantes, sendo esta a principal dificuldade para manter as iniciativas ativas.

Para Dani, outra grande dificuldade é conseguir um espaço adequado e pessoas voluntárias para dar as aulas, visto que o trabalho não costuma ser remunerado e docentes já se desdobram para conseguir lidar com as responsabilidades e dificuldades do dia a dia nas escolas.

A educadora conta ainda que a Rede Emancipa já perdeu diversas escolas que não entenderam ou não concordaram com as posições da entidade, e diz que o primeiro desafio é o de convencer as pessoas a acreditarem na Educação Popular como um instrumento para a transformação de vidas.

“É importantíssimo que a gente consiga formar estes educadores para não apenas irem ao cursinho dar aulas de sua disciplina, mas lutarem pela Educação Popular, compreender que nossa luta é pela democratização do acesso à universidade e por uma educação emancipadora, de qualidade e gratuita, contra as desigualdades econômicas, o racismo, o machismo, a LGBTQIAPN+fobia, o capacitismo, em defesa do meio ambiente e da saúde pública! Encararem o cursinho não como um trabalho voluntário, mas como um trabalho militante”, diz Dani.

Como alternativa, surgem iniciativas e parcerias como, por exemplo, a recentemente anunciada com os Gaviões da Fiel, principal torcida organizada do Corinthians, com a intenção de aproximar o trabalho de base feito pela entidade à população a partir de elementos presentes na cultura popular.

“O cursinho Emancipa Gaviões acontecerá na Fábrica do Samba, na Barra Funda, e é uma parceria fundamental para nos enraizar na base e atingir cada vez mais educadores que querem lutar por uma educação emancipadora e estudantes. Ter o apoio e a parceria de torcidas organizadas, escolas de samba e de outras iniciativas da cultura popular é imprescindível para o avanço da Rede Emancipa e das nossas lutas, por isso estamos sempre buscando nos organizar junto com aqueles que acreditamos, unindo uma pluralidade de iniciativas. Estamos muito empolgados com a construção deste cursinho”, completa Dani.

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