Por Elisabeth Botelho. Edição de texto: Thiago Borges. Fotos: @vineomkr
“2 votos! Só faltaram 2 votos”, diz a placa segurada por Cilindra, que chora por ser desclassificada da grande final do Favela Drag, um concurso de drag queens na periferia de São Paulo. A plateia ri e aplaude, afinal tudo faz parte de uma performance da artista. As lágrimas falsas saíam pela máscara que ela estava utilizando.
E performance é o que não faltou na Casa de Cultura Vila Guilherme, o Casarão (zona Norte de São Paulo), no fim de tarde daquele sábado, dia 19 de agosto. A sala principal do espaço estava decorada com uma estética glamourosa, colorida e cheia de personalidade. No centro, havia uma painel com cores vibrantes, azul, rosa e verde, e o nome da atração.
A gravação do episódio final do reality show de quebrada reuniu equipe, participantes e pessoas convidadas. A produção andava de um lado para o outro, de olho nos equipamentos de som e imagem. Em outras salas, as drags se montavam para o grande evento. De tempos em tempos, alguém entrava no recinto para acompanhar o desenrolar. No palco onde tudo aconteceria, bancos estavam dispostos como num desfile de moda.
“É a primeira vez que a Casa de Cultura está recebendo drags queens, então isso já é muito potente. Uma casa desse jeito, que tem muitos anos, está recebendo drags pela primeira vez somente em 2023. Então é um impacto que a gente traz, mostrar que a gente existe, resiste e que precisamos falar sobre, precisamos nos exibir” – Avante, apresentadora do Favela Drag
Contribuição artística
O Favela Drag é uma websérie veiculada no youtube em formato de reality show em que as drag queens participantes realizam desafios e falam das suas vivências enquanto pessoas LGBTQIAPN+ e periféricas. O projeto foi viabilizado por um edital público da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Apresentado pelas drags Avante e Felippa, o programa foi criado na pandemia como alternativa para dar visibilidade e garantir o trabalho de artistas em um momento em que vários espaços tiveram que fechar as portas.
“Artistas periféricos já não têm tanta oportunidade, e aí quando fecha tudo são os primeiros que sentem esse impacto” – Henrique Binatto, uma das pessoas que idealizaram o Favela Drag
A primeira temporada teve vídeos gravados em casa por participantes e enviados para Neyson Cezar, Henrique Binatto e Felippa, que idealizaram o projeto. Já na segunda temporada, após a pandemia, as gravações foram feitas no Casarão da Vila Guilherme. Na criação do Favela Drag, as inspirações foram programas conhecidos como RuPaul’s Drag Race e Nasce uma Rainha. A ideia de fazer um programa de televisão é marcante na construção do projeto, a fim de atingir um público maior.
O episódio final de Favela Drag estará disponível a partir deste sábado, dia 9 de setembro, no canal do programa no YouTube. Clique aqui para se inscrever e acompanhar. Além do reality, o coletivo lançou o curta-metragem “Memórias Drag” e já idealiza a terceira temporada do programa, mas agora feito em alguma favela de São Paulo. Todas as informações serão divulgadas no instagram do grupo: @faveladrag.
Criando referências
Em toda comunicação há uma estética periférica com colagens, grafittis e referências LGBTQIAPN+, como conta Ailik Uranus, que esteve presente no Casarão para a gravação da final e destaca o quanto são importantes movimentos como esse para evidenciar trajetórias e que de alguma maneira acaba protegendo suas vidas.
“A partir de eventos assim, trazendo visibilidade na internet, a gente consegue se sentir mais segura de se montar, de conseguir sair na rua, de exercer nossa sexualidade, nossa arte, ver nossa arte na rua, na nossa quebrada.” – Ailik Uranus
A responsabilidade de dar visibilidade às drags queens vai além da comunidade LGBTQIAPN+. Assim como toda arte, a disseminação cabe ao todo.
“A gente sabe que as pessoas nos olham, né? A gente sabe que as pessoas nos percebem e que aquilo é novo, causa estranhamento”, conta Heitora, finalista desta temporada.
E por inúmeras vezes esse olhar acaba virando preconceito, LGBTQIA+fobia e apagamento da arte drag como importante contribuição artística para a cultura na periferia.
“Só pelo fato da gente sair maquiada, colocar uma peruca, colocar uma calcinha, já é um ato muito político” – Felippa
Quando Felippa fala que a periferia tem melhores artistas e o seu próprio show, reflete também na importância de saber quem são esses talentos que podem inspirar na arte e na vida. Essas referências mudam a perspectiva da busca dos espaços mais centrais da cidade para a própria quebrada.
“Eu faço parte da periferia e onde eu moro eu não tenho nenhuma referência artística”, compartilha Heitora.
Moradora na Vila Primavera, em Sapopemba (zona Leste), ela destaca a importância de demarcar a presença drag no imaginário das pessoas. Contudo, ressalta que nem toda quebrada vê a arte drag como parte da cultura periférica, inclusive quando ela é preta.
“Conversando com as meninas e menines, a gente entende que existem várias periferias. Existe aquela periferia que é mais pacífica, mas existe aquela periferia que é muito mais violenta. E isso traz recortes, porque a gente vai entendendo que apesar do nosso tom de pele ou do nosso nível de privilégio, existem recortes de privilégios. É muito doido, porque todo mundo mora numa periferia … São histórias que só o Favela Drag conseguiu juntar”, conta Heitora.
Reality da desconstrução
Algo feito da quebrada para quebrada traz diversos impactos positivos para quem participa, produz e assiste, além de mostrar outra realidade do corre drag periférico brasileiro. A proposta desconstrói o cenário glamouroso norteamericano e traz as pessoas mais pra perto de uma referência da cultura drag próxima da sua realidade, tornando-a possível.
“Quando a gente traz o reality de favela, a gente mostra como é um corre de verdade, né? Tipo, pegando promoção de maquiagem na 25 de Março, sabe? Pegando roupas emprestadas de outras gatas styles, fazendo permuta. A gente faz permuta entre nós também. Então, é mostrar essa realidade que não tem nada de glamour. Tem glamour, óbvio! Mas não é nada como as outras pessoas veem”, explica Júpter, finalista da segunda temporada.
“É um outro feeling [percepção], sabe? É um outro approach [abordagem]… A gente recebeu alguns kits de maquiagem, coisas básicas, que se fosse uma drag que tivesse começando e quisesse se aventurar no Favela Drag, ela iria conseguir se montar com tudo que a gente ganhou”, divide Heitora.
Cada participante do Favela Drag recebeu um kit com itens de maquiagem e acessórios para auxiliar na construção dos seus personagens. O cuidado com o transporte e em ter uma ajuda de custo também foram diferenciais na websérie.
Elisabeth Botelho, Thiago Borges“Tem uma coisa de acolhimento muito forte. Eu acho que é por a gente entender a nossa realidade mesmo.” – Júpter