50 anos depois, para onde vai o revolucionário movimento Hip Hop?

50 anos depois, para onde vai o revolucionário movimento Hip Hop?

O grito marginal que ecoa pelo mundo há meio século vive mudanças, com espaço no mercado para artistas e no topo das paradas. Para fechar o mês que celebra este marco, questionamos: quais as principais mudanças de um movimento que, no Brasil, gerou uma identidade periférica e quais caminhos serão trilhados daqui em diante?

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Tempo de leitura: 11 minutos

Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano

“A tecnologia vai invadindo, e cabe a gente manter a cultura viva ou não. É um lance cultural mesmo, temos que assumir as responsabilidades para passar adiante”.

A fala acima é de KL Jay, o DJ do grupo Racionais MCs, em um ciclo de debates realizado na semana passada durante o Encontro Estéticas das Periferias, na cidade de São Paulo. Dias antes, o histórico DJ do Racionais MCs criticou a instantaneidade do consumo, a tendência de viralização e descarte acelerado que contribuem para a produção de músicas cada vez mais parecidas. O cenário do rap atual “ficou meio fábrica de bolachas”, disse ele, ao jornal Folha de S. Paulo.

(Foto: Divulgação/DMC Brazil)

KL Jay, do Racionais MCs (Foto: Divulgação/DMC Brazil)

“Você tem que dar o exemplo. O progresso tá no exemplo que você dá, então cada um faz sua parte e aí a cultura se mantém viva misturada às novas tecnologias”, continua o DJ, durante o ciclo de debates.

Em 2023, o Hip Hop celebra 50 anos de existência – e KL Jay é um de seus expoentes.

O movimento nasceu como um grito de protesto e resistência em meio a década de 1970 nas comunidades jamaicanas, latinas e afroamericanas de Nova Iorque (nos Estados Unidos), que enfrentavam problemas sociais como o racismo, a pobreza e diversas formas de violência.

Com meio século de vida, hoje tem a missão de seguir revolucionário à medida em que novas tecnologias e formas de expressão surgem, além de uma adesão em massa do mercado consumidor, que passa a incorporá-lo cada vez mais.

“Antigamente, se você falava que curtia um rap, levava um tapa na cara. Hoje, se você fala que curte um rap, você vem [palestrar] no Sesc”, avalia Kall do Vale, produtor cultural e educador, que também participou do Estéticas das Periferias.

De acordo com pesquisa divulgada em alusão à celebração de 50 anos do Hip Hop pelo Spotify nesse mês de agosto, o rap é o segundo gênero musical mais popular na plataforma, com um crescimento de 68% em consumo nos últimos 3 anos globalmente. O Brasil se destaca como 3° maior consumidor do mundo, e teve um aumento de 40% nas buscas entre maio de 2022 a maio de 2023.

A construção do sujeito periférico

No Brasil, a cultura firmou raízes há 40 anos com os saudosos encontros que aconteciam na rua 24 de Maio, no Centro paulistano; e posteriormente no Largo São Bento, considerado ‘o berço do Hip Hop brasileiro’, onde os primeiros nomes do movimento, como o pernambucano Nelson Triunfo, se reuniam para dançar break, um dos 4 elementos que constituem a cultura – MC, DJ e Graffiti são os outros.

Esses encontros foram primordiais para o desenvolvimento e disseminação da cultura Hip Hop no Brasil, pois além de ser o ponto de mudança de perspectiva para diversas referências artísticas que são pilares para o movimento até hoje, como Racionais MCs (DJ e MC) e Os Gêmeos (Graffiti), serviu para levar as pessoas das periferias da cidade até o Centro, fortalecendo o cenário da época e plantando as primeiras sementes para um crescimento avassalador.

“O Hip Hop nasce pela identificação. A vontade de ouvir um som, ir em um baile… a gente não sabia o que era Hip Hop, mas tinha uma identidade. E o que a gente mais pirava é que poderíamos ser o que a gente é, os pretinhos lá do fundão. Isso foi o que foi nos construindo, e dali pra frente a gente foi construindo junto também”, afirma Kall do Vale.

Por muito tempo estigmatizado, devido à origem e ao público consumidor, o Hip Hop exerceu um importante papel social: o de denúncia.

O tom de protesto nas músicas que contavam sobre a vida cotidiana nas periferias de São Paulo não era gentil e descreviam situações muito similares às encontradas nos bairros estadunidenses mais pobres onde o movimento surgiu. Tal narrativa, que até os dias atuais se faz necessária, era ainda mais urgente em uma época em que os acessos aos saberes e direitos eram mais difíceis.

“Dessa forma, o Hip Hop, através de suas diferentes práticas, leu a periferia local a partir de uma aproximação com o gueto negro/hispânico norteamericano estabelecendo similaridades e desenvolvendo uma identidade periferica que articula elementos de raça, classe, gênero, espaço e sexualidades”, conta Márcio Macedo, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor da Fundação Getúlio Vargas, que em dezembro defenderá em Nova Iorque sua tese de doutorado, intitulada “Hip-Hop SP. The Creation of Peripheral Culture in Brazil (1984-2003)”.

Break na estação São Bento (foto: reprodução Vice)

Apagamento

Se historicamente, o Brasil sofre com o apagamento de muitas pessoas de luta que foram importantes nos mais diversos segmentos socioculturais, com o Hip Hop não foi diferente.

Integrante do grupo ‘Visão de Rua’, a rapper Dina Di não acumulou capital em uma época em que o gênero musical estava longe dos holofotes e da monetização que se tem hoje, apesar de ser reverenciada como uma das principais referências para o movimento até os dias atuais.

Neste ano, a família da rapper que faleceu em 2010 esteve em situação de vulnerabilidade financeira, precisando recorrer a campanhas de arrecadação online para suprir as necessidades básicas para sobrevivência. A história da família de Dina Di só veio à tona devido ao reconhecimento de parte do público dado ao trabalho da cantora, mas ainda é uma exceção, visto que existem artistas que hoje vivem de forma quase anônima, como Dorothy e Nenesurreal, por exemplo.

“Imagina o quanto a gente perdeu na história, o quanto o Hip Hop foi passando e não cristalizou essas memórias. Então, você vai encontrar hoje as pessoas mais velhas e elas estão no anonimato”, afirma Kall.

Outro ponto que inevitavelmente contribui para esse apagamento é que boa parte do público mais recente chega ao nicho com pouco ou nenhum contato com quem construiu o movimento, inclusive ideologicamente.

O movimento de renovação é natural e esperado, por se tratar de uma cultura viva, e a presença de novas ideias é positiva e necessária para que exista longevidade. No entanto, o conhecimento e o respeito ao trabalho de quem veio antes é essencial para que o Hip Hop siga fiel aos seus ideais.

“Quem faz trap rima muito, canta muito, fala das suas vivências, mas tem que conhecer KL Jay, Mano Brown, Racionais, RZO, Negra Li, Dina Di, porque não existiria o trap e ninguém  estaria rimando hoje se não fossem essas pessoas. Eu uso meu passado e tenho cada vez mais buscado entender o futuro que quero pra mim, enquanto mulher e artista preta e periférica. Não tenho saudosismo, tenho respeito por quem veio antes e me fez chegar até aqui”, comenta DJ Miriã, também em fala no ciclo de debates.

Ascenção mercadológica

Por ser um movimento, o Hip Hop está em constante evolução, adaptando-se às tendências e tecnologias que surgem dia após dia. Um exemplo disso é que, apesar de no Brasil a atuação de b-boys e b-girls estar em baixa, é cada vez mais comum encontrar jovens fazendo passinhos de funk, uma atualização que contou com um fator cultural de nosso país. Apesar de serem formas expressões diferentes, hoje, o funk e o Hip Hop por vezes dividem o mesmo ambiente, seja em público, festas ou artistas.

DJ Miriã Alves (foto: arquivo pessoal)

O movimento também é mais plural do que no início, seja em corpos ou ideias. É comum encontrar diferentes representações e discursos. Fala-se mais abertamente de qualquer assunto, inclusive os que já foram abordados antes visto que muitos dos problemas persistem até hoje.

Como fenômeno social que, historicamente, dita o comportamento de uma parcela da sociedade, é difícil apontar os caminhos que virão a seguir, uma vez que ambos se influenciam.

Fato é que nada será feito sem que novas sementes sejam plantadas e a cultura disseminada. O Hip Hop é uma cultura juvenil, e isso não é algo ofensivo e nem significa que só jovens podem produzir ou consumir. No entanto, reforça a importância de trabalhar com esses grupos para apresentar todos os elementos que envolvem o movimento, e o que eles representam, para preservar a memória e estimular uma evolução.

“A gente utiliza o Hip Hop, a cultura, como uma ferramenta de conscientização, de transformação, reunião, de pensar e viver o mundo. De ser um estilo de vida mesmo, e não somente como um produto, uma música”, conta Kall.

Dentre os muitos projetos existentes, está o TPM – Todas Podem Mixar, idealizado por DJ Miriã, responsável pela formação de mais de 600 DJs em pouco mais de 6 anos de atuação. O projeto é destinado a mulheres cisgênero e pessoas trans e, além do intuito formativo, tem um importante papel de inserção no mercado profissional, visto que por vezes realiza a indicação para contratação de pessoas que passaram pela iniciativa.

“O Todas Podem Mixar tem sido minha oportunidade de dar meu exemplo enquanto mulher sendo DJ”, conta Miriã, que avalia a convivência com a pluralidade como um fator essencial para seu crescimento pessoal e profissional.

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